Capa da Dissertação

 

 

 

 

 

 

 

 

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O texto a seguir faz parte da dissertação de mestrado “Bando de Brincantes: um caminho dialético no teatro para crianças”, de autoria de Viviane Juguero. O trabalho, realizado sob a orientação do Prof. Dr. João Pedro Alcantara Gil, foi aprovado com louvor no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Para facilitar a pesquisa dos distintos enfoques apresentados nesse trabalho, o Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude (CBTIJ) decidiu publicar a obra por partes, mensalmente. Para tanto, foram feitas pequenas alterações no texto original.

No primeiro capítulo, apresentado a seguir, Viviane Juguero reflete sobre a questão da proximidade e do distanciamento presentes na proposta de olhar para seu próprio trabalho e para o tempo em que vive.  Expõe também um breve histórico do teatro para crianças desenvolvido no Brasil até chegar à atuação do Bando de Brincantes. Boa leitura!

Capitulo 1

1. GÊNESE: Um caminho dialético no teatro para crianças [01]

O caminho dessa pesquisa sobre teatro para crianças foi construído buscando abarcar características dialéticas com base em proposta de João Pedro Alcantara Gil, criada a partir de Karl Marx, na qual

o conhecimento é visto como um todo construído de três momentos: empírico, abstrato e concreto. O empírico é o todo caótico, o abstrato é formado por conceitos simples e o concreto é complexo, uma totalidade articulada. De acordo com MARX, a abstração é um momento necessário para o conhecimento. O empírico é aquilo observável, mas não é concreto. O concreto é a unidade do diverso, é o verdadeiro ponto de partida para se chegar ao concreto do pensamento (GIL, 1999, p. 31).

Esses três momentos da construção do conhecimento não se dão de forma sucessiva e organizada em etapas estanques, mas sim, são profundamente atravessados uns pelos outros. A forma como as teorias são assimiladas dependem dos conhecimentos, valores, experiências e características de cada um. As práticas são modificadas conforme as reflexões e informações resultantes de momentos de abstração.

O conhecimento de cada pessoa é construído de forma bastante particular nessa relação entre vivências empíricas e abstratas, bebendo na experiência coletiva de sua comunidade, na história de sua nação e de toda a humanidade. O concreto, conforme Gil (1999) é a unidade do diverso, ou seja, é onde se encontra a existência de relações que unem experiências empíricas e abstratas, resultando no concreto do pensamento, o qual passará a influenciar novas práticas, em um movimento contínuo.

Coerente com essa abordagem, neste capítulo apresento vivências pessoais, bem como, informações acerca do desenvolvimento do teatro para crianças no Brasil, as quais considero determinantes na construção do processo de trabalho do Bando de Brincantes, aqui analisado.

Nas linhas a seguir, refiro também a posição em que me encontro enquanto pesquisadora envolvida ativamente com todo o processo. A intenção é que a informação a respeito do local em que me coloco (o qual influencia o ângulo que focalizo) seja levada em consideração na análise crítica que o leitor construirá sobre o trabalho.

1.1.    Sob o foco de luz transversal

A brincadeira era assim: a luz entrava pela basculante do Quartelão. Assim chamávamos a peça maior do porão [2], onde dormíamos e onde minha mãe, no inverno, me dava um delicioso banho morno na bacia, pois o banheiro ficava fora de casa. Quantas boas recordações do Quartelão! À tardinha, entrava uma luz pela basculante, e a Dodá, a senhora que até hoje eu e meus irmãos tratamos como “segunda mãe”, brincava comigo de adivinhar qual o vizinho que passava, conforme a sombra do sapato que era projetada na parede. Essa brincadeira era muito divertida. Somávamos a imagem ao som dos passos e, pimba: uma adivinhação! Nesse horário, o ângulo da luz estava perfeito para a brincadeira. Essa foi minha primeira experiência de apreciação do efeito que há no teatro de sombras, embora só tenha me dado conta disso depois de adulta.

