Atirando o pau na brincadeira [01]

Viviane Juguero [02]

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Quando abordo a importância de compreender a lógica lúdica do pensamento infantil, parto de uma preocupação constante em minhas reflexões, que é a violência subjetiva a que estão expostas nossas crianças. A tão citada educação tecnicista nos ensinou a buscar rótulos e explicações objetivas e verbais, desconsiderando todas as outras expressões que fazem parte da comunicação humana. A criança é um radar com captadores perceptivos sensoriais, emocionais e cognitivos. Os atos comunicativos são constituídos de inúmeras manifestações que contribuem na construção de significados. A palavra é parte importante nesse contexto, mas não exclusiva. É preciso atentar a esse fato para compreender a comunicação com a criança como um todo, considerando os diversos aspectos que a compõem.

Tomando a parte pelo todo, neste capítulo, vou analisar a recente modificação que foi realizada na cantiga Atirei o pau no gato, com objetivo de evidenciar que, tanto na arte quanto na educação, o adulto precisa compreender o funcionamento do pensamento infantil. Aliás, essa sensibilização é fundamental para que a pessoa, em qualquer idade, tenha condições de ter uma relação mais plena com o mundo, reconhecendo que há inúmeros fatores presentes nos atos de comunicação.

A sabedoria popular compreende isso, e é por esse motivo que as cantigas, brincadeiras, lendas e contos atravessam gerações. Elas dialogam com a subjetividade, provocando emoções e sensações que potencializam as percepções humanas, por meio do prazer da fruição artística. A educação da sensibilidade é a base para a formação de personalidades saudáveis, que contribuam com o meio social em que vivem.

Em relação à brincadeira Atirei o pau no gato, todos os elementos são eloquentes e o isolamento da letra das características de sua emissão ocasiona uma interpretação superficial e errônea do seu papel na educação. Nesse sentido, a brincadeira de roda e a ideia de obra, apresentada por Zumthor, possuem elementos constituintes similares. Assim, é possível aplicar, nessa análise, a seguinte definição do autor, quando diz que há

duas séries constituintes da obra; aquelas que manifestam as sequências linguísticas, e cujo conjunto constitui o texto, e aquelas que eu chamo de “sociocorporais”, compreendendo nesse termo todos os elementos não textuais da performance: elementos relativos, de um lado, à corporeidade dos participantes da performance; de outro, a sua existência social enquanto grupo e enquanto membros individuais desse grupo (ZUMTHOR, 2005, p.1440) [03].

Ao discutir a pluralidade das significações das palavras conforme o contexto, a construção do discurso e os referenciais do emissor e do receptor, é possível perceber a riqueza simbólica dos ditos populares, quadrinhas, parlendas e cantigas, nos quais a significação lúdica resulta de um diálogo entre o real e a fantasia. Essa característica vincula a arte popular à infância.

Desde a Antiguidade, a cultura popular traduz anseios, desejos e frustrações humanas inconscientes, manifestadas por meio de histórias, brincadeiras e canções lapidadas ao longo de muitas gerações. Não é à toa que Sigmund Freud utilizou a história de Édipo e de outros mitos para explicar o funcionamento da mente humana. Não é à toa também, que Bruno Bettelheim analisa os contos de fadas, dissecando psicanaliticamente suas significações subliminares. É ainda por meio da arte e da brincadeira que a humanidade pode elaborar sentimentos inconscientes. Em relação à criança, a brincadeira é fundamental para que ela compreenda subjetivamente ações e sensações.

O brincar leva a criança a aprender a organizar suas lembranças, seu campo perceptivo, suas ideias e suas experiências. Por outro lado, ajuda-a a entrar em contato com suas emoções e sentimentos, aceitando-os ou reformulando-os. O brincar propicia, desta forma, a integração dinâmica dos processos cognitivos com os afetivo-emocionais, respeitando o ritmo próprio da criança e fortalecendo a alegria de pertencer a um grupo (OLIVEIRA, V. 2010, p. 33).

Por exemplo, em qualquer cultura, crianças que estejam internadas em hospitais brincam de muitas coisas. No entanto, existe uma brincadeira que muito provavelmente estará presente em todos os hospitais: o faz de conta médico, onde bonequinhos são levados para a sala de cirurgia, para a quimioterapia, etc. E por que as crianças fazem isso? Porque essa é a maneira que elas têm de enfrentar o que está acontecendo na realidade, de buscar uma posição ativa, confiando em si mesmas e elaborando sentimentos de medo, tristeza e insegurança de forma subjetiva e agradável:

No mundo do faz de conta, um outro senso de realidade é experimentado, impulsionando a confiança na possibilidade de transformação da realidade marcada por novo imaginário, novos princípios e novos valores gerados na solidariedade, na ousadia e na autonomia que as atividades lúdicas podem comportar (FORTUNA, 2010, p. 102).

Essa elaboração lúdica é inerente ao ser humano e está presente em nosso patrimônio cultural, em várias manifestações. Com fundamento nessa lógica, é possível compreender porque diversas cantigas de roda abordam o medo, a agressividade e a tristeza, em breves narrativas lúdicas. Na tristeza da briga entre o Cravo e a Rosa, no amor da Terezinha, no consolo da Viuvinha, no medo do Boi da Cara Preta e na ameaça ao Tutu Marambá, a criança se projeta em diferentes papéis e elabora subjetivamente inúmeras sensações, facilitando, dessa forma, o manejo com suas emoções e sentimentos, quando esses aparecerem de fato em suas vidas.

