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O teatro é um ato de conhecimento, é saber o que você não sabe. Este é o princípio que deve reger o teatro como arte.
Antunes Filho

Ao circular pelas ruas das grandes cidades brasileiras, a visão de crianças em situação de abandono faz ressurgir em nós a já tão conhecida indignação diante de uma organização social multiplicadora de desigualdades e exclusão. Impregnados pelas representações mentais adocicadas que costumamos ter da infância, nos interrogamos sobre o que ainda pode restar dessa noção no cotidiano da criança real pedindo esmolas que temos diante de nós. Este é apenas um exemplo entre muitos outros, da relatividade da própria noção de infância e das contradições às quais ela remete.

Sabe-se que o conceito de infância apresenta uma universalidade apenas aparente, pois ela é, em parte, uma relação socialmente estabelecida. Nem sempre ela foi vista como hoje, ou seja, como uma fase da vida merecedora de cuidados distintos daqueles dispensados à idade adulta.

A legitimação social da infância, no entanto, constitui somente uma das faces de uma situação contraditória. Em nosso sistema produtivo, no qual o envolvimento do indivíduo com a produção de bens caracteriza o grau de atenção que a sociedade é capaz de lhe conferir, a criança, tanto quanto o idoso, tendem a ser objeto do tratamento nitidamente discriminatório destinado aos indivíduos não produtivos.

Situada no âmago dessa ambiguidade, a relação entre o adulto, detentor de um poder assegurado por sua condição de idade e a criança, desprovida dessa prerrogativa, configura-se como uma relação entre desiguais. E é exatamente esse desequilíbrio que caracteriza uma modalidade artística recente, cuja origem data deste século: o teatro voltado para o público jovem.

Se seus primórdios surgem no continente europeu, rapidamente o ideário dessa modalidade teatral faz suas primeiras aparições em nosso país.

No final do século passado na Europa, a militância do proletariado pela sua emancipação se revela, entre outras frentes, pela luta em prol da escolarização em massa, levando a reivindicações por um novo estatuto para a criança e o jovem. Criam-se assim condições favoráveis para o surgimento de uma literatura voltada especialmente à infância, matriz da especificidade do teatro infantil.

É no bojo dessas ideias que, em 1907, ocorre a famosa afirmação de Stanislavski: “o teatro para crianças é como o teatro para adultos, só que melhor”. Estamos, por assim dizer, diante do marco zero da multiplicação de experiências em termos de um teatro especifico, que, a partir daí, começa a ocorrer no Ocidente.

Ao longo das décadas seguintes, Inglaterra, França, Estados Unidos, URSS e países da Europa de Leste, entre outros, assistem ao fenômeno da institucionalização do teatro dirigido especialmente à infância, que passa a atender cada vez mais às necessidades de um mercado de consumo em contínua expansão.

No Brasil, é com os textos edificantes de Coelho Neto e Olavo Bilac que aparece pela primeira vez uma literatura dramática voltada diretamente para a criança. Em 1948, a encenação de O Casaco Encantado de Lúcia Benedetti, no Rio de Janeiro, passa a constituir uma referência fundamental; os múltiplos prêmios recebidos e as numerosas traduções do texto abrem novas perspectivas para o teatro infantil.

A partir de então, essa modalidade teatral começa a integrar efetivamente o quadro das manifestações cênicas ao alcance do grande público.

Durante a década de cinquenta, três importantes grupos asseguram, em diferentes proporções, a expansão do teatro infantil no Brasil. O Tablado, fundado por Maria Clara Machado em 1951, cuja continuidade o torna um caso à parte entre nós, tem seu lugar consagrado na história do teatro brasileiro, pelas encenações, pelos textos que gerou, por ter sido a fonte de formação de inúmeros profissionais e pela relevância dos Cadernos de Teatro. Em São Paulo, o TESP, instituído por Julio Gouveia e Tatiana Belinky apresenta semanalmente espetáculos infantis em teatros da prefeitura, estendendo mais tarde suas atuações à televisão, através de adaptações da literatura ocidental e de literatura para crianças. Olga Reverbel cria em Porto Alegre o TIPIE, que apresenta espetáculos infantis realizados por normalistas, abertos a todos os interessados.

Os anos sessenta e setenta assistem à eclosão, em países submetidos a diferentes regimes políticos, de uma contestação a formas tradicionais de autoridade. Abre-se assim espaço para novas concepções acerca da posição das jovens gerações na sociedade e, simultaneamente, para a crença na potencialidade emancipadora do teatro. A partir daí, constata-se um boom da representação teatral infantil, verificado com clareza em nações tão diferenciadas quanto a França e o Brasil, por exemplo.