Sob o foco de luz transversal, todo aquele universo foi reconstruído de forma criativa. Para mim, tão pequena, ele sempre foi assim: um mundo lúdico, afetivo, um útero aconchegante e acolhedor. Interessante é que depois de muitíssimos anos sem tocar nesse assunto, esses tempos liguei e perguntei à Dodá se ela lembrava daquela brincadeira, e ela me respondeu: Mas como tu te lembra disso, pessoa? Tu era tão pequeninha, guria!  Ao mesmo tempo, o porão tinha acesso a um pátio amplo e iluminado, onde eu e meus irmãos podíamos brincar à luz do sol, quando não estávamos no Colégio São Luiz. Educação sempre foi prioridade para minha mãe, a incansável professora Sandra.

As reflexões do mestrado me fizeram ter consciência do quão profunda é a relação entre minha primeira infância e o amor e o respeito com que me dedico à arte para crianças. Percebi, dessa maneira (e utilizo isso em todos os cursos que ministro para educadores), que não podemos aprimorar o trabalho com crianças se não reconhecermos nossa infância interior, recordando-a, reelaborando-a e ressignificando-a. Por isso refiro, com muito carinho, o porão onde morei, dos dois aos seis, quase sete, anos de idade. Um porãozinho, que, por ser um tanto escuro, mostrava o desenho da luz. O negativo que se revela no breu, fazendo com que a imagem venha à tona.

Por outro lado, pensar o teatro para crianças, a partir da prática do Bando de Brincantes, é falar de algo que está acontecendo agora, de fatos recentes e de projetos futuros. Acima de tudo, é refletir sobre uma prática com a qual estou envolvida até os ossos: profissional, ética e afetivamente. Embora reconheça os riscos que esse envolvimento traz, e não os menospreze, essa relação dicotômica, de olhar de dentro e de fora simultaneamente, já me é familiar. Reconheço nela a potencialidade da experiência e a fragilidade na ausência do distanciamento necessário à visualização do quadro como um todo.

Como artista, trabalhei como atriz e diretora em um mesmo espetáculo, por mais de uma vez. É uma sensação paradoxal, porque, ao mesmo tempo que sou uma atriz que compreende exatamente o que a direção quer (embora nem sempre consiga executar), nunca serei uma diretora com a real noção do resultado final da cena, pois perceber o espetáculo dentro da ação é completamente diferente de assistir a ele desde fora. Ao mesmo tempo, essa realidade incentiva uma participação mais efetiva da equipe, no que concerne a sugestões para a cena.

Como refletir sobre o resultado desse experimento? Primeiramente, aguçando a percepção ao máximo e, depois de realizar as apresentações, escutar as considerações do público e da crítica. Até hoje, o retorno é bastante positivo. É isso que faz com que me encoraje na perigosa e fascinante aventura desta dissertação. O desafio aqui é duplo: por um lado, vou falar de um coletivo de arte de que faço parte e coordeno; por outro, vou relacioná-lo com aspectos do tempo em que vivo.

Parto da reflexão de Agamben, quando afirma:

Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente (2009, p. 62).

Mantenha fixo o olhar na imagem e veja não as luzes, mas o escuro, contando os pontos pretos. (Imagem de ilusão de ótica cedida pela agência publicitária Propaganda Futebol Clube).

Uma característica pessoal que me aproxima das imagens criadas pelo autor é o fato de, desde os onze anos, conviver com uma miopia que hoje atingiu os vinte e dois graus. Desde cedo, meu problema visual me ensinou que o que vejo não é necessariamente o que os outros veem e que não é sem esforço que posso delimitar o que vejo nas sombras do que não vejo. Preciso ter uma relação intencional e consciente com o sentido da visão e, a todo o momento, preciso aceitar que é necessário rever e, a partir daí, talvez reviver e reelaborar. Ciente de que não posso ver tudo, observo meu próprio tempo e minha própria arte, objetiva, acadêmica e afetivamente. A intenção é estabelecer

uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo (AGAMBEN, 2009, p. 59).

A reflexão é sempre processo. Ivan Izquierdo (em conferência de abertura do congresso da ABRACE – Associação Brasileira de Artes Cênicas, de 2012) afirmou que trazemos à consciência lembranças selecionadas da memória, que nunca recontam o fato concreto com precisão, pois dialogam com a subjetividade, os referenciais e as percepções de cada um.

O enorme envolvimento emocional que tenho com o trabalho, muitas vezes, impediu uma análise técnica objetiva. Apesar disso, procurei utilizar a lente do distanciamento crítico para refletir sobre ele e convido a todos para que façam o mesmo: leiam com o coração disposto e a razão alerta.

Foco em movimento.

Movimento em foco: Imagem de ilusão de ótica cedida pela agência publicitária Propaganda Futebol Clube.

1.2.    Hoje é o amanhã do ontem

Tinha 4 anos e estava sentada na calçada, matutando. Naquele tempo, uma criança sozinha em frente à sua casa ainda era uma cena possível. Pensei, pensei e saí correndo pelo corredor que dava acesso à porta do porão, pelos fundos. Entrei em casa, exultante, e disse: “Mãe! Eu já sei! Hoje é o amanhã do ontem”.

A criança que fez essa descoberta vivia em um tempo distinto, em diversos aspectos, do que vivemos hoje. Não havia computador nas residências, não havia celular ou Internet. Telefone residencial era para poucos, o que não era o caso da minha família. Naquele tempo, as pessoas escreviam cartas e mandavam telegramas… Sou contemporânea dessa realidade. Sou contemporânea da explosão virtual. Todos somos contemporâneos de inúmeras contemporaneidades sincrônicas e diacrônicas distintas, conforme o contexto.

Assim, se hoje é o amanhã do ontem, considero importante comentarmos brevemente a trajetória do teatro para crianças no Brasil, buscando refletir o hoje dos espetáculos do Bando de Brincantes, a partir do ontem da área na qual está inserido.

A origem do teatro infantil no Brasil ocorre no século XVI, com o teatro catequizante do padre José de Anchieta. Conforme Gil:

Centrada na formação do homem moral que serve a Deus, os jesuítas implantaram a pedagogia cristã no Brasil, no sentido de educar a vontade, educar o caráter da população colonizada. E, durante mais de dois séculos, esta pedagogia se fez por meio de autos, dramas e tragédias (1999, p. 105).

No século XVII, Dudu Sandroni (1995) afirma que, apesar de Sábado Magaldi (1962) defender um vazio de dois séculos na arte teatral brasileira, encontrou

no livro de Luiz Edmundo O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-reis, um relato acerca do teatro de marionetes que se fazia com frequência pelas ruas da cidade para deleite das crianças e do povo em geral (SANDRONI, 1995, p.21).

Esse teatro de marionetes acontecia pelas ruas do Rio de Janeiro e vivia das doações espontâneas do público. Vale destacar a imensa importância que o teatro de bonecos ocupa na cena brasileira e sua relação com o nascimento do teatro profissional para crianças, com atores. No século XX, Maria Clara Machado escreve suas primeiras peças para teatro de bonecos, e Ilo Krugli os utiliza de forma revolucionária, junto com o teatro de atores.

Segundo Sandroni (1995), no século XVIII, as crianças interpretavam peças para agradar os adultos. Eram consideradas como mitos infantis e, muitas vezes, verdadeiras torcidas disputavam notoriedade, a partir da competência das atuações de cada intérprete mirim. Já Carlos Augusto Nazareth informa que o nosso teatro no passado, não se preocupou com a criança como espectador. O que então se chamou de teatro infantil foi o teatro feito por crianças para adultos (2012. p. 34).

Segundo Lúcia Benedetti, a princesa Isabel fazia teatro infantil, nos longes de sua adolescência, talvez orientada pela condessa de Barral (1969, p.75). Como nas demais cortes do mundo à época, a princesa representava em francês, idioma que era considerado a língua oficial da cultura.

