Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 01.12.2017
Musical sobre Buda canta o “despertar para o outro”
Banda Mirim acerta mais uma vez com espetáculo sensível e eficiente para todas as idades
Primeiro acerto: peça para crianças no horário de peça para adultos, ou seja, à noite. Por que não? Por que um grupo que há anos faz espetáculos prestigiados e aclamados por todas as idades tem de se restringir aos horários da tarde? Por que não poderia se apresentar à noite, como forma de marcar posição na defesa do que chamam de “teatro para todas as idades”? Não só pode, como isso já está acontecendo com a Banda Mirim, no Sesc Santana, e sua peça nova, Buda. Fica aqui, logo de cara, meu voto de louvor por essa iniciativa, tanto do grupo quanto do Sesc.
Mas a lista de acertos que se segue a esse primeiro é enorme. Com seus 14 integrantes, na estrada há 13 anos, período em que amealhou nada menos do que 20 prêmios e um público estimado em 200 mil pessoas, com passagens por mais de 70 cidades do Brasil, a Banda Mirim levou três anos em fase de pesquisa para Buda – em projeto contemplado pela 26ª edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo. Bem, tem gente que pesquisa até mais tempo do que isso e não consegue um resultado artístico final satisfatório, porque se perde em descobertas e se enreda na própria armadilha do conhecimento, que acaba por não se traduzir em arte.
Esse risco jamais atingiria a Banda Mirim, tão talentosa, competente e, acima de tudo, comprometida em fazer teatro de qualidade. Buda chegou de mansinho neste final de 2017 e já cativou público e crítica, virando um dos melhores espetáculos do ano em São Paulo. O projeto teve um alicerce muito consistente: investigar e colher histórias reais de abandono, por meio de visitas, vivências e trocas artísticas com populações “em situação de vulnerabilidade e risco social”. A Banda visitou e interagiu com os internos de 12 abrigos paulistas ou casas de acolhimento.
E por que esse foi o caminho escolhido para falar de Siddhartha (ou Sidarta) Gautama, o líder espiritual conhecido como Buda? Simples. Porque Buda viveu confinado nas riquezas seguras de um palácio até os 29 anos, sem saber o que era doença, pobreza, envelhecimento, morte, enfim, protegido de toda dor e de qualquer problema. Só depois dessa idade é que decidiu abrir mão de seus poderes materiais, vestir-se de mendigo e tomar contato com o abandono e a perda de dignidade humana. A peça, mais do que biográfica ou, pior, hagiográfica, é um lindo e animadíssimo musical sobre alteridade, sobre descobrir o outro, prestar atenção no outro, em outras escolhas de vida.
É arrepiante a experiência de entrar no teatro do Sesc Santana e já se deparar com a cortina aberta e o palco pronto, com uma iluminação pra lá de impactante, apoiada em focos muito bem distribuídos, e com o cenário já montado. A disposição dos objetos – muitas varetas e, sobretudo, os inúmeros instrumentos musicais da banda, que viram vistosos elementos cenográficos – é toda circular, deixando ao centro o vazio eloquente da arena onde tudo se passará. A inspiração do grupo e da brilhante cenógrafa e iluminadora Marisa Bentivegna veio dos rituais africanos dos griots (narradores de histórias), descobertos também por ninguém menos do que Peter Brook em sua noção de “espaço vazio”. O desapego, uma das bases da filosofia budista, encontra sua mais perfeita tradução nessa cenografia escolhida para Buda e na iluminação ao mesmo tempo ‘volumosa’ e leve.
Há outra coisa muito importante a se dizer a respeito desta nova incrível atração da Banda Mirim: não há protagonismo. Edu Mantovani, como Sidarta, está perfeito, porém não porque tenha momentos solos arrebatadores, e sim por essa opção da direção em justamente não o destacar, mantendo-o integrado a todo o elenco, harmonioso, sem estrelismos no palco. Sua composição é plácida, contida, até humilde – e, assim, acertada. Em um momento ele brilha no centro do palco, e no minuto seguinte já se recolheu ao espaço periférico, como mero percussionista dos arranjos da banda. E, em boa parte da peça, Sidarta também empunha sua guitarra, lembrando um astro pop, por que não? Achei uma opção espertíssima, uma excelente medida para atrair a empatia dos jovens para o iluminado personagem.
