Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 26.06.2018

Fotos: Ary Brandi

Morgana está de volta em espetáculo constrangedor

Rosi Campos e sua equipe já acertaram muito em seus espetáculos anteriores, apoiados na carismática personagem do Castelo Rá-Tim-Bum, mas desta vez…

Admiro muito a trajetória de teatro da atriz Rosi Campos. Não há como não reverenciar essa dama, por tudo o que já fez em cena e fora dela para o bem das artes cênicas nacionais. Por isso, o choque do crítico foi imenso na plateia de A Bruxa Morgana Contra o Infalível Senhor do Tempo, em cartaz no vasto Teatro Porto Seguro. Que peça ruim, que produção preguiçosa e fraca, que pena ‘usar’ uma personagem tão carismática e bem-sucedida da televisão educativa brasileira em equívocos tão absurdos.

Em outros países mais sérios, esse uso extra (fora da TV) dos personagens de um programa nacional tão premiado (e difundido no mundo todo) teria, na certa, um controle de qualidade bem mais rigoroso.  Esse espetáculo vai contra todos os altos níveis de talento e criatividade do Castelo Rá-Tim-Bum, onde nasceu e se projetou para o mundo a bruxa Morgana. E cadê o rigor que costumo admirar nos programadores do Teatro Porto Seguro? Acaso eles se encantaram (se deslumbraram?) com a chance de ter a Morgana em seu palco e nem foram conferir a qualidade de texto, produção, direção, interpretação…? Lamentável.

Sempre fico em dúvida se devo ou não escrever sobre peças tão problemáticas quanto essa. Meu primeiro ímpeto é o de deixar pra lá, jogar para baixo do tapete e gastar minhas palavras com outras peças que realmente o público possa aproveitar e desfrutar pelo talento e pela qualidade. Mas acabo me rendendo ao fato de que a crítica poderá interessar a quem está procurando entender os erros dos outros para evitar os seus. Pois que assim seja: escrevo sobre esta Morgana displicente como forma de mostrar o que NÃO deve mais ser feito hoje no teatro para crianças, pois essa importantíssima modalidade de artes cênicas já atingiu, em São Paulo, um nível que, em geral, está a anos luz de distância desse espetáculo tão apressado e descuidado.

E, de cara, justiça seja feita: Rosi e sua equipe já levaram Morgana aos palcos outras vezes, em outros espetáculos e subprodutos do Castelo – e foi sempre com rigor, seriedade e talento suficientes, dignos de aplausos. O que se passou aqui, então, com esse irregular Senhor do Tempo? Pois o que vi no palco foi pura decepção em intermináveis 75 minutos (não cronometrei, apenas é o tempo de duração que está na ficha técnica do material de imprensa).

Tudo começa com uma correta cena de teatro de sombras (Cia. Quase Cinema), mas é só. De resto, não há cenografia. Nada. Um painel branco ao fundo para projeções, na maior parte do tempo com imagens fracas, óbvias, ilustrativas e inconsistentes. Depois, Rosi entra em cena sem uma grande entrada, uma grande cena. Erro que a dama não merecia. Apenas surge andando e falando coloquialmente com o público, dando a impressão de que ainda nem ‘entrou’ na personagem. Senta, abre um livro e lê uma história, aliás, um clássico oriental, O Pote Vazio, que já virou vários espetáculos lindos. Ela lê o conto com pressa, sem entonações, sem respirações adequadas, sem a menor técnica de narradora de histórias. Vai lendo com pressa de que aquilo acabe logo – e o espetáculo mal começou.

 

Que diretora é essa – Suzan Damasceno – que permite tamanho desleixo na ‘contação’ de história? Nem ela (que muito elogiei como atriz no espetáculo de 2013, A Saga da Bruxa Morgana e a Família Real – relembre da crítica clicando AQUI) nem Rosi Campos devem ter visto recentemente espetáculos baseados em narrações, pois o que apresentam ali é pífio, preguiçoso, depõe contra o ofício, a arte e a técnica dos contadores de histórias. Aliás, que diretora é essa que permite tantos desencontros do elenco no palco, marcações tão sem plasticidade e sentido? Há tempos eu não via um elenco tão ‘perdido’ em cena, movimentando-se de lá pra cá sem a consciência de estarem pisando num palco.

Não há trabalho de voz. Nenhum fiapo de cuidado com a emissão da voz, nem de Rosi nem de ninguém do elenco. Quando o personagem do menino Lourival (Pedro Brandi) deixa por um tempo de ser bruxinho e vira humano, a voz do ator é das coisas mais constrangedoras que tenho visto e ouvido. Pedro cai no pior estereótipo possível de se fazer voz de criancinha no palco, um tatibitate vergonhoso. Esse também não deve frequentar teatro para crianças há tempos, porque senão procuraria fugir dessa caricatura tão ruim permitida pela direção. É preciso, antes, ver teatro para querer fazer teatro. Ver o que os outros estão fazendo, para estabelecer parâmetros e não retroceder nas conquistas, ao contrário, avançar sempre mais. Há tantos atores maravilhosos que viram crianças incríveis nos palcos.