Tanto em São Paulo, quanto no Rio de Janeiro, a oferta de espetáculos infantis cresce em ritmo bastante acelerado em meados da década de setenta. Textos originais, traduções, adaptações, roteiros para improvisação, dão origem a encenações designadas como infanto-juvenis, que têm lugar em horários especiais, nas mesmas salas que abrigam apresentações para adultos.

Em prol da formação do espectador de amanhã, desenvolve-se intensa mobilização nos meios teatrais e educacionais. Ela se traduz por premiações e subvenções específicas, por debates públicos e pela criação da Associação Paulista de Teatro para a Infância e Juventude, cuja história certamente mereceria ser reexaminada.

Ao estudar essa modalidade teatral, no entanto, o observador não deixará de se interrogar sobre o acúmulo de insuficiências e distorções que a caracterizam.

A análise revela que, tanto em termos das soluções cênicas propostas, quanto das representações sociais veiculadas (1), textos e espetáculos infantis vêm configurando até hoje no Brasil, uma produção cultural específica, carregada de efeitos nitidamente perversos.

No que se refere ao enredo, observa-se que a ação dramática ou é substituída pelo palavrório, ou se configura como movimentação desenfreada no palco. Por outro lado, a possibilidade de múltiplas leituras, que é uma das prerrogativas inerentes à obra artística, praticamente inexiste na dramaturgia e no espetáculo tidos como infantis. A partir da constatação de que, no nível da trama, o que aparece com maior frequência é a ausência de contradições, pode-se perguntar qual é o tipo de posicionamento diante do mundo que vem sendo favorecido por essa produção teatral.

Música e comicidade são recursos onipresentes, tidos como componentes intrínsecos de um suposto gosto infantil. Tentativas de envolvimento do público na trama revelam um posicionamento discutível frente à relação adulto-criança, na medida em que não costumam ter incidência efetiva no desenrolar da trama. Quase sempre escamoteam o autoritarismo do elemento adulto, pois é concedida à plateia a ilusão de um poder que nada tem de verdadeiro.

Quanto à construção do personagem, costuma ser caracterizada por absoluta precariedade. A escassez de atributos que lhe são conferidos, assim como a ausência de dúvidas ou contradições internas, alia-se à quase inexistência de qualquer perplexidade ou questionamento em relação a si mesma ou ao ambiente que a cerca. Uma vez inserida na trama, a personagem habitualmente não passa por qualquer evolução, ressalvados os casos em que, no final, a maldade cede lugar à bondade.

Ao longo das últimas três décadas é esse o panorama que se vem observando, contrariado apenas por raros espetáculos de determinados artistas que chegaram a propor trabalhos reveladores de um inegável cuidado de acabamento. Tratam-se quase sempre de peças marcadas pela diversificação da temática abordada, ou que enfatizam a própria noção de jogo ou de faz-de-conta como eixo da representação, na perspectiva de propiciar não a ilusão do real, mas de enfatizar o caráter, por assim dizer, performático do espetáculo.

Com exceção, portanto, desses casos particulares, o que se pode verificar é que a especificidade da dramaturgia e da encenação infantis não vem lhe assegurando um nível de qualidade enquanto criação artística.

Subjaz às representações mentais do adulto produtor do discurso teatral, a imagem de um jovem espectador marcado por uma espécie de indigência de caráter intelectual. Uma encenação pobre, um texto recheado de lugares-comuns ou uma interpretação incipiente são veiculados sem maiores constrangimentos, na medida em que têm apenas crianças como alvo.

Através de um domínio precário dos pressupostos do gênero dramático por seus autores, os textos encenados oferecem um modelo pobre cristalizado de conhecimentos do ser humano.

Algumas das questões que dizem respeito diretamente à vida cotidiana do jovem espectador atual, tais como a violência urbana, ou as transformações acarretadas pela informática, por exemplo, não são tratadas em termos dramatúrgicos. Temas que, de algum modo revelem as aspirações e as contradições de nossa sociedade, ou que incitem ao questionamento das relações entre os homens, não se fazem presentes, o que conduz o espectador a uma visão de mundo que consagra a ordem vigente como a única possível.

A inexistência de um maior cuidado artístico no teatro voltado aos jovens espectadores, em última análise, parece simultaneamente encobrir e reafirmar a desigualdade de poder entre as gerações.

Dentre as múltiplas modalidades possíveis de relacionamento entre o emissor adulto e o receptor infantil, os caminhos da pobreza artística e do conformismo é que costumam ser trilhados.

Não é difícil verificar que pretensa adequação a priori do espetáculo em função de faixas etárias, encobre uma tentativa do adulto de exercer seu poder sobre a fruição do ato teatral pelo jovem espectador. Diga-se de passagem, que está implícita nessa tentativa, uma noção equivocada, segundo a qual a apreensão artística se faria apenas no nível estritamente intelectual.