Essa valorização do coletivo, do fazer teatral em conjunto, sem deixar margem para as vaidades individuais, tem a ver com a “mensagem” que a peça quer passar: que todos primeiro saibam se conhecer, mas não como uma viagem ególatra ao próprio umbigo, e sim para que isso sirva depois como ferramenta para se conhecer o outro. O outro. O tempo inteiro, o olhar para o outro. Do começo ao fim, desde a primeira até a última música, um potente recado é transmitido: tudo o que a gente passa e vive surge em primeiro lugar na nossa mente. Em outras palavras: cuidado com o que você pensa, porque é da sua mente, de nenhum outro lugar, que vem tudo o que você vai viver. Mas atenção: não se trata, de jeito nenhum, de um espetáculo doutrinário ou religioso – caso alguém pense que ouvirá entediantes pregações da boca do numeroso elenco. Marcelo Romagnoli, autor e diretor, tarimbadíssimo, nunca erraria a mão em sua fórmula de arte-diversão-entretenimento-conteúdo.
A fabulação é colocada à frente de tudo. A força do teatro narrativo. Como premiado, testado e aprovado dramaturgo, Romagnoli é, antes de mais nada, um grande fabulador, um contador de histórias. Só um artista assim, como ele, com toda essa experiência em desenvolver histórias para crianças no palco – e, por extensão, para a família inteira –, poderia falar de budismo sem deixar o ritmo se esvair em pieguismos, sem nem sequer se aproximar da fronteira com a chatice tediosa, sem textos longos e cansativos – ao contrário, tudo é dito com uma notável economia de palavras. Nada ali está demais. Cláudia Missura, que em outras peças da Banda Mirim costuma ser escalada para os papeis principais, aqui está também a serviço coletivo de contar uma história, como griot, como narradora – o que faz com bastante talento, sem deixar de pronunciar cada sílaba de cada palavra. Nada se perde. Arte e técnica sob controle absoluto.
A outra porção de Romagnoli, a de diretor, também se azeita mais a cada novo espetáculo. Aqui, a plasticidade de algumas cenas é uma coisa inacreditável. A cena da carruagem, quando a mãe volta à sua cidade natal para parir Sidarta, é uma delas. O que os atores fazem com os panos é puro deleite visual. A hora do parto também resultou bem criativa, com muitas varetas apontadas na direção da mãe, enquanto ela vai remexendo os tecidos, que viram a própria criança em seu colo. O resultado é de uma simplicidade magnânima. A cena das samanas é divertida, arranca gargalhadas da plateia, porque essas personagens da tradição indiana se assemelham, no visual, a hippies, a turma do lema ‘paz e amor’. Destaque para os figurinos expressivos, a cargo da dupla Luciana Araújo e Thiago Amaral. Este, aliás, também faz participação especial como ator, no papel da Tentação que se aproxima do jovem Sidarta. Ele próprio usa uma das peças mais inventivas do figurino, uma calça de couro com babados nas pernas. Thiago sempre se destacou no cenário teatral por fazer papeis, por assim dizer, ‘esquisitos’, ousados, ‘maluquinhos’. Aqui isso se confirma. A Banda Mirim soube tirar o melhor de seu convidado.
Buda, da Banda Mirim, é tudo isso e muito mais. Saí emocionado com a reação da plateia, nos aplausos finais. Uma verdadeira ovação. Faltou falar, ainda, da direção musical de Tata Fernandes. Nota dez. Não, nota mil. Há empolgantes citações de várias canções conhecidas, desde Nirvana (Smells Like Teen Spirit) e Beatles (Here Comes the Sun) até Segura o Tchan e As Meninas (Xibom Bombom), esta última muito bem aproveitada nas cenas da Tentação (“o de cima sobe e o de baixo desce”). Hilariante. O repertório culmina com a eficientíssima canção autoral final, em que um dos versos prega: “precisamos é de graça”. Sim, Banda Mirim. O teatro brasileiro precisa de toda a sua graça. Alegria para sempre – e há filosofia melhor do que essa?
Serviço
Local: Sesc Santana
Endereço: Av. Luiz Dumont Villares, 579, Santana, São Paulo
Telefone: (11) 2971-8700
Capacidade: 330 pessoas
Quando: Sextas e sábados, às 20h. Domingos, às 18h
Duração: 70 minutos
Classificação etária: Livre
Ingressos: Grátis para menores de 12 anos. R$ 17 (inteira), R$ 8,50 (meia) e R$ 5 (credencial do Sesc)
Temporada: De 10 de novembro a 17 de dezembro de 2017