Em Beckett, a ginástica da rotina cotidiana

Crítica publicada no Jornal O Dia, D Fim de Semana
Por Armindo Blanco – Rio de Janeiro – 06.11.1992

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Os bonecos do absurdo

O grupo Sobrevento faz teatro de animação recorrendo à técnica japonesa do bunraku (do nome do criador, Bunrakaken, um artesão de Osasco), em que a manipulação é feita não com fios ou varas, como no teatro ocidental de marionetes, mas com luva e a seis mãos, ao mesmo tempo. E os manipuladores não fazem questão de se ocultar, permanecem bem visíveis, com seus chapéus de feltro enterrados na cabeça e as roupas escuras, hibernais. Tampouco há a tradicional empanada, mas um cenário, como em qualquer outro tipo de teatro – um velho quarto de cuja janela os bonecos, extraordinariamente expressivos em sua inexpressividade (seus rostos são disformes, sem olhos), passam a ideia de que a vida não é só muito som e fúria para nada, mas uma palhaçada de mau gosto que, no entanto, nos faz rir (sem o riso seríamos sufocados pela angústia).

O espetáculo com o nome de Beckett reúne duas pantomimas do próprio – Ato sem Palavras I e Ato sem Palavras II – e uma peça curta, Improviso de Ohio, originalmente concebida para atores. Na primeira, um boneco tenta alcançar uma garrafa que sempre lhe escapa, como num jogo de gato e rato. Essa situação, tipicamente beckettiana, refere-se à condição humana derrotada pelo esforço vão de superar seus próprios limites e os que a degradação do mundo lhe impõe. Na segunda, uma mulher e depois um homem repetem solitariamente os gestos rotineiros de cada dia. Morrerão sem saber por que viveram (a ausência de linguagem falada simboliza a ausência de vida) porque não é vida depender do relógio, fazer ginástica, cumprir as abluções matinais, correr de um lado para outro, amar às pressas, dormir. Por fim, Improviso de Ohio: um homem lê a outro a história de um homem que vinha todas as noites e lia uma história a outro. Até que, um dia, não veio mais. Nada restava a dizer.

O teatro de Samuel Beckett (Nobel/69) é minimalista. Derrisório. Os personagens dialogam, até que começam a monologar e acabam por nada mais dizer. Aliás, nunca tinham dito nada, apenas emitido sons a que os outros atribuem um significado particular. E absolutamente inútil.

Isolamento, decrepitude, absurdo do real, inanidade da palavra, dissolução do eu. Pelo rigor e a precisão, o Beckett do Sobrevento é um espetáculo da mais alta categoria. Pena que não se possa pedir bis, como na ópera.

Serviço:
Teatro da Aliança Francesa de Botafogo, Muniz Barreto, 730, de quinta a sábado, 21h, e domingo, 20h. Ingressos: Cr$ 20mil / quintas e sextas, e Cr$ 25 mil / sábados e domingos.