A Bruxa do Chocolate

Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 09.09.2019

Três exemplos de equívocos recentes nos palcos de SP

Floresta dos Mistérios, A Bruxa do Chocolate e Invocadxs são espetáculos rançosos, que reproduzem um jeito antigo e ultrapassado de se fazer teatro para crianças e jovens. Pena

Gosto muito de me orgulhar do fato de que, desde que acompanho – como crítico militante, há cerca de 30 anos – a produção de teatro para crianças e jovens na cidade de São Paulo, observo uma significativa melhora na qualidade dos espetáculos, no talento de seus adeptos, na criatividade dos projetos. Mas, de vez em quando, ainda me deparo com peças em cartaz, em pleno 2019, que parecem ter parado no tempo e não acompanhado esse salto gigantesco de qualidade.

Falo isso a propósito de três peças que vi recentemente e que me deixaram triste, pelos equívocos que, com todo respeito, eu gostaria que já estivessem extintos dos palcos infanto-juvenis…  São três peças apoiadas em um jeito muito rançoso de se fazer teatro infantil. Ou seus encenadores não estão assistindo às peças atuais, para ter parâmetros melhores de qualidade e para poder constatar que já existem outras formas de abordagem das crianças, ou eles acreditam mesmo nessa fórmula antiga de “teatrinho” caricato, gritado, falsamente alegre, cheio de lições de moral e boa conduta… Pronto, falei. Repito: com todo respeito às produções, que, afinal, nestes tempos bicudos, abrem mercado de trabalho para tanta gente, em cima do palco ou nos bastidores.

Já tentei várias vezes gostar, por exemplo, dos espetáculos de Márcio Araújo (Figurinha Carimbada, Cãofusão Gatonômica…). Em vão. Respeito sua trajetória (inclusive na TV), suas decisões, mas o que ele oferece às crianças – a meu ver, claro – está muito longe do que considero um teatro criativo e de qualidade.  Floresta dos Mistérios, recém estreado no Teatro Alfa, é uma coleção de equívocos. Verborrágico, cheio de lição de moral, cria conflitos que depois se resolvem de formas inconsistentes. A dramaturgia desta peça ainda precisa de muito palavrório para solucionar qualquer questão. Força o tempo inteiro a participação das crianças da plateia, de forma fácil e pouco estimulante. Um espetáculo poluído visualmente, sem o mínimo bom senso estético. A cenografia (Nani Brisque) é carregada e pesada, tanto quanto os figurinos exagerados (Márcio Araújo). Ou seja, cenografia e figurinos brigam entre si. Um poderia ser mais leve, outro mais carregado, ok. Mas não da forma como está… Não há iluminação do premiado e tarimbado Wagner Freire que resista a essa poluição visual imposta pelo encenador. Ele também consegue transformar atores e atrizes que já vi brilharem muito em outros espetáculos (Daniel Costa, Daniela Schitini, Wesley Leal, para citar apenas três nomes) em caricaturas estereotipadas e gritalhonas. O elenco, aliás, se esbarra o tempo todo no palco pequeno da sala B do Alfa, tamanho o atravancamento de adereços, tanta cor, tanto pano, tanta fita… Nem mesmo os sempre maravilhosos bonecos de Márcio Pontes sobrevivem harmoniosamente nesta avalanche de proposições sem equilíbrio nenhum. E que canções vazias, com letras enormes, palavrosas e catequéticas! Não há um refrão contagiante… (música e letras de Márcio Araújo e Tato Fischer, arranjos e direção musical de Gabriel Moreira). A trama é esquemática, tirando proveito do importante tema da preservação do meio ambiente e do respeito à diversidade, mas de forma pobre, didática, discursiva em excesso. Não há um minuto sequer de boas metáforas, situações poéticas que falariam mil vezes melhor do que a atitude professoral do dedo em riste. Gente, isso tudo que listei era o jeito que se fazia teatro infantil nos anos 1970, 1980… Perdão, Márcio Araújo, mas de novo sou obrigado a escrever coisas desse tipo sobre sua visão do teatro para crianças. Ah, a plateia levanta e bate palmas no final? Hoje isso não é mais motivo de orgulho para ninguém: virou hábito mecânico. Ah, as crianças adoram vaiar a personagem da prefeita inescrupulosa? Vaiar está longe de ser uma participação inteligente e instigante para as crianças… O silêncio de uma criança, na maioria das vezes, é a maior prova de que está gostando, de que está aprendendo algo. Floresta dos Mistérios, ao contrário, é uma gritaria do começo ao fim, no palco e na plateia. Para que microfonar os atores, que já foram instruídos a se esgoelar em cena – e numa sala tão pequena?! Saí do teatro completamente atordoado e triste.