É brincando de estar triste que a criança aprende a superar a tristeza. É brincando de assumir distintos papéis que a criança compreende que ela poderá construir seu papel particular e exclusivo no mundo. É brincando com situações que remetam à agressividade que ela poderá aprender a lidar com esse sentimento. A criança compreende perfeitamente que existe um plano lúdico, fictício e que existe um plano real, mas que, embora ambos sempre estejam em relação permanente, as significações geradas nas ações e discursos são de natureza completamente distinta em cada um deles. A mesma palavra possui um sentido muito diferente se está em um contexto lúdico ou em um contexto real.

É possível traçar uma analogia entre as cantigas de roda e os contos de fada, visto que ambos nascem da sabedoria popular. Neles, a criança possui uma relação muito clara com a ficcionalidade. Como afirma Bettelheim, nenhuma criança sadia jamais acredita que esses contos descrevam o mundo realisticamente (2012, p. 167).

Com base nessas premissas, podemos identificar inúmeras ações contemporâneas no plano da educação que, se, por um lado, podem revelar uma boa intenção em relação a fomentar ações humanitárias, por outro, denotam um profundo desconhecimento do desenvolvimento psíquico infantil. Revelam também uma incompreensão da real importância da arte e da brincadeira na formação da personalidade da criança, oportunizando que ela enfrente, se organize e se prepare para ter reações saudáveis no seu dia a dia.

Os pensamentos da criança pequena não procedem de modo ordenado, como os do adulto – as fantasias das crianças são seus pensamentos. Quando uma criança tenta entender a si própria e aos outros, ou imaginar quais podem ser as consequências específicas de uma ação, ela tece fantasias em torno dessas questões. É sua maneira de “brincar com as ideias”. Oferecer à criança o pensamento racional como seu principal instrumento para organizar seus sentimentos e compreender o mundo só servirá para confundi-la e limitá-la (BETTELHEIM, 2012, p. 170).

A incompreensão da importância de a criança poder vivenciar o medo, o amor e a agressividade, em suas brincadeiras e na arte, resulta em modificações cruciais em histórias e brincadeiras tradicionais. Bettelheim lamenta que

a maioria das crianças de agora conhece os contos de fadas apenas em versões enfeitadas e simplificadas, que lhes abrandam o sentido e lhes roubam todo o significado mais profundo (2012, p. 34).

O mesmo acontece com brincadeiras e cantigas de roda que são modificadas a ponto de perderem completamente a sua significação original e seu potencial de criar diálogos subjetivos. Algumas vezes, a incapacidade de o adulto decodificar e, inclusive, desfrutar da brincadeira resulta na completa descaracterização de cantigas e jogos folclóricos. Isso acontece porque não há um entendimento global de que todos os aspectos de cada contexto são partes importantes na construção da significação. A educação do sensível é fundamental para possibilitar a compreensão de que

a obra é aquilo que é poeticamente comunicado, aqui e agora: texto, sonoridades, ritmos, elementos visuais e situacionais: o termo abarca a totalidade dos fatores da performance, fatores que produzem juntos um sentido global (ZUMTHOR, 2005, p.142).

Algumas vezes, a ausência de formação na área artística e lúdica inviabiliza o pensamento crítico e a percepção das inúmeras falas contidas em um mesmo enunciado e sobre como essas inúmeras falas se transformam conforme o contexto, resultando em determinadas significações. Essa lacuna existente na formação dos educadores resulta em equívocos pedagógicos, tais como a distorção feita em relação à cantiga Atirei o pau no gato, vinculada a uma singela brincadeira que animou gerações e auxiliou as crianças a elaborar pacífica, saudável e subjetivamente os sentimentos sociais e individuais de agressividade.

Passei minha infância cantando essa cantiga e nunca atirei pau em gato nenhum. Também nunca vi nenhum de meus amigos atirando paus em gatos. Em cursos e palestras por todo o Rio Grande do Sul, sempre pergunto aos professores se eles brincavam com a cantiga Atirei o pau no gato. A maioria responde que sim. Pergunto se alguém se sentiu motivado a maltratar um animal por causa dessa cantiga ou por causa das inúmeras outras da mesma natureza. A resposta é sempre unânime e negativa. Caso alguém confesse que, na infância, maltratou algum animal (o que ocorre muito raramente), sempre busco saber se percebe alguma motivação oriunda das cantigas. Nesses casos, em geral, a pessoa afirma que muito pouco brincou com cantigas na infância ou que nunca teve contato com elas. Ou seja, a cantiga em nada influenciou a ação agressiva.

Por oportuno, passo a analisar o discurso da brincadeira nas distintas linguagens que compõem a percepção de sua significação geral.

Atirei o pau no gato-to,
mas o gato-to,
não morreu-reu-reu.
Dona Chica-ca
admirou-se-se
do berro, do berro
que o gato deu: Miau!

Em primeiro lugar, a letra é uma narrativa lúdica. Ao brincar com as palavras que contam uma história, repetindo algumas sílabas finais, o jogo fica evidente, e nenhuma criança entende estar narrando um fato real e tampouco vislumbra a possibilidade de torná-lo realidade. Ao mesmo tempo, a canção tem uma melodia e um ritmo suaves que contribuem imensamente para criar uma significação completamente dissociada da agressividade gratuita que muitos encontram nessa brincadeira. Ou seja:

A palavra pronunciada não existe em um contexto puramente verbal: ela participa necessariamente de um processo geral, operando numa situação existencial que ela altera de alguma forma e cuja tonalidade engaja os corpos dos participantes (ZUMTHOR, 2005, p.147).

Assim, a música está vinculada a movimentos precisos dessa brincadeira de roda. As crianças cantam todas de mãos dadas e, ao final, