Teatro: a arte mais humana [01]
Viviane Juguero [02]
Quais são as características subjacentes à relação teatral que me fazem acreditar que teatro é uma forma de expressão insubstituível em diversos aspectos? O que justifica a afirmativa de que possibilitar às crianças o acesso a espetáculos de qualidade é uma oportunidade ímpar para a formação humana?
Bertold Brecht (1967) defende que a função mais nobre do teatro é divertir. No entanto, o autor alerta que toda a composição estética traz consigo uma posição ideológica e que é preciso fazer do teatro uma ferramenta que auxilie na libertação do pensamento.
Ao propor perguntas instigantes e não respostas rigidamente estabelecidas, o teatro pode apresentar questões relevantes para o desenvolvimento social e pessoal, incitando o pensamento crítico. Teatro é diversão. Teatro é prazer. É por meio do prazer que o indivíduo pode se sentir seguro para construir suas próprias ideias e pode ser feliz, por SER e não por TER, como pregam os valores dominantes na sociedade de consumo.
Uma criança que tenha oportunidade de assistir a bons espetáculos de teatro poderá desenvolver suas percepções, para que essas atuem simultaneamente em muitas ocasiões e possibilitem o diálogo com o mundo por meio de todos os sentidos. No teatro, naturalmente, com base na experiência e não em discursos desprovidos de vivência e afetividade, a criança aprenderá a se localizar a partir de diferentes estímulos e referenciais, criando a habilidade de ter leituras plurais em cada contexto. Com isso, ela passará a avaliar cada situação dentro de sua realidade específica, em vez de repetir “verdades” estanques, propagadas pelo senso comum e que, em geral, são intolerantes com as diferenças entre as pessoas, além de preconceituosas.
Como já foi dito, no teatro, existe uma complexa multiplicidade de signos que ocorrem simultânea e consecutivamente. A criança vê os movimentos dos atores, percebe a luz, os figurinos, cenários, adereços, as palavras e as tonalidades nas quais são ditas ou cantadas, simultaneamente. Percebe os elementos modificando a si mesmos e suas relações no decorrer da encenação.
Todo signo teatral, ainda que pouco indicial e puramente icônico, é passível de uma operação que denominarei “re-semantização”; todo signo, ainda que acidental, funciona como uma pergunta dirigida ao espectador e exige uma ou várias interpretações; um simples stimulus visual, uma cor, por exemplo, adquire sentido por sua relação paradigmática (reduplicação ou oposição) ou sintagmática (relação com outros signos na sequência da representação), ou por seu simbolismo (UBERSFELDT, 2010, p. 13).
Quanto melhor forem explorados todos esses recursos, mais estímulos a criança terá para se envolver emocional, cognitiva e sensorialmente, desenvolvendo suas múltiplas possibilidades expressivas e sócio-comunicativas. Assim, ao mesmo tempo em que combina distintas informações, desenvolve cada uma delas de forma independente.
Ao perceber a trilha sonora, a sonoplastia, os timbres das vozes e dos instrumentos, ou o próprio ritmo dos movimentos e da cena, a criança desenvolve sua musicalidade. Ao acompanhar os textos, descobrindo novas palavras para seu vocabulário e ampliando a compreensão da utilização do idioma, amplia seus recursos linguísticos e literários. Ao perceber as distintas quantidades, os volumes e as velocidades, a criança exercita e desenvolve habilidades matemáticas. Ao vivenciar novas percepções sobre as possibilidades de ocupação do espaço, na única arte onde a cena é tridimensional, viva e pulsante, ela passa a criar novas percepções sobre a ocupação espacial.
No teatro, ao se identificar com personagens e ações da cena, a criança percebe o que a emociona, o que a surpreende e o que a amedronta. Quando está em um ambiente coletivo, ela observa que, apesar de, em alguns momentos, as pessoas terem reações muito parecidas, elas jamais são iguais. O que emociona a um colega, é engraçado para outro. O que amedronta a si mesma, é excitante para outro. Se o público ri junto, essa risada tem um significado bastante distinto daquela dada por um único espectador.
