Publicada no Correio da Manhã
Por Maluh de Ouro Preto – Rio de Janeiro – 24.09.1950
Branca de Neve e José Antonio
Foi com um receio de ofendê-lo que convidei meu amigo José Antonio para a estreia de Branca de Neve e os Sete Anões de Lúcia Benedetti. Apesar de enormes olhos cândidos, a voz ainda infantil e acessos intermitentes de timidez, meu amigo José Antônio já passou da idade de acreditar em fadas, se é que jamais acreditou… Está numa idade intermediária, nem criança nem rapazinho. Na idade das perguntas sérias e dos primeiros planos, começando a descobrir o mundo! Inteligente, moderno e decidido, esconde sob as feições angelicais uma alta opinião de si próprio, revelada em convicções sólidas, respostas taxativas, gostos firmes, uma noção clara de seus deveres e obrigações e um alto senso de economia. Meu amigo José Antonio é um garoto que infunde respeito, desses que não se manobra a vontade, pois imediatamente e com segurança sabe decidir o que quer e o que não quer, o que lhe convém ou não. Temi que se considerasse crescido de mais para teatrinhos infantis, que se insultasse com a sugestão e firmemente respondesse preferir a praia, um cinema, ou seu posto de goleiro no time futebolístico da praça fronteira a sua casa.
O convite, no entanto foi aceito com alacridade. Inclusive, pelo menos assim nos contou rindo sua mãe. Meu amigo José Antonio declarara que iria de qualquer maneira, mesmo se fosse num dia de semana e tivesse que faltar ao colégio. Numa lógica irrepreensível provara por a mais do que “aula alguma no universo” inteiro era mais importante que sua ida a Branca de Neve em minha companhia. Creio não ser pretensiosa revelando que o jovem José Antonio nutre por mim uma admiração oficialmente secreta, disfarçada por frases irônicas e miradinhas desdenhosas. Mas, uma amiga da família, sua amiga! Com livro publicado, crônicas nos jornais e retratos nas revistas! Às vezes distrai-se e chega a me chamar de senhora!
Como já disse, a admiração é secreta, e domingo de manhã meu amigo José Antonio todo polido, lustroso, penteado e escovado, na velhice provecta de seus treze anos e na elegante importância azul marinho de suas primeiras calças compridas, logo de chegada foi perguntando com fingida displicência, “Não é para criança? Se for não serve! Vê lá!”. Assegurei – lhe que absolutamente não, não era só para crianças, que histórias bonitas não se restringem a limites de idade, e que a Branca de Neve em qualquer versão e acima de todas quando interpretada pelo talento de Lucia Benedetti, pertence tanto aos velhos e adultos, quanto aos moços e pequeninos. Mas apesar de tudo, foi com uma cara séria, agravada ainda pela quantidade saltitante e excitada das crianças presentes, que meu amigo José Antonio entrou no teatro. Contudo, desde a entrada da avozinha, desde a abertura do pano e o aparecimento do lindo cenário de Nilson Penna, desde as primeiras linhas seu rosto se desanuviou… Como todos os que assistiram, críticos, ,escritores, artistas, meninotes, criancinhas, avôs e avós, pais e mães,meu amigo José Antônio sucumbiu ao encantamento da doce princesinha branca como a neve, de lábios vermelhos como sangue e cabelos negros como o ébano… Vibrou com as desventuras da Aia, as sábias declarações do Espelho, fúria vaidosa da bela Rainha e a fascinante figura do Príncipe. Como todos, mergulhou no mundo mágico da infância… Este mundo maravilhoso, cheio de simplicidade poética que nos breves instantes em que conseguimos revê-lo, nos dá uma nostalgia doce, um desejo louco de voltar a meninice para reaver a capacidade feliz de acreditar em fadas e Príncipes Encantados… O mundo de sonho que Lúcia Benedetti evoca melhor do que ninguém.
Quando a cortina desceu sobre o primeiro ato, meu amigo Jose Antonio batia palmas freneticamente. Depois lembrou-se quem era, passou a aplaudir com mais discrição e murmurou numa voz expressiva: “Como é bonita a Mara Rúbia!” Dos outros dois atos nem se fala… Riu com os anões, teve raiva e pena do carrasco, ódio da bruxa. Suspirou com o Príncipe e enterneceu-se com a deliciosa lembrança do coração escapulário entregue a Rainha que se torna boa…
Meu amigo Jose Antonio divertiu-se regiamente! Nos intervalos trocou ideias com Agnelo Macedo, deu parabéns a Lúcia, conversou com Raimundo Magalhães Júnior, e sorriu para Rosinha, a filha do casal. Lamentou a ausência de Paschoal Carlos Magno, fitou atentamente Ainda garrido, reconheceu Cole, foi apresentado a Dinah Silveira de Queiroz, Agostinho Olavo e Olga Obry. Agia com desembaraço e presença de espírito. No entanto, quando finda a peça, e acendendo a seus ardentes desejos, levei-o ao palco e bastidores para que cumprimentasse os artistas, encabulou, recuou, enrubesceu, não teve coragem… Contentou-se em abrir mais ainda os enormes olhos claros e olhar, olhar, olhar…
Saindo do teatro, meu amigo José Antonio ia calado e pensativo. Repetidamente instado para que se externasse, disse apenas: “É bom, gostei”. Mas depois do almoço, reanimado e encorajado por um suculento bife e uma vasta porção de morangos com creme, com a segurança sóbria de um crítico experimentado, deu sua positiva, definida e inabalável opinião: “Nunca pensei que fosse ser tão bom! A moça que escreveu, a tal de Lúcia, é mesmo um taco! A peça serve para todo mundo. Qualquer um gosta. Crianças, gente grande”, e colocando-se numa categoria especial, acrescentou peremptoriamente: “E eu também!”.