Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 18.04.2018
Bento, o bebê que já nasceu batucando
Espetáculo acerta ao apresentar às crianças o mundo diversificado de ritmos e gingas da cultura afro-brasileira
Quando li que haveria uma estreia de peça para crianças com texto de Daniela Cury e Mariana Elisabetsky e direção de Eduardo Leão e Luciana Ramanzini, fiquei com grande expectativa, pois se trata de um quarteto da pesada, quatro artistas do primeiro time do que melhor se produz em São Paulo nesse setor. Bento Batuca, a peça em questão, em cartaz no Teatro Jaraguá nessa primeira temporada (uma produção da equipe da Oficina de Alegria), preencheu minhas expectativas. É atração de nível, com talentos transbordantes e uma importante valorização de elementos musicais da cultura afro-brasileira.
É claro que há sempre riscos quando se trata de uma estrutura dramatúrgica de “jornada do herói”, sobretudo a ameaça constante de perda de ritmo na narrativa, pois o herói segue sua trajetória de crescimento e aprendizado (‘viajando’ por Bahia, Recôncavo Baiano, Pernambuco, Rio de Janeiro e voltando para São Paulo, tudo acompanhado por mapas projetados no telão ao fundo do palco) e esses passos em direção inclusive ao autoconhecimento não podem cansar a plateia, não podem ralentar o tempo do espetáculo. Na sessão a que fui, tive um pouco essa sensação, mas nada muito grave e determinante que tenha apagado o brilho da proposta – e nada que não possa ser resolvido em breve, conforme os atores forem entrando pelas semanas afora de apresentação da peça.
Por falar nos atores, o elenco é muito bem escalado e afinado em suas tarefas de cantar, dançar, lutar, representar para as novas gerações a força de manifestações como capoeira, maculelê, frevo e samba. Formam outro quarteto harmonioso da ficha técnica: Sidney Santiago Kuanza (o protagonista Bento), Lena Roque, Fernando Oliveira e Vitor Bassi. Brincam com a voz, jogam capoeira, dançam frevo, sambam, cantam com propriedade, enfim, dominam o ofício por completo, o que é raro nos elencos, infelizmente. Acerto total da direção geral e da direção de movimento (Gabriel Malo).
Gosto muito do, digamos assim, ‘atrevimento’ da dramaturgia, que, de repente, mescla os diálogos com a leitura das rubricas da peça pelos próprios atores. Tive uma surpresa boa com isso, porque o efeito resulta forte e fluente e não é usado em excesso. Imagino que os professores (sobretudo os de literatura e língua portuguesa) possam usar isso em sala de aula com as crianças, ou seja, usar exemplos do texto de Bento Batuca para começar a conversar com elas sobre as diferenças de intenção entre a forma dialógica e a opção pela narração.
A cenografia de Fabio Namatame muito apropriadamente circunscreve as ações a um espaço circular mítico, onde os atores, toda vez que vão adentrá-lo, pisam com respeito ritualístico. Muito bom. Namatame também desfia seu talento no figurino, muito bem pesquisado, sobretudo o das personagens históricas, como Mestre Besouro Mangangá, Guerreiro Maculelê, Maestro Nunes e Tia Ciata.
A música do espetáculo, a cargo do grupo que assina a direção musical, Os Capoeira (Felipe Roseno, Mestre Dalua, Cauê Silva e Contramestre Leandrinho), é contagiante e muito elucidativa da trama em questão. Entre os instrumentos estão atabaques, berimbau, pandeiro, surdos, chocalhos e alguns objetos sonoros, executados ao vivo por Cauê Silva, Heverton Faustino (Bbzão), Paulinho Percussão, Rogério Rogi e Contramestre Leandrinho. Os cânticos de capoeira, a meu ver, são o ponto alto – contagiando a plateia com uma ginga inesquecível. Adoro também o momento em que Sidney Santiago dança vários passos de frevo, nomeando-os para o público. Didático sem ser chato.
Destaco também a incrível cena inicial, sobre o nascimento de Bento Batuca. É muito bem-feita, sem ser explícita nem batida. O choro do bebê e sua vontade de já batucar dentro do berço dão o mote para o enredo que virá a seguir, um menino com alma de batuqueiro descobrindo os ritmos do Brasil, ao mesmo tempo em que tem de lidar com o ciúme do anúncio de um novo bebê na barriga da mãe. “Onde eu vim parar?”, pergunta Bento, ao iniciar sua jornada de viagens. “Estarei em uma espécie de universo paralelo dos filhos mais velhos?” Uma fala brincalhona muito bem escrita pelas autoras. E nada direi sobre o lindo final, para não estragar a surpresa do público, apenas que é de uma delicadeza ímpar nessa questão tão comum nas famílias: o filho mais velho tendo de lidar com a ‘novidade’ da casa.
Ah, ainda sobre a dramaturgia, talvez valha a pena registrar que, na sessão em que estive, quando os atores disseram a frase “Terei de pagar o pato?”, uma criança da plateia gritou para a mãe: “Mas que pato?!” São cuidados na escrita que precisam ser sempre observados, pois existem certas expressões nem tão antigas assim, mas que a nova geração não usa mais.
Serviço
Local: Teatro Jaraguá
Endereço: Rua Martins Fontes, 71 (Hotel Jaraguá), Consolação, São Paulo
Telefone: 11 3255-4380
Capacidade: 270 pessoas
Quando: Sábados às 16h e domingos às 11h e às 16h
Ingressos: R$ 40,00 (inteira) e R$ 20,00 (meia)
Temporada: De 7 de abril a 13 de maio de 2018