Viviane Juguero. Foto Jessé Oliveira, editada por Camilo Lélis

Acesso a arte na infância conecta o ser humano a um novo mundo

Esta entrevista foi realizada pela jornalista e escritora Priscila Pasko, para o Jornal do Comércio, em 17 de março de 2020

Priscila Pasko: Olá, Viviane. Sou jornalista freelancer e estou produzindo uma reportagem especial para o Jornal do Comércio. O tema é a relação das crianças com o circuito das artes. Gostaria de te entrevistar sobre o teatro. Queria saber se posso contar contigo.

Viviane Juguero: 
Olá, Priscila. Agradeço o convite. Certamente, podes contar comigo. Trabalho com arte para a infância há quinze anos, como dramaturga, atriz, diretora, compositora e pesquisadora. É muito comum que artistas populares, que é o que me considero, atuem em diversas funções. Por essa razão, entendo que sou uma brincante, assim como diversas outras pessoas que trabalham comigo nos projetos que desenvolvo no Bando de Brincantes. Como investigadora, tenho diversos artigos, ensaios e entrevistas publicados sobre o tema da arte para a infância, além de minha dissertação de mestrado e tese de doutorado. A arte para crianças é um desafio, uma paixão e uma bandeira em minha vida.

Priscila Pasko:
Em linhas gerais, podemos apontar uma época/período em que o teatro começa a pensar na criança como público?

Viviane Juguero: Embora existam registros de teatro infantil no século XIX, principalmente de peças encenadas por crianças para adultos, e de teatro de bonecos em tempos ainda mais remotos, é no século XX que o teatro para crianças passa a ser enfocado como uma linguagem específica. No Brasil, o trabalho de Lúcia benedetti, em 1948, com a estreia da peça O Casaco Encantado é considerado o marco inicial do teatro para a infância. Benedetti também contribuiu como pesquisadora na área. Nessa trajetória, surge o trabalho de Maria Clara Machado que institui as bases de um teatro para crianças comprometido estética e pedagogicamente, não no sentido equivocado de  realizar espetáculos didatizantes, mas sim, na medida responsável de compreender as especificidades comunicativas da arte teatral como integrantes do processo global de formação da criança. O trabalho desenvolvido no Teatro Tablado, no Rio de Janeiro, desde a década de 1950 até os dias de hoje, mesmo após a morte de Machado, continua sendo uma referência em teatro para a infância no Brasil. Outro marco inicial relevante é o lirismo presente no trabalho de Ilo Krugli, que trouxe novas percepções de construção poético-discursiva ao teatro para crianças, na década de 1970. Essa discussão emerge no momento em que são aprofundados estudos sobre psicologia infantil e a respeito da adequação de abordagens pedagógicas condizentes com os estágios de desenvolvimento da criança. Neste processo, é preciso considerar o impacto do filme Branca de Neve, da Disney, na década de 1930, que inaugurou o cinema para a infância no Ocidente. Abordo essa trajetória nos capítulos “Gênese” de minha dissertação de mestrado e “Dramaturgia radical para crianças” de minha tese de doutorado. Vale destacar o conceito de “dramaturgia radical” que elaborei no doutorado tem base na ideia de radicalidade de Paulo Freire e aborda as raízes que vinculam os discursos artísticos às estruturas subjetivas e sociais. Ou seja, a “dramaturgia radical” é um posicionamento bastante distinto dos radicalismos extremistas.

Priscila Pasko –
Em relação a outras expressões artísticas, é correto dizer que o teatro é uma das mais próximas, ou a que apresenta mais oferta ao público infantil, pelo menos aqui no Brasil?

Viviane Juguero:
Não tenho dúvidas de que, na realidade brasileira, o teatro é a arte que mais apresenta produções dedicadas à infância. Isso se deve, por um lado, ao interesse de profissionais da área da arte e da educação por esse trabalho específico. Por outro lado, apesar de o teatro para a infância ser a área que menos recebe incentivos em editais públicos, é o setor onde existe uma maior demanda espontânea social. Isso gera trabalhos que, muitas vezes, estão mais interessados no retorno financeiro e nas oportunidades de trabalho do que no diálogo com a criança em si. Nesse sentido, é comum encontrarmos discursos que ressaltam a defesa que o  teatro para a infância é uma ação de formação de plateia para o teatro adulto. Embora esse aspecto seja relevante e mesmo oportuno, em alguns casos, vale refletir sobre qual a motivação que leva à criação de arte para crianças. Qual o interesse real em aprofundar conhecimentos sobre as especificidades dialógicas da infância? Qual é a relação estabelecida com a criança hoje, aqui, agora, como um ser social atuante, mas que possui suas especificidades? Nesse sentido, chamo a atenção para o que chamo de “lógica lúdica infantil”, noção que desenvolvi mais amplamente em meu doutorado (no tópico de mesmo nome) e que abordei pela primeira vez no capítulo “Atirando o pau na brincadeira” de minha dissertação de mestrado.

Priscila Pasko:
Aproveitando o gancho da pergunta acima: falar em “teatro para criança” é adequado, necessário (até mesmo pelo conteúdo/texto)? Ou seja, são acionados outros dispositivos para a criação dirigida a este público, não é?

Viviane Juguero:
O teatro para a infância, assim como as distintas criações artísticas para crianças, solicita fundamentações específicas que se constituem na soma do mesmo conhecimento artístico necessário à criação artística para o público adulto, somado ao estudo das especificidades da infância em seus distintos estágios de amadurecimento. Isso quer dizer que é essencial que se escute Paulo Freire quando ele ressalta a importância “de pensar no modo de pensar” para que essa comunicação possa resultar em um verdadeiro diálogo. Por outro lado, a criação artística possui ferramentas particulares. A construção discursiva teatral acontece de modo pluriperceptivo e multissignificativo, composto de distintas camadas de signos que compõem proposições que possuem um papel fundamental no desenvolvimento plural da criança. Nesse sentido, como representante do Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude (CBTIJ), que, por sua vez, representa a Associação Internacional da mesma área (ASSITEJ), e como integrante da Associação dedicada a investigações acadêmicas sobre o tema (ITYARN), ressalto nossa luta em solicitar políticas culturais que contribuam no amadurecimento e formação da área. No último 20 de março, dia em que se comemora o teatro para crianças mundialmente, divulgamos um manifesto que reflete sobre essas especificidades e está disponível no link https://cbtij.org.br/51622-2/

Priscila Pasko: Qual é a importância do teatro para a criança? De que forma ela é atingida?

Viviane Juguero:
Essa é uma questão essencial que tem sido foco de meus estudos há muitos anos. A teatralidade tem um papel fundamental na formação humana e está diretamente vinculada às fundamentações emocionais que geram valores, desejos e modos de relação com o mundo, além de ser um aspecto basilar no desenvolvimento da consciência. Ela surge nas brincadeiras de faz de conta, por meio de uma colagem discursiva na qual a criança busca elaborar suas vivências no mundo. Na dramaturgia, ou seja, nas construções de discursos artísticos de diversas ordens (desde narrativas audiovisuais em mensagens de whatsapp, cinema, televisão, contação de histórias e, evidentemente, teatro), as crianças recebem estímulos emocionais, cognitivos, sensoriais e expressivos. Esses estímulos, em diálogo com as reações socioculturais de cada contexto, oportunizam distintos modos de percepção de pertencimento, de exclusão, de potência e impotência, de respeito à diversidade ou assimilação de comportamentos hegemônicos. No teatro, essa relação ocorre de forma muito particular e especial, pois a criança integra um universo onde sua contribuição é essencial ao acontecimento. A plateia é quase como se fosse mais uma personagem da história. Suas reações, seu silêncio, seus ruídos, sua cumplicidade constituem o acontecimento artístico de modo contundente, fazendo com que cada apresentação seja uma experiência única para todas as pessoas que particiṕam dela. No teatro, a criança tem uma vivência interpessoal, ao relacionar-se com as reações das demais pessoas, o que, por contraste ou similaridade, possibilita uma percepção mais ampla de si mesma. Além disso, o teatro é uma arte viva tridimensional que trabalha com possibilidades sinestésicas de distintas ordens, ampliando o repertório de composições perceptivas e comunicativas infantis. Evidentemente, como em qualquer área, existem trabalhos de todos os tipos e qualidades. Por essa razão, é fundamental que se discuta sobre a formação na área tanto de quem cria quanto das pessoas responsáveis que fazem essa mediação. Abordo essa questão no artigo “O papel do mediador quando a criação vai ao teatro”, dentre outros estudos.