Benedetti afirma que, no fim do século XIX e início do século XX, no Rio de Janeiro, houve a realização de alguns teatrinhos de sombras, que, durante algum tempo, foram as delícias das crianças (1969, p. 47). Conforme a autora, esses trabalhos eram influenciados pelo enorme sucesso do teatro de sombras realizado por Henri Rivière e Caran d’Ache, em Paris.

Sandroni (1995) esclarece que, no final do século XIX, surge o teatro escolar, no qual as crianças representavam textos moralizantes. Segundo o autor, esses precursores de uma literatura dramática propriamente dita eram inspirados em traduções de textos estrangeiros, destinados à representação feita por crianças.  Embora ainda não seja o princípio de uma cena profissional, autores como Nazareth (2012) e Sandroni (1995) destacam o nome de Figueiredo Pimentel (1869-1914), na prática desse teatro didático, com o intuito de que as crianças aprendessem a decorar, a recitar e a se desembaraçar em público. Sandroni diz que Pimentel pressupõe que as crianças, em geral, tendem a se portar mal e embasa sua afirmação reproduzindo uma citação na qual Pimentel fala que a criança que brinca não pensa e que seus instintos às levarão à mentira, à perversidade e aos maus costumes (p.42). Assim, o teatro escolar de Pimentel segue o tom das peças jesuíticas, com a pretensão de doutrinar moralmente crianças e adultos. Benedetti afirma que Pimentel não foi propriamente um autor teatral, ao declarar que

a obra assinada por Figueiredo Pimentel não apresenta uma coleção de originais, mas de peças traduzidas “colecionadas” do francês, talvez português, pois não há maior indicação de origem (1969, p. 100).

A autora destaca também a contribuição de Eustórgio Vanderley para o teatro escolar, afirmando que ele fez o seu trabalho no dia a dia, publicando em revistas, suplementos e possivelmente em almanaques (p. 99).

Sandroni (1995) refere que uma fase seguinte, que ele intitula de O Teatro Nacionalista, é protagonizada por Coelho Netto e Olavo Bilac. Esses autores produzem textos para fomentar sentimentos patrióticos nas crianças que iriam recitá-los. Para exemplificar essa intenção, reproduzo um fragmento de texto publicado no livro Teatrinho, da Editora Elos, no Rio de Janeiro.

Este livrinho encerra, na sua singeleza, não apenas preceitos de moral mas, acima de tudo, exemplos da mais bela faceta do espírito humano, que a literatura dominante, em rígida e estranha coesão, se empenha para destruir: o sentimento ou sensibilidade (COELHO NETTO, 1960, p. 7).

Na peça Uma Lição, representada no início do século XX, Coelho Netto apresenta o diálogo entre um avô e seu neto que está decorando um texto em francês para ser apresentado na escola. O avô discursa sobre o absurdo de representar em francês no Brasil, defendendo a utilização da língua pátria, como faz na fala em que afirma que nosso “jour de gloire” ainda está nas trevas da indiferença, e só o poderemos ter quando raiar nos corações o sentimento do patriotismo (1960, p.17). Até esse momento, a encenação ainda era algo rudimentar, e o discurso do texto literário, o foco central de todas as propostas.

Segundo Benedetti (1969), Coelho Netto e Olavo Bilac assinaram o primeiro volume de teatro infantil do Brasil, publicado em 1905, pela Livraria Francisco Alves. A autora informa que todas as peças têm um fundo educativo e são eminentemente didáticas (p. 82).

É também Benedetti quem informa que o autor Carlos Góis teve seus primeiros trabalhos publicados em 1915. Segundo a autora, embora esses trabalhos fossem dirigidos às crianças, ainda não poderiam ser considerados como teatro infantil, o que vem a ocorrer quando Góis realiza a opereta Branca de Neve. Benedetti declara que era um grande espetáculo, teatro para valer, em três atos e música do maestro russo Alexandre Weisseman (1969, p. 91).