Assim, vivenciando emoções coletivas diferenciadas, a criança aprende que não há uma única maneira de perceber as situações, mas que cada pessoa deverá se relacionar com o mundo de forma singular. Ao reconhecer a pluralidade, ela identifica suas características individuais, conhecendo melhor a si mesma. Por outro lado, a criança se reconhece como membro de um coletivo, em permanente relação com os artistas e os demais integrantes do público. Percebe que o seu próprio silêncio, a sua risada, a sua tosse ou a sua interjeição interferem nesse ambiente social e na percepção que todos terão da cena e do ambiente. Desse modo, a criança aprende que há uma maneira de se comportar que contribui com esse acontecimento coletivo e que todas as suas ações são sociais e vão repercutir no outro. O teatro contribui para que ela perceba que a atitude social está intimamente relacionada com a atitude pessoal e que é preciso pensar na repercussão que as escolhas individuais terão no outro, em todas as ocasiões da vida.
Todo esse desenvolvimento está vinculado a experiências emocionais e sensoriais que contribuem para o prazer emanado da vivência e no amadurecimento da criança, ampliando seus recursos subjetivos e objetivos.
É completamente impossível separar da experiência do espectador (efetivamente, em todas as experiências), os aspectos cognitivos e emotivos, interpretação e emoção, conhecimento e sentimento. Esses aspectos (como também demonstram as verificações experimentais existentes sobre essa matéria) interatuam e interferem entre si sem cessar, assim como com outros processos receptivos, a saber, a avaliação, a memorização, etc. (DE MARINIS, 2005, p.99). [03]
No teatro, apesar das indicações construídas pelo foco dos atores, pela iluminação ou por qualquer outro artifício, a cena acontece em frente aos olhos do público, e ele deverá selecionar o que deve ver, criando significações, inclusive, entre o que focaliza e o que percebe em plano secundário. De Marinis enfatiza que em uma cena filmada, a câmera escolhe, pelo espectador, determinando o que deve ser observado, excluindo as demais imagens que compõem a ação. Essa delimitação precisa da imagem simplifica a exigência de percepção do espectador, havendo uma manipulação da cena.
Diante do espetáculo teatral, as faculdades sensoriais do sujeito receptor se submetem a um tipo de esforço e de solicitação que não podem ser confrontados nem em quantidade nem em qualidade com o requerido em outros casos de recepção estética (DE MARINIS, 2005, p.94). [04]
No espetáculo teatral, não se trata de o público decodificar e descobrir sentidos, simplesmente, mas, além disso, ele deve articular o que assiste com seus referenciais, criando suas próprias significações:
Sempre existe, e acima de tudo, obrigatoriamente, uma diferença entre os significados propostos pelo espetáculo (por seus enunciadores) e os significados efetivamente recebidos pelo espectador. […] Para o espectador, jamais se trata de encontrá-los ou reconhecê-los no espetáculo, mas sim, pelo contrário, de construí-los em cooperação com o mesmo, e em primeiro lugar, com o ator (DE MARINIS, 2005, p.92). [05]
Segundo o autor, essa cumplicidade entre ator e público se dá pelo fato de ambos estarem presentes no local do espetáculo, construindo um momento único que, de nenhuma maneira poderá ser reproduzido em todas as suas particularidades. Essa presença, atenta e ativa do espectador, amplia ainda mais a sua percepção do acontecimento como um todo:
Além do caráter polifônico do espetáculo, ou seja, multidimensional, existe particularmente o caráter não discreto (e portanto contínuo), móvel e não durável do texto espetacular, ou mais exatamente, existem suportes, materiais de manifestação, com uma topologia espaço-temporal variável (DE MARINIS, 2005, p.94). [06]
No teatro, a presença viva dos artistas e do público é bastante significativa. O reconhecimento de que em cena há um ser humano presente, como o que está na plateia, cria uma identificação diferenciada. Como visto anteriormente, Ubersfeldt (2010) chama a atenção para essa dupla enunciação: o público vê o personagem, mas também vê o ator que interpreta o personagem. O ambiente teatral propicia o que a autora chama de denegação, ou seja, a consciência do ato concreto que produz a cena e de sua ficcionalidade, ao mesmo tempo. Segundo ela, o teatro tem o estatuto do sonho: é uma construção imaginária e o espectador sabe que ela está radicalmente separada da esfera da existência cotidiana (UBERSFELD, 2005, p.23).