Priscila Pasko:
Sobre a criança como público: como você avalia a relação dela com o espaço (teatro) e com os atores, durante a peça? Como se “espera que ela se comporte”. É diferente do adulto que senta e assiste em silêncio, por exemplo.

Viviane Juguero:
Esse é mais um tópico que requer bastante atenção e cuidado. A criança tem uma relação espontânea com o que assiste e esse é um dos maiores deleites e desafios de quem trabalha com elas. É natural que reaja às distintas situações e dialogue com elas à sua maneira. Posturas repressoras antes de um espetáculo teatral, por exemplo, resultam em ecos negativos na percepção da criança sobre aquela experiência. Por outro lado, a criança precisa de orientação. Tanto o acolhimento afetivo quanto a saudável apresentação dos limites são fundamentais para que a criança tenha a estabilidade emocional necessária à fruição artística. Inúmeros trabalhos para a infância, com diferentes propostas estéticas, são experiências altamente significativas na vida de uma criança e resultam em prazer, curiosidade e estímulos diversos que ampliam o seu repertório perceptivo, comunicativo e afetivo. A criança poderá aproveitar melhor essa experiência se tiver a cumplicidade de pessoas adultas a orientem. Evidentemente, essa orientação é de responsabilidade das pessoas que tem intimidade com a criança. Como em qualquer situação social, a criança precisa de orientação e auxílio. A função paterna de mostrar os limites, se estiver associada ao acolhimento da função materna, propicia que a criança se sinta segura e ativa para usufruir desta experiência coletiva, além de ser um aprendizado social de respeito à fruição do restante da plateia.

A arte para a infância é um tema complexo que não pode ser nem negligenciado, nem submetido a determinismos redutores. A criança integra o ambiente social e tem acesso a diversas produções culturais. O papel do teatro para o público infantil é propor composições pluriperceptivas dialógicas que instiguem a criança, respeitando sua forma de se relacionar com o mundo. Existem muitos caminhos e não há uma fórmula para essa composição. Em meu trabalho, busco nortear minhas escolhas a partir de um rigor investigativo que está associado à responsabilidade, ao comprometimento com a diversidade, às escolhas disponíveis em cada contexto, e, principalmente, ao profundo amor que move meu trabalho.

Por fim, compartilho, com quem tiver interesse em aprofundar os tópicos enfocados, o link onde estão disponíveis meus estudos: http://bandodebrincantes.com.br/?pg=11232

(*) Viviane Juguero – Artista, professora e Doutora em Artes Cênicas e representante do CBTIJ / ASSITEJ Brasil no Rio Grande do Sul

Partes dessa entrevista foram utilizadas na composição da matéria “Acesso a arte na infância conecta o ser humano a um novo mundo”, publicada no Jornal do Comércio em 17 de abril de 2020. A matéria está disponível no link https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/especiais/reportagem_cultural/2020/04/734307-acesso-a-arte-na-infancia-conecta-o-ser-humano-a-um-novo-mundo.html