Na medida em que se autoproclama especificamente infantil ou infanto-juvenil, esse teatro vem quase sempre renunciando a cumprir um papel mais relevante, que possa distingui-lo do âmbito do simples divertissement promovido pela televisão, por exemplo.

Dramaturgia e encenação na atualidade teriam tudo a ganhar se cumprissem a vocação historicamente consagrada do teatro de suscitar interrogações sobre a condição humana. Cabe a ele, teatro, formular, através de linguagens cênicas contemporâneas, múltiplos pontos de vista sobre os impasses do homem atual, na perspectiva de contribuir para que o público se situe diante dessas complexas questões com uma perspectiva diferenciada daquela veiculada pela mídia.

Mais do que nunca, refletir sobre as funções do teatro, hoje, implica pensá-las enquanto polo distinto da padronização cultural que nos domina, e fazê-lo independentemente da faixa etária do público.

Uma vez que todo esse quadro nos leva a constatar os efeitos perversos da destinação exclusiva de espetáculos teatrais para a infância, propomos a defesa de uma superação da especificidade do teatro infantil.

Para tanto, antes de mais nada, seria necessária uma mudança no eixo de abordagem dos responsáveis pelo evento teatral; ao invés de canalizar as preocupações em torno de uma formulação adequada a uma determinada idade, caberia refletir sobre o teatro que se pretende fazer e suas peculiaridades de caráter propriamente artístico.

Se há um vetor inerente à qualidade estética de uma manifestação teatral, ele se pode ser o desejo do encenador, sua aspiração a dar forma a uma intuição, a percepções muitas vezes inicialmente difusas. Uma vez transformado em acontecimento cênico, esse desejo, comunicado a pessoas de diferentes idades, será também percebido, inevitavelmente, de diferentes maneiras.

Duas encenações paulistas recentes ilustram com clareza essa questão.

Vladimir Capella é um diretor que desde a década de setenta vem mantendo uma produção teatral marcada pela busca de criar poesia cênica, sem se restringir a classificações etárias. Há poucos anos, Maria Borralheira e Píramo e Tísbe já haviam surpreendido o público pela qualidade das soluções cênicas apresentadas. No final de 1997, ele estreia seu mais recente espetáculo, O Homem das Galochas.

É o próprio Capella quem assina também o texto, no qual se mesclam a vida e a obra ee Hans Cristian Andersen. O conto As Galochas da Fortuna fornece a estrutura dramática que permeia a encenação, servindo como referência para o encontro entre o jovem e o velho Andersen. No plano da obra do escritor dinamarquês, se História de Uma Mãe e A Sombra são os contos vividos integralmente em cena, há também uma série de personagens conhecidos de suas histórias, como o rei que está nu ou a vendedora de fósforos, que fazem aparições esporádicas. Sua decodificação sem dúvida necessita de um quadro de referências possuído mais provavelmente pelo espectador adulto, o que não diminui o interesse de sua presença. Da mesma forma, a belíssima metáfora criada a partir da Noite, a envolvente alegoria da Morte, ou a temática da velhice podem ser lidas em diferentes níveis por espectadores de diferentes idades.

Trata-se de espetáculo notável, tanto pela complexa construção dramática do texto, tecida pela interpenetração entre o plano da ficção criada por Andersen e o da sua própria existência, quanto pela riqueza de significações simbólicas reveladas pelo trabalho como um todo, marcado pela segurança e delicadeza do diretor.

Em um registro totalmente diverso, desde 1984 o grupo XPTO vem arrebatando prêmios e encantando plateias com suas criações inusitadas, resistentes a tentativas estritas de classificação. Seus espetáculos sempre impressionaram pelas curiosas sínteses obtidas entre teatro, música, dança e uma especialmente engenhosa animação de objetos e bonecos.

Seu último trabalho, Buster, o Enigma do MInotauro é uma hilariante comédia, homenagem ao famoso ator cinematográfico das décadas de vinte e trinta, Buster Keaton. A encenação recria com marcação esmeradíssima os personagens e as gags do cinema mudo. Através de um nível milimétrico de detalhamento, são apresentadas passagens com movimentação frenética, que originam quiprocós extraordinariamente rebuscados. A teoria do cômico de Bergson, segundo a qual o que provoca o riso é o aspecto mecânico que pode se fazer presente na conduta humana, parece ter neste espetáculo sua mais acabada ilustração.

Assim como ocorre ao próprio cinema mudo, não caberia discriminar aqui as faixas de idades adequadas para o público de Buster. Todos, crianças, jovens, adultos e terceira idade, de acordo com suas diferentes possibilidades de apreciação, chegam a viver momentos de grande prazer na plateia desse espetáculo.