No caso da criança, envolta em um mundo lúdico onde permanentemente se transforma em distintos papéis, em suas brincadeiras, a ação teatral propicia que haja uma projeção e uma identificação com o processo de criação, incitando-a a dialogar criativamente com a obra.
A efemeridade da arte teatral, que faz com que cada representação de uma peça seja única, irreprodutível e esteja extinta ao final da apresentação, resulta em uma vivência que ecoa no que chamo de memória interativa. Sem poder dar pause ou play, sem poder voltar páginas atrás, a criança retoma distintos aspectos dessa vivência a partir de seus referenciais particulares, revivendo e recriando, em um intenso diálogo de mundos lúdicos. Com a criatividade desperta e alerta, vivencia o prazer de interagir de fato, ampliando sua capacidade de concentração, suas percepções e apreciando a alegria de novas descobertas, fundamentais para seu desenvolvimento como uma pessoa ativa e crítica.
Josette Féral (2004) defende que a teatralidade [07] está presente em todos os momentos da vida cotidiana, pois está situada no olhar que observa e atribui a uma cena ou a um objeto um significado ficcional. Nesse sentido, a teatralidade é uma das características marcantes da infância, pois, a todo o momento, a criança transforma a si e aos demais, criando desobjetos, distintos personagens e situações:
O que a teatralidade faz é registrar o espetacular para o espectador, uma relação diferenciada do cotidiano, um ato de representação, a construção de uma ficção. Pois bem, a teatralidade aparece como a imbricação de uma ficção em uma representação no espaço de uma alteridade que põe frente a frente um observador e um observado. De todas as artes, o teatro é o lugar em que melhor se efetua essa experimentação (FÉRAL, 2004, p.101).[08]
A teatralidade é fundamental em todas as áreas do conhecimento, pois para que algo possa ser criado, é preciso que, primeiro, a possibilidade de sua existência seja ficcionalizada. Ou seja, a teatralidade ficcionaliza a possibilidade de uma criação por meio da imaginação e a criatividade concretiza essa possibilidade, seja na construção de um poema, de uma teoria ou de uma máquina, utilizando de diferentes técnicas, ferramentas e conhecimentos para tanto:
A imaginação como base de toda atividade criadora se manifesta por igual em todos os aspectos da vida cultural, possibilitando a criação artística, científica e tecnológica (GIL, 1991, p. 21).
A teatralidade viabiliza que aconteça um encontro coletivo em um cronotopo lúdico, o qual requer cumplicidade entre as partes envolvidas para que possa acontecer plenamente. No livro Questões de literatura e de estética, Mikhail Bakhtin chama de cronotopo a interligação artística entre tempo e espaço, em uma relação íntima e indissolúvel. Segundo o autor,
o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico (2010, p. 211).
Assim, se uma criança estiver vendo uma bruxa em cena e perguntarmos a ela se está com medo da bruxa, em geral, ela responderá afirmativamente. Mas será que ela continuaria em seu lugar, quietinha, se acreditasse, realisticamente, que aquela bruxa pode transformá-la em uma lagartixa e que é possível que a coloque no caldeirão?
Na verdade, a criança sabe que precisa contribuir para que a brincadeira se instaure nesse cronotopo diverso da vida cotidiana. Ao perceber que é importante no processo, a criança se sente segura e confiança em si é fundamental para a busca ativa do conhecimento (OLIVEIRA, V. 2010, p. 39). Existe um acordo tácito de cooperação para que a cena possa evoluir. Todos precisam estar entregues ao jogo.
Criar a vida de um espetáculo não significa somente entrelaçar suas ações e tensões, mas também montar a atenção do espectador, seus ritmos, para induzir nele tensões, sem tentar impor uma interpretação.