Fiquei triste também, no dia 25 de agosto, ao sair da Biblioteca Mário de Andrade no último domingo da temporada da peça A Bruxa do Chocolate, com direção de Grace Gianoukas. Grace merece todo o nosso respeito, sempre. Com sua bem-sucedida, longeva e hilariante Terça Insana, pode-se dizer que ela foi precursora de tantas trupes e stand ups comedies e abriu caminhos para todos esses grupos que hoje renovaram o humor nacional, como Porta dos Fundos, por exemplo. Não há como não “tirar meu chapéu” para Grace. Mas o espetáculo infantil que ela concebeu e fez acontecer (volto a dizer, dando emprego a tanta gente, que maravilha!) também tem questões rançosas muito sérias, do tempo em que montar uma peça para crianças não era uma tarefa encarada com tanto rigor. A Bruxa do Chocolate sofre do mesmo descaso estético, sem cuidado nenhum com cenografia e com figurinos de baixa criatividade. Um pano branco ao fundo, um biombo mal-ajambrado e pouco funcional, um piano que o auditório da Biblioteca não retira do palco por nada, limitando ainda mais o espaço cênico… ufa! A atriz Zuzu Leiva faz mais de uma personagem, todas gritalhonas, histéricas, caricaturais, mal dirigidas (a pior é a velhinha estereotipada…). Grita o tempo todo, apesar de estar microfonada (pra quê microfonar, santo deus?!) Ao fazer a voz dos personagens que são bonecos, ela se esquece e volta com um tom que era de outro personagem… Problema atrás de problema, o tempo todo… A história também não tem uma resolução final muito consistente, por falha da dramaturgia preocupada em despejar lições, querendo mais ensinar do que encantar… A trilha tem canções que não empolgam (surpreendentemente são assinadas por um craque, André Abujamra, que desta vez parece ter sido apenas burocrático…). Fiquei desolado ao ver Nilton Marques, bonequeiro incrível e um manipulador de primeira, perdido em um espetáculo tão fraco e cheio de clichês… Em A Bruxa do Chocolate, em suma, há o tempo todo a impressão de desleixo e pressa, ou seja, faltou cuidado, capricho, mais zelo, mais acabamento e, por decorrência, mais afeto e respeito com o público mirim. O nível de criatividade e de refinamento atual dos espetáculos para crianças está mil anos-luz à frente do que vi na Biblioteca Mário de Andrade. Pena. Vamos melhorar?

Não quero ser repetitivo, pela terceira vez, mas Invocadxs, do grupo República Ativa, que acaba de cumprir temporada no Teatro Alfredo Mesquita, sofre dos mesmos males das duas peças citadas anteriormente. Dramaturgia e encenação são assinadas, na ficha, coletivamente pela companhia. E há crédito de “provocação cênica/direção” para Marcelo Soler. Quando esse mesmo grupo montou O Inimigo, em 2016, eu escrevi assim: “A peça fica no meio do caminho do humor, da emoção, da poesia. Tem importância por seu tema forte, atual e premente, mas não há uma grande cena engraçada, nem há momentos de arrebatadora emoção. Tudo segue no mesmo ritmo do começo ao fim. Os atores não têm carisma suficiente para deixarem marcas de suas interpretações no público.” Essas mesmas frases, sem tirar nem pôr, valem também para Invocadxs, ou seja, o grupo não evoluiu nada. Pega um tema tão importante, tão urgente, como o preconceito de gênero e os abismos entre diversidade e instituições escolares, e deixa tudo chapado, sem vida. Cadê a emoção, a metáfora, o soco na boca do estômago? Cadê a surpresa? Cadê a força do teatro como manifestação viva e pulsante? Tudo isso passa longe de Invocadxs. O elenco forma uma banda pop ao vivo, o que deveria ser empolgante – mas não é. Todas as canções parecem a mesma canção, o mesmo arranjo, com letras (Vivi Gonçalves) sem força nenhuma. Não emocionam, não chocam, não surpreendem. Os figurinos (também assinados coletivamente, o que levaria a crer que são reciclados de peças anteriores) não têm criatividade, são peças de roupa que nenhum jovem usaria, tampouco se justificam como brincadeiras fantasiosas, ou seja, não são nada. Dessa terceira peça, também saí triste do teatro, pelo potencial desperdiçado, pela falta visível de talento.

E tenho dito.