Suzan Damasceno, a diretora, está no elenco também, no papel de Tia Malu, uma personagem que propositalmente só erra todas as falas e, depois, as corrige. É engraçado da primeira vez, a gente ri da segunda vez, na terceira ainda tem graça, na quarta temos paciência, mas a partir da quinta vez (e ela faz isso a peça inteira) já vira piada velha, repetida. E pior: quando Suzan está em cena, Rosi – que, afinal, é a protagonista – se anula, se apaga, fica escanteada. Não houve o menor cuidado muito menos generosidade da diretora em manter Morgana em evidência em todas as cenas. A atriz fica jogada em cena, erro fatal de direção.

Tadeu di Pyetro, o pretenso vilão, como Senhor do Tempo, ou Khronus, tenta umas risadas de malvado, um tom de voz um pouco mais solene do que os outros, mas também se perde, não encontra ressonância, por absoluta falta de orientação da direção desgovernada. Para se ter uma ideia, o ator passa a maior parte da peça ajeitando a capa e a faixa na cintura de seu figurino, visivelmente incomodado com a roupa, sem conseguir vestir a ‘segunda pele’, como os figurinos deveriam ser – e aqui também não são.

Como se não bastasse tudo isso, a direção ainda criou uns intervalos sem texto, coreografados, que são inexplicáveis, desnecessários e só aumentam visivelmente o constrangimento do elenco em ter de participar de mais esse equívoco. Dançam desencontrados, sem ritmo, sem a menor graça. Essas cenas não servem pra nada, só para aumentar a tortura da plateia. Por falar em plateia, a diretora ainda inventou as tais ‘cenas de plateia’, mas, claro, sem inovar, sem capacidade de propor nada novo. Faz os atores correrem por entre as fileiras de poltronas, perseguindo uns aos outros. Puxa, que diferente… E, mais adiante, o elenco joga para fora do palco uma grande bola inflável, que é para a plateia se sentir ‘participando’ do espetáculo, jogando a bola de um lado ao outro, por um tempo – um recurso também muito batido e que só revela a fragilidade de um espetáculo que não consegue se resolver no enredo e precisa de artifícios bobocas, como esse da bola inflável.

O texto… Bem, o texto de Edel Holz também parou no tempo. É raso, sem inteligência, sem poesia, sem muito humor, esquemático, rançoso, velho, tendendo para o catequético, para a facilidade da lição de moral, os ensinamentos chatos que deveriam estar presentes nas ações e nos exemplos, e não nas falas. Chatice de quem também não deve ver o que os outros andam escrevendo.

Por exemplo: O conflito de Morgana é querer saber sua data de aniversário, pois quer a chance de poder comemorar e fazer festinha todo ano, como todo mundo. Quando surge o Senhor do Tempo, descobre-se que ele tem essa mesma frustração, também quer saber sua data exata de nascimento. O que faz Morgana? Em vez de ter empatia, de dizer que entende isso muito bem, ela fica dizendo ao Tempo que isso não é importante, que se o ano passou é porque mais um aniversário também se passou… Como assim? Justamente ela, cujo único conflito na peça é esse mesmo? A autora do texto não pensou nisso, não percebeu isso? Morgana diz para o Tempo que isso não é importante, mas segue pela peça querendo muito saber sua data exata de nascimento. Que falta de coerência no pensamento da personagem… Erro fatal do enredo.

Ao final, ufa!, o Tempo resolve o conflito de Morgana assim do nada, sem o menor sentido. Diz a ela: “seu aniversário é hoje!” De onde tirou isso? Qual a explicação? Criança não pode mais ser tratada com essa displicência. Criança entende os ‘buracos’ da trama como ninguém. Um texto desses as subestima. Ah, e então vem a última cena, a festinha de aniversário de Morgana. O crítico pensou: “A produção reservou uma grande cena para o fim, agora vai arrasar nessa festinha!” Qual nada! Uma pobreza absurda. Entram dois dos atores carregando, cada um, meia dúzia de balõezinhos e coraçõezinhos coloridos – e eis a ‘festa’ de Morgana. Escancara-se a pobreza da produção como nunca neste momento, sem a menor cerimônia. Não que, a esta altura, eu esperasse muito luxo e requinte. Mas teatro pobre em criatividade é pior, bem pior, do que teatro pobre em orçamento. É de lascar. E, então, finalmente acabou? Claro que não, a plateia ainda tem de cantar parabéns a você, batendo palminhas. Ah, que delícia…

PS: E Morgana/Rosi ainda ganha um tempinho extra para fazer merchandising de uma doceira e sortear dois vales-bolos para a plateia, um bolo de cenoura, outro de laranja. Os ‘felizardos’ têm de ir lá buscar na doçaria. Agora acabou…

Serviço

Local: Teatro Porto Seguro
Endereço: Al. Barão de Piracicaba, 740 – Campos Elísios, São Paulo
Telefone: (11) 3226-7310
Capacidade: 508 lugares
Quando: Sábados e domingos às 15h
Duração: 75 minutos
Classificação: livre
Ingressos: R$ 50 (plateia) e R$ 40 (balcão e frisas)
Temporada: 9 de junho até 29 de julho de 2018