Por um lado a atenção do espectador é atraída pela complexidade da ação, sua presença; por outro lado exige continuamente que o espectador avalie essa presença e essa ação à luz do seu conhecimento do que acabou de acontecer e na expectativa (ou questionamento) do que acontecerá em seguida.
Como ocorre com a atenção do ator, a atenção do espectador deve ser capaz de viver num espaço tridimensional, governado por uma dialética própria, equivalente à dialética que governa a vida (BARBA, 1995, p. 70).
No teatro, o espectador se encontra em uma situação complexa da vida cotidiana e enfrenta o desafio de orientar-se nos planos perceptivo (inúmeros estímulos e linguagens), interpretativo (múltiplas leituras) e pragmático (relação entre os planos real e fictício). De Marinis chama a atenção para o papel fundamental da atenção que o espectador é levado a atingir para poder se situar entre tantos estímulos. Ao mesmo tempo, o autor aponta características que um espetáculo deve ter para propiciar que o espectador esteja alerta:
Este estado de interesse, que dispõe e empurra o espectador para a focalização atenta, é particularmente induzido pela encenação, no funcionamento de estratégias de deslocamento de expectativas do espectador e de suas perspectivas costumeiras. Dito de outro modo, isso se consegue através da introdução de elementos improváveis, estranhos, inesperados, na esfera das certezas habituais do sujeito (DE MARINIS, 2005, p.98).[09]
Ubersfeldt (2010) considera que o público é um ator indispensável do processo no acontecimento teatral. Se sem outro, não há sujeito, como afirma a psicanalista Liz Nunes Ramos (2011, p.39), é possível fazer uma analogia e dizer que sem espectador, não há teatro. No que concerne à criança, podemos referir a ideia do psicanalista Donald Winnicott (1977) de que, sem uma mãe naturalmente boa, um bebê não existe, visto que é ela que dá significado à existência dele, ao se relacionar com ele.
No que concerne às relações humanas, nenhuma outra expressão artística tem a potencialidade do teatro. É por isso que, independente de todas as ferramentas tecnológicas existentes e que possam vir a existir, nenhuma delas jamais substituirá o teatro, uma vez que este é imprescindível nas experiências de fruição estética e na formação das crianças, como seres sociais felizes hoje e ativos e responsáveis amanhã.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: A teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 2010.
BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: Dicionário de antropologia teatral. São Paulo: Hucitec Ed. da Unicamp, 1995.
BRECHT. Bertold. Teatro dialético: Ensaios. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
DE MARINIS, Marco. En busca del actor y del espectador. Comprender el teatro II. Buenos Aires: Galerna, 2005.
FÉRAL, Josette. Teatro, teoria y práctica: Más allá de las fronteras. Buenos Aires: Galerna, 2004.
GIL, João Pedro Alcantara. O significado do jogo na educação infantil. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Santa Maria. Programa de Pós-Graduação em Educação, Santa Maria, 1991.
OLIVEIRA, Vera Barros de. “Brincar: Caminho de saúde e felicidade”. In: Brincar com o outro: Caminho de saúde e bem-estar / Vera Barros de Oliveira, Maria Borja i Solé, Tânia Ramos Fortuna – Petrópolis: Vozes, 2010. p.13-50.
RAMOS, Liz Nunes. “Alienação – ato – desejo: O que sabe uma criança?” In: O infantil na psicanálise: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p.31-42, jan./jun. 2011.
UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010.
WINICOTT, Donald. A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
______________. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago [s.d.]
[01] Capítulo presente na dissertação de mestrado de Viviane Juguero, intitulada “Bando de Brincantes: um caminho dialético no teatro para crianças”, defendida no PPGAC/UFRGS, sob a orientação do Prof. Dr. João Pedro Gil. Para fazer download da dissertação completa, acesse o link http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/97657
[02] Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS, sob a orientação do Prof. Dr. João Pedro Gil.
[03] Tradução própria.
[04] Tradução própria.
[05] Tradução própria.
[06] Tradução própria.
[07] a partir do conceito de Roland Barthes.
[08] Tradução própria.
[09] Tradução própria.