Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 21.08.1981
Onde há fumaça houve fogo
Quem assistir a Brincando com Fogo, o mais novo espetáculo do grupo Manhas e Manias em cartaz no Teatro Ipanema, certamente vai ter a impressão de só estar vivendo de novo, só que de maneira cômica, os episódios mais comuns do seu cotidiano infantil. Desde as brigas entre irmãos por uma barra de chocolate às conquistas amorosas da hora do recreio. Das histórias que se inventam às sempre idênticas observações paternas: “Onde foi que você aprendeu isso? Aqui em casa é que não foi”. E quem nunca ouviu coisas como “Esse menino vive no mundo da lua” ou “O filho do vizinho é um anjo”? As eternas comparações com alguém sempre perfeito que se desejaria fosse o nosso modelo, o aborrecimento quando se diz ou faz qualquer coisa que escape a esse estreito e perfeito molde, pais que brigam o tempo todo e quando veem os filhos em atitudes idênticas imediatamente culpam a “rua” e dizem que não podem ter aprendido isso em casa. E são as pareces dessa casa tipicamente de classe média que servem de cenário invisível para o espetáculo do Manhas e Manias. Dessa vez não se pincelam críticas à família ou a uma visão do mundo pequeno-burguesa em meio ao show de variedades. Todo o show parece investigar essa casa e a criança que nela cresce. Como o primeiro quadro de Brincando com Fogo, onde um menino (interpretado por Chico Diaz) vai abrindo as portas dos diversos quartos de uma casa invisível, e se permite brincar do que quer quando ouve roncos vindos do quarto paterno. Chega inclusive ao auge da proibição: sobe num inexistente banquinho e abre a janela. Entretanto, ao invés de cair como qualquer terror materno haveria de supor, desiste de ficar lá, tamanho om barulho de automóveis que lhe vem da rua. E acaba preferindo brincar sozinho. Todo o quadro se desenvolve sem falas e, ao mesmo tempo em que se traça o perfil do que será o próprio espetáculo e da “criança” que se trará à cena, assiste-se a um exercício de mímica e expressão corporal levados a abo de maneira excelente por Chico Diaz. E todo o espetáculo se encaminha para esse jogo simultâneo com formas circenses de expressão e o cotidiano de uma criança comum.
Se no primeiro quadro buscava-se retratar uma criança apenas fazendo recurso à mímica, as técnicas vão variando de quadro é a ausência a quadro. Noutro, é a ausência de qualquer interlocutor visível que vem a graça, porque as respostas do menino fazem supor que em algum lugar está sua mãe gritando as ordens mais diversas. E todas as suas falas, aparentemente desconexas como: “Que é? Já vou! Já tomei. Já vou!” assim tudo junto, tornam-se bem lógicas desde que a esse interlocutor invisível e mudo se dê o nome de mãe. E, se como num circo, Brincando com Fogo é cheio de números individuais. Como no Sensacional Desafio entre Duas Irmãs ou em Uma História que é Demais. No primeiro é a luta de boxe entre duas irmãs cujo juiz é um pai que grita sem parar “Eu quero ver briga”, e cujo final é uma pancadaria generalizada como nas comédias-pastelão ou nos números circenses de palhaços. Já Uma História que é Demais também retrata uma família e um menino-astronauta. Quando se fala em “astronauta” a imaginação da plateia vai voando para um lado, até que a história encenada a joga para outro. Trata-se de um “astronauta” apenas porque: “Encheram tanto o menino que ele não cabia mais lá dentro da casa. E foi subindo e viu que, de repente ele estava com o mundo nas mãos”. É astronauta porque voa para fora de uma casa chatíssima. E é como se o lado circense do Grupo Manhas e Manias também funcionasse no duplo sentido em que funciona a palavra “astronauta”. Para seduzir a plateia e passar comicamente para ela o seu próprio retrato e, por outro lado, para rir das próprias regras do jogo teatral. Daí, colocarem um dos atores vestidos de menino pulando um aro como um animal amestrado de circo o faria. Meio brincando com a domesticação que tanto a família como o teatro infantil fazem muitas vezes com o imaginário infantil. É como se Brincando com Fogo fosse narrado por crianças que, mais velhas, olhassem para a sua própria domesticação e pudessem dizer: “Sei que estou brincando com foto. Você não pode apagar”. Pudessem encenar criticamente a família e a crianças que já foram. Mas nem o teatro que lhes dá as armas para brincar com as regras do jogo familiar. E também o jogo teatral entra no show. E olha-se para ele como um palhaço de circo olharia. O que fica claro num dos últimos e melhores quadros de Brincando com Fogo: O Tapa. Aí, brinca-se, sobretudo, com o gesto excessivamente teatral, e o gesto se repete comicamente não para se enfatizar a sua teatralização mas para que se ensine aquele que leva o tapa a revidar e dar, por sua vez, um pontapé. É como se um palhaço, de mãos dadas com uma criança presidisse o espetáculo. E trazendo à cena o que essa perspectiva circense misturada à criação de personagens infantis que funcionam como caricaturas da instituição familiar e não da própria criança, tem de mais crítico, o Grupo Manhas e Manias faz de Brincando com Fogo um dos melhores espetáculos infanto-juvenis em temporada atualmente.