Tanto Buster quanto O Homem das Galochas são criações de diretores experientes, com nítidas posturas de caráter estético, preocupados, antes de mais nada, em dar forma cênica acabada à ficção que desejam oferecer ao público.

Ao invés de simplificarem a priori sua criação, visando a um suposto benefício a ser auferido pelo público infantil, assumem a postura inversa. Vladimir Capella e Osvaldo Gabrieli concretizam cenicamente aquilo que querem transmitir, sem abrir qualquer concessão em prol de uma pretensa facilidade de recepção da plateia. Ao mesmo tempo, ambos os diretores, sempre que têm ocasião, reiteram que seus espetáculos se destinam a pessoas de toda e qualquer idade. Ao assim fazerem, eles acabam abrindo múltiplas possibilidades de um diálogo de caráter sensível entre as gerações, que tenha como ponto de partida a fruição comum de uma obra artística.

Estamos diante de dois espetáculos de qualidade, dignos de serem apreciados por pessoas com diferentes graus de experiência de vida. Cada espectador, dentro das possibilidades de seu referencial cultural e de suas competências de leitura cênica, irá elaborar os significados que mais lhe falem de perto.

Não há porque lamentar que a criança eventualmente não tenha compreendido tudo. Mesmo que muitas metáforas não cheguem a ser decodificadas em toda sua carga poética, ela terá sido surpreendida e interpelada através do mergulho em uma ficção elaborada com extremo cuidado artístico, ampliando assim, de modo sensível, suas referências sobre si mesma e sobre os outros.

Um simples esforço de recordação de espetáculos teatrais assistidos durante a infância pode contribuir para reforçar esse ponto de vista.

Hoje, adultos, somos capazes de descrever o impacto de certas imagens teatrais que, quando captadas, décadas atrás, causaram forte impressão, o que fez com que permanecessem tantos anos gravadas na memória. Na época, provavelmente não saberíamos bem explicar porque essas imagens eram tão envolventes, pois não éramos ainda capazes de operar tal nível de explicitação, mas essa insuficiência nem de longe constituía obstáculo à apreciação e ao encantamento com o “como se”.

A formação de um público apto a fruir a representação teatral pode ser objeto de uma verdadeira “escola do espectador” (2), nos termos formulados por Anne Ubersfeld. Seja qual for a sua idade, o espectador é também em ultima análise, um produtor, na medida em que é apenas nele, ou através dele, que o sentido do ato teatral é formulado.

Provocado em sua capacidade de estabelecer vínculos entre os signos emitidos e suas referências no mundo, o espectador é incitado à inventividade. Assim, um espetáculo tido como não transparente, pode desafiá-lo a tentar construir significações, propiciando-lhe, assim, a conquista de um novo tipo de prazer.

Muito mais do que à compreensão da fábula, estamos nos referindo ao prazer da descoberta da linguagem do teatro, à percepção da performance e dos signos relativos ao espaço, à gestualidade, à indumentária entre outros, signos esses que remetem a uma relação com o mundo.

Naturalmente, aprender a ler a representação teatral não é prerrogativa da infância; em toda e qualquer idade esse processo pode ser ativado, fornecendo pistas férteis para a ampliação do conhecimento sobre o comportamento humano.

No que diz respeito às modalidades de relação entre o adulto emissor e a criança receptora da representação, acreditamos que a experiência histórica acumulada já é suficientemente significativa. Ela nos revela que a infantilização das práticas teatrais trazidas a público necessita ser urgentemente revista, em benefício de um teatro que se proponha, antes de mais nada, a interpelar o espectador e a contribuir para transformar seu olhar sobre o mundo que o cerca.

Caminhos a serem seguidos, existem vários. Buster, o Enigma do Minotauro e O Homem das Galochas constituem duas respostas, entre tantas possíveis. Sua existência, com certeza, é suficientemente eloquente para nos desafiar à invenção de outras soluções.

 

(01) Ver da mesma autora, No Reino da Desigualdade, São Paulo, Perspectiva, 1991.

(02) Importante semióloga da representação teatral, que expõe o referido conceito em seu livro Lire le Thêatre II. L’école du spectateur. Paris, Belin, 1996.

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Maria Lúcia de Souza Barros Pupo é professora Livre-Docente do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde atua no campo das relações entre o teatro e a educação. É responsável especialmente pela formação de docentes em teatro e alimenta pesquisas na área em nível de pós-graduação. Doutora pela Universidade de Paris III, é autora do livro No Reino da Desigualdade, publicado pela Editora Perspectiva em 1991, sobre o teatro infantil encenado em São Paulo nos anos setenta.