Carlos Góis, seguindo o caminho trilhado pelos colegas já citados, escreveu inúmeros textos para serem representados em escolas, com o intuito de passar mensagens morais, promovendo os costumes e valores dominantes em sua época. O livro Theatro para Crianças, ao qual tive acesso em sua quarta edição (1936), traz o o texto Branca de Neve ao lado de diversas outras cenas. Essas últimas não alcançam a qualidade dramática da referida opereta (baseada em popular conto de fadas), apesar de apresentarem um certo ritmo cênico, diferentemente das obras dos autores precedentes.

Sandroni (1995) situa na década de 1930 as primeiras preocupações com a carpintaria teatral. Embasa sua afirmação em duas obras que foram publicadas na época e que, segundo ele, pretendem funcionar como manuais do fazer teatral: A Teatrologia Infantil (1933), de Felix Carvalho e Teatro para Crianças (1938), de Joracy Camargo e Henrique Pongetti.

A seguir, surge o teatro para crianças, enquanto linguagem artística destinada a um público específico. Recorro às palavras de Lúcia Benedetti para narrar um importante capítulo dessa história:

No verão de 1948 apareceu no Rio uma companhia austríaca fazendo teatro para crianças. A peça chamava-se “Juca e Chico” e causou grande curiosidade. Um velho empresário carioca, Francisco Pepe foi ver o espetáculo e sentiu desejos de fazer também ele, um espetáculo para crianças. Pelo telefone convocou uma escritora para lhe dar o texto dentro de trinta dias. A escritora é a mesma que aqui está batendo essas linhas. Sua experiência de teatro imensa, porém como espectadora. De teatro infantil tinha sido intérprete de Carlos Góis, nos velhos tempos de escola. Nada mais. O velho e lírico empresário achou que aquilo era mais do que suficiente. Vá ver “Juca e Chico”, a peça que está em cartaz e me faça uma coisa naquele gênero” (BENEDETTI, 1969, p. 103).

Assim, foi escrito O Casaco Encantado. Vê-se o quão recente é a história do teatro profissional para crianças no Brasil. Sandroni (1995) afirma que é com o Teatro do Gibi, em 1944, projeto do embaixador Paschoal Carlos Magno, que se inicia a prática do teatro para crianças, feito por atores adultos. No entanto, o autor concorda com Nazareth (2012) e Camarotti (2005), quando situam o marco inicial do trabalho profissional de teatro destinado à infância em 1948, a partir da estreia de O Casaco Encantado, de Lúcia Benedetti, no Rio de Janeiro. A própria Benedetti declara que tinha sido lançado o teatro para crianças fora dos moldes habituais. Nem escolar, nem amadorístico, mas o teatro como espetáculo de arte (1969, p. 105).

O texto foi escrito em quinze dias, e a autora afirma que o criou refletindo em uma história em termos de “visão e audição” em lugar de pura narrativa (1969, p. 104). O empresário Francisco Pepe não deu prosseguimento à produção. A seguir, Benedetti apresentou o trabalho a Carlos Magno, o qual viabilizou a montagem de O Casaco Encantado pela renomada Cia Artistas Unidos, resultando em uma carreira de sucesso, com apresentações por todo o Brasil.

Como funcionou bem no seu serviço de alavanca, essa pequena peça para crianças! Poucos meses depois já o teatro Ginástico apresentava O Sìtio do Pica-Pau Amarelo, de Pedro Veiga e Pernambuco de Oliveira e no Fenix Maria Della Costa estrelava “O Anel Mágico”, de Rebelo de Almeida. Grupos de artistas jovens se reuniam pra fazer peças, montar, dirigir. (…) O Serviço Nacional de Teatro se interessou em ajudar o novo teatro infantil. E muitas subvenções foram dadas para a montagem de novas peças (BENEDETTI, 1969, p. 106).

Benedetti (1969) informa que em 1952 passou a vigorar a Lei Jorge de Lima, que ofertava prêmios em dinheiro para os melhores autores de teatro infantil em cada ano. Refere também o trabalho realizado por Fábio Sabag, na televisão carioca. Conhecido por teatrinho das duas horas na televisão, a programação oferecia, a cada domingo, uma peça nova para crianças, permanecendo no ar por dez anos, ininterruptamente. A autora diz ainda que, em 1962, o Serviço Nacional de Teatro buscou criar um curso de teatro infantil, cujo conteúdo era formado, prioritariamente por conhecimentos de literatura para crianças. O programa foi experimentado no Conservatório Nacional de Teatro, mas acabou sendo suspenso com a intenção de priorizar a publicação de livros sobre o tema. Benedetti comenta que, a partir das discussões em que participou, chegou-se à conclusão de que um possível curso de formação para profissionais de teatro infantil deveria abarcar conhecimentos sobre literatura e teatro infantis, marionetes, mamulengos, sombras e psicologia infantil.

Lúcia Benedetti tem indiscutível importância na trajetória do teatro para crianças no Brasil. A autora do texto que resultou no primeiro espetáculo profissional para crianças, em 1948, realizou uma minuciosa pesquisa histórica da área no Brasil, que foi publicada, pioneiramente, no livro Aspectos do Teatro Infantil, pelo Serviço Nacional de Teatro, em 1969. Benedetti deu aulas sobre teatro infantil no Conservatório de Teatro, hoje UniRio, trabalhou no Sistema Nacional de Teatro e teve diversos textos premiados. A autora faleceu em 1998.

O texto O Casaco Encantado foi recentemente publicado, em quarta edição, pela Editora José Olympio, em 2012. A obra, embora tenha inegável valor histórico, é extremamente datada e traz cenas inaceitáveis em nossa época, como a apresentação de ideias relativas à submissão feminina, inclusive com o espancamento da mulher do mágico por seu próprio esposo. Acredito que, apesar de ser improvável uma nova montagem, a recente publicação do texto indica um maior interesse de pesquisa sobre o teatro para crianças, embora os trabalhos acadêmicos ainda sejam em número inexpressivo em relação às demais áreas.

Não cabe aqui relatar todos os passos dessa trajetória. No entanto, é impossível falar em teatro para crianças no Brasil sem salientar o significado de Maria Clara Machado e Ilo Krugli. Foi também no Rio de Janeiro, na década de 1950, que o teatro para a infância se consagrou como manifestação artística, a partir do trabalho de Maria Clara Machado, à frente do grupo O Tablado.

Nazareth (2012) menciona que Maria Clara Machado se destaca pela excelência de sua carpintaria teatral (p.38). Machado lança as bases da dramaturgia para crianças compondo espetáculos baseados em seus textos teatrais, os quais, por terem propostas lúdicas e poéticas, resultam em montagens com encenações inovadoras e ousadas para a época. A autora afirma que

quando escrevemos para crianças somos apenas aqueles que estão abrindo o caminho, o caminho que vai do sonho à realidade. Estamos criando, através da arte, e a partir do maravilhoso, a oportunidade do menino sentir que a vida pode ser bonita, feia, misteriosa, clara, escura, feita de sonhos e realidades (1986, p.51).

Dentre as múltiplas montagens criadas com texto e direção de Maria Clara Machado, O Rapto das Cebolinhas (1953), A Bruxinha que era Boa (1954) e Pluft, o Fantasminha (1955) são alguns dos sucessos da autora. Seus textos são montados até hoje por diversas companhias brasileiras e estrangeiras, inclusive, pelo próprio O Tablado. Hoje em dia, o grupo é dirigido por sua sobrinha, Cacá Mourthé, que assumiu seu comando após a morte de Machado, em 2001.

Nazareth apresenta também um comentário escrito por Ana Maria Machado, no qual ela aponta Maria Clara Machado e IloKrugli como os grandes marcos do teatro para crianças no Brasil. Krugli revoluciona a cena teatral nos anos 1970, com a encenação de Histórias de Lenços e Ventos (1973). Segundo Ana Maria Machado,

num espetáculo do Ilo, tudo chegava de maneira nova e integrada para uma celebração conjunta com a plateia, numa espécie de ritual mágico: bonecos, atores, música, dança, cenários, adereços, iluminação. Altamente sofisticado em termos estéticos, mas perfeitamente ao alcance da sensibilidade infantil devido a seu poder simbólico e a sua verdade interior, Ilo Krugli foi um fenômeno ímpar (2012, p.40).

Saliento que Krugli continua trabalhando ativamente na cena teatral brasileira, à frente do Teatro Ventoforte, em São Paulo. Em 2013, o grupo apresentou Histórias de Lenços e Ventos, com texto e direção de Ilo Krugli, que também fez parte do elenco.

Com o surgimento do teatro para crianças em caráter profissional, muitos artistas passaram a pesquisar distintas linguagens e possibilidades de cena, valorizando a ludicidade e buscando uma forma de comunicação efetiva com a criança, sem subestimá-la. Por outro lado, herdeiros do teatro escolar e jesuítico persistem até hoje, com montagens didatizantes. Eles reproduzem formatos de propostas teatrais nos quais a criança deve aprender as normas sociais estabelecidas para obedecer a elas, sem que tenha o incentivo de desenvolver o pensamento crítico e a autonomia criativa para buscar suas próprias conclusões.

Segundo Gil, na década de 1970, nas escolas, o tecnicismo se apropria do teatro para aplicar métodos de ensino eficientes e produtivos (1999, p. 123). As peças eram criadas para contribuir com o objetivo das escolas, as quais, conforme Gardner, foram planejadas para produzir um tipo de cidadão que é desejado pela sociedade (1998, p. 259).

Na educação tecnicista, a criança é excluída do processo criativo e passa a ser treinada para estar condicionada a ver o mundo a partir de verdades pré-estabelecidas, sem ser convidada a repensar, a avaliar e a transformar. Assim, multiplicam-se discursos e lições de moral em linguagens repletas de abstrações, em uma forma de comunicação bastante alheia ao modo de pensar da criança.

No pensamento infantil, fantasia e realidade convivem harmoniosamente, pois é por meio da ludicidade que a criança encontra as bases para compreender o mundo. Maria Lúcia Pupo, a partir de entrevistas com autores e diretores que trabalham com teatro para crianças, concluiu que, segundo eles, a instituição escolar busca antes de mais nada reproduzir o sistema social vigente e não se interessa em salientar o potencial de questionamento presente nas manifestações artísticas (1991, p. 40). Em sua análise de textos teatrais destinados à infância, a autora afirmou que o didatismo simplista acaba triunfando sobre uma visão da arte teatral enquanto possibilidade específica de conhecimento (1991, p. 101).

Por sua vez, Clarice Cohn alerta que as crianças não apenas se submetem ao ensino, mesmo em suas faces mais disciplinadoras e normatizadoras, como criam constantemente sentidos e atuam sobre o que vivenciam (2009, p. 41). Dessa forma, é também, e prioritariamente, a partir das reações das crianças, que os profissionais de teatro, comprometidos com o desenvolvimento e o prazer infantis, buscam encontrar encenações que dialoguem de fato com os pequenos.

Acredito que um espetáculo para crianças pode não ter intenção de dar lições de moral, de ensinar como seria certo ou errado se comportar ou pretender passar algum conhecimento específico a partir do discurso. No entanto, quando os artistas escolhem uma maneira de falar, de se mover, de vestir, de cantar, de utilizar a luz e o cenário, todos esses elementos trazem consigo inúmeras significações. Tudo o que está em cena comunica e precisa ser criado com arte e responsabilidade. Infelizmente, certos espetáculos que são definidos como “só pra divertir”, reforçam padrões de comportamento e preconceitos disfarçados no riso alienado, mas politicamente comprometido, que ratifica verdades prontas do senso comum sem instigar a autonomia de pensamento para a análise crítica das mesmas.

Abordar ou não conteúdos educativos específicos não determina a qualidade artística da obra e é uma opção dos artistas. No entanto, ter uma concepção pedagógica não é uma opção. Dizer que um espetáculo não tem um caráter pedagógico é uma inverdade. Quem afirma isso revela eximir-se de qualquer responsabilidade nesse sentido. Como afirma Vygotsky, a ausência de filosofia é em si mesma uma filosofia bem definida (2007, p. 89).

Assim, ainda que a peça não elucide um conteúdo específico, não cite informação precisa e não conte história determinada, sempre terá um caráter pedagógico e educativo, independente de o criador ter a dignidade de assumir suas opções ou de estar ciente delas. Todos os signos que são colocados em cena serão apreendidos pela criança. Ao mesmo tempo, se ela percebe uma movimentação extracotidiana, passará a buscar essas possibilidades em seu corpo; se aprecia uma canção, será incentivada a cantar; se percebe que um ator se transforma em diferentes personagens ou figuras, poderá se identificar e buscar transformações em si mesma.

Em Porto Alegre, inúmeros artistas têm realizado trabalhos de reconhecida qualidade nas últimas décadas, respeitando a criança e instigando suas distintas percepções. Cito, como exemplos, a Cia. de Teatro Stravaganza, a Cia. Caixa do Elefante, o grupo Cuidado que Mancha, as peças para crianças dirigidas por Airton de Oliveira, as criações de Cláudio Levitan, da Íris Produções ou da Cia Ato Espelhado, dentre outros. O pesquisador Gilberto Fonseca (2010) [3], ao analisar trabalhos de diretores teatrais de Porto Alegre, apresenta o enorme destaque das montagens escritas e dirigidas por Dilmar Messias, na cena cultural gaúcha, tais como A Arca de Noé (1981), As Aventuras de Mime Apestovich do início ao meio (1985), Serragem, Farinha e Farofa (1987), Anil (1992); Lili Inventa o Mundo (com texto de Mario Quintana – 1993), As Aventuras do Avião Vermelho (com texto de Érico Veríssimo – 1995), A Vida Íntima de Laura (com texto de Clarice Lispector, 1997) e O Hipnotizador de Jacarés (2006).

Tive o prazer de trabalhar diversas vezes com Messias, em especial na remontagem de Lili Inventa o Mundo, em 2006 [4], realizada para comemorar o centenário do nascimento de Mario Quintana, autor do livro homônimo, que traz os poemas apresentados na peça. Com certeza, a arte de Dilmar Messias ecoa no trabalho do Bando de Brincantes.

A menininha que fui descobriu que hoje é o amanhã do ontem. Agora, procuro contextualizar o hoje, questionando o ontem que estamos construindo para ver amanhã e o amanhã que construímos hoje.

 

Bibliografia

Ref(v)erências:

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

BENEDETTI, Lúcia. Aspectos do teatro infantil. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura / Serviço Nacional do Teatro, 1969.

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CAMAROTTI, Marco. A Linguagem no Teatro Infantil. Recife: UFPE, 2005.

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VYGOTSKY, Lev. Pensamento e linguagem. Lisboa: Relógio d’água, 2007.

Notas

[01] Faça download da dissertação completa no link http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/97657

[02] Local alugado por minha família e organizado como uma residência.

[03] Em sua dissertação de mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS, Gilberto Fonseca expõe um interessante panorama da cena contemporânea do teatro para crianças (consultar referências).

[04] Trabalhei sob a direção de Dilmar Messias nos espetáculos Lili Inventa o Mundo – teatro para crianças (2006-2011); O Mundo da Lua – circo-teatro (2007-2011); Misto Quente – circo-teatro (2009-2011) e Pão e Circo – circo-teatro (2011). Fui também a responsável pela aprovação do projeto Circo Girassol – 10 anos, realizado em 2011, no qual participei como artista e produtora cultural.