Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 09.09.2016
Teatro mostra ao público infantil que alternar humores faz parte de viver
Berenices, do Grupo Morpheus, ensina as crianças a aceitar que somos muitos dentro de um corpo só
Teatro de animação é um segmento das artes cênicas muito sério, específico e cada vez mais sofisticado. Em muitas companhias, foi-se o tempo em que “brincaar de fantoches” bastava para se colocar um espetáculo de pé, cobrar ingressos e esperar o público. O compromisso com a técnica aliada à dramaturgia tem sido responsável por pérolas imperdíveis em cartaz. Recentemente, elogiei muito os espetáculos recentes de teatro de animação de grupos como Artesanal e Truks. Junto a eles, nesse texto de hoje, o Grupo Morpheus, com o incrível Berenices em cartaz aos sábados no Sesc Consolação e aos domingos no Sesc Ipiranga.
A seriedade e o comprometimento com que é contada a história da menina Berenice, com sua dor de crescimento sua sede por entender o mundo dos adultos, sua angústia com a chegada de um irmãozinho à família – tudo isso nos encanta do começo ao fim. É uma dramaturgia quase sem texto, mas que dá conta de todo esse conteúdo rico e multifacetado da vida de uma garota.
No programa da peça, há um selo que cola e gruda algumas páginas de seu miolo com os seguintes dizeres no adesivo: “Abra somente após o espetáculo!” Grande sacada de produção. O que se vê nessas páginas são brincadeiras, passatempos (como cruzadinhas, ligue os pontos, caça palavras), mas há também a página que ‘revela’ todas as Berenices que existem dentro da menina Berenice – e que desfilam pelo espetáculo o tempo todo, alternadamente, mostrando o quanto é complexo crescer e ter de vivenciar os mais diversos tipos de temperamentos e humores que guardamos dentro da gente.
É, assim, um espetáculo muito bem construído, com um teor de autoconhecimento desenvolvido com delicadeza, poesia e muita graça, sem o peso do didatismo excessivo e da chatice catequética psicologizante. A peça é potencialmente atraente e ultra importante para quem lida com a infância, sejam pais, professores, pedagogos, terapeutas. Surgem em cena a Berenice Maisum, que sempre quer mais; a Berenice Euconsigo, corajosa e destemida; a Berenice Olhosquevoam, que sonha até de olhos abertos; a Berenice Cuidademim, a Serena, a Quebratudo, a Aiaiai… e assim por diante. E, ao final, é encantadora a cena em que a menina percebe que isso não se dá só com ela. Ela ‘enxerga’ em sua mãe várias ‘mães’ na mesma pessoa. Em um mesmo dia, muitas delas se manifestam. A garota Berenice, ao perceber isso, cai em uma gargalhada deliciosa, que vale mais do que mil palavras.
O Grupo Morpheus existe desde 2002 e já se apresentou pelo mundo com seus espetáculos de bonecos. Vietnã, Irlanda, Argentina, Colômbia e Chile são alguns dos países por onde eles já passaram. A ‘capitã’ da nau é Verônica Gerchman, que também é uma das fundadoras da Truks. Verônica assina texto e direção geral de Berenices – mantendo com propriedade o lugar de honra que conquistou nesses anos todos ao praticar teatro de animação. João Araújo, responsável pela direção de bonecos e máscaras, também merece menção por seu talento e criatividade sem limites. Os dois, Verônica e João, estão em cena, ao lado de Cassia Domingues, Daniela Boni e Zéantonio do Carmmo, todos incríveis como atores-manipuladores.
Já na cena inicial percebe-se o ‘show’ de técnica e emoção que virá pelos minutos seguintes. A menina (boneca) está mexendo uma perna, dobrando-a e desdobrando-a, com um movimento contínuo que empurra com ritmo as costas de uma das atrizes em cena. É simples e tocante, pois basta isso pra gente entender que a montagem opta pela perfeita integração e constante interação entre os bonecos e seus manipuladores. Mais adiante, quando a menina sonha e depois acorda, os atores-manipuladores também acordam juntos e se espreguiçam, esticam mãos e corpos. Essa é outra cena muito simbólica da forma como o Grupo Morpheus trabalha: os manipuladores também são personagens. Destaco, ainda, a cena da menina no balanço, extremamente alegórica e psicanalítica: o vento bate no rosto de Berenice e sua fita amarela solta-se de seus cabelos e voa longe, marcando o fim de determinada fase da infância e início de descobertas do mundo adulto. É tudo muito bem pensado e estudado.
Para encerrar, comento que a trilha também é importantíssima no espetáculo, com seus sons onomatopaicos encantatórios, culminando com uma poética canção final, que fala das múltiplas Berenices e seu rico mundo interior. Em suma, não perca Berenices por nada.
Serviço
Aos sábados:
Local: SESC Consolação – Teatro Anchieta
Endereço: Rua Doutor Vila Nova, 245 – Vila Buarque – São Paulo
Telefone: (11) 3234-3000
Quando: Sábados, às 11h
Temporada: Até 24 de setembro
Aos domingos:
Local: SESC Ipiranga
Endereço: Rua Bom Pastor, 822 – Ipiranga – São Paulo
Telefone: (11) 3340-2000
Quando: Domingos, às 11h
Temporada: Até 2 de outubro
Ingressos nas duas unidades: Grátis para crianças de até 12 anos
R$ 17,00 (inteira), R$ 8,50 (meia) e R$ 5,00 (credencial Sesc)