Crítica publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Lucia Cerrone – Rio de Janeiro – 1999

 

Barra

É boa madeira de lei

O Grupo Sobrevento – Sandra Vargas, Luiz André Cherubini e Anderson Gangla – agora sediado em São Paulo, mas com uma facção RJ por conta de Miguel Vellinho -, um dos mais atuante no país em teatro de manipulação de bonecos, está em cartaz no Teatro Gláucio Gil. E isso, sem dúvida, é uma dupla vitória: teatro de bonecos em temporada regular e Sobrevento no Rio. O grupo, com 10 anos de existência, é responsável, entre outros sucessos, pelo cultuadíssimo Mozart Momments, espetáculo em que usa a técnica japonesa do burako para contar a vida do compositor em esquetes bem-humorados. Em Cadê Meu Herói? também está em cena o humor, mas a técnica é outra. Ou melhor, a mistura de técnicas em parcerias inusitadas. O resultado é belíssimo.

Cadê Meu Herói? tem texto do argentino Horácio Tignanelli, técnica de luva chinesa de Yang Feng e bonecos confeccionados pelo mamulengueiro pernambucano Mestre Salda. O toque internacional, como diz Luiz André Cherubini, fica com Pernambuco. A brincadeira tem lá seu fundo de verdade. A luva chinesa original é mais justa e os bonecos são usados a meio-corpo. Os bonecos de Mestre Saúba têm pés e, com pesos bem calculados, movimentam-se com perfeição. A manipulação criada por Yang Feng dá mobilidade extra aos bonecos, fazendo com que esses comediantes de madeira quase que criem vida própria no palco. O público infantil e o adulto se encantam na mesma medida.

O texto de Tignanelli, traduzido por Sandra Vargas e Cherubini, chega ao palco com referências muito próximas da plateia brasileira: Colherzinha de Mel é a princesa mal-humorada, presa na torre do castelo do simpático Barão Amaro. A dualidade de personagens que trocaram as funções de heroína e vilão por si desmonta a preferência do público. A princesa, com todo o aparato do mundo moderno, encomenda heróis pelo fax, 0800 e até pela Internet. Mas, contra qualquer herói de encomenda, o barão tem a “força do amor”. No inusitado final, o truque se revela, em perfeito happy end.

O Sobrevento, que desta vez apostou pesado no visual do espetáculo, tem cenários de impacto – um castelo medieval que abre portas e janelas em movimentos bem sincronizados, de Telumi Helen e Vânia Monteiro, da equipe do J. C. Seroni. A iluminação de Renato Machado é um elemento poderoso no palco, ampliando a estratégia de hipnotizar o publico. O artista, em fase de muita inspiração, interfere o tempo todo no espetáculo com uma luz dramática e absolutamente teatral. Em meio a efeitos mirabolantes de raio laser, para as batalhas, Machado se dá ao luxo de criar quase um close para os minúsculos personagens. Um requinte.

Cadê Meu Herói? é um desses espetáculos de rara beleza, em que seus criadores não tiveram medo de ousar: no tema – às vezes visto como violento, mas que na verdade usa desse artifício como alerta-, nos recursos visuais que fogem do artesanato pobre e na mistura de profissionais tão diferentes para um espetáculo de pura unidade. Imperdível.

Cotação: 4 estrelas (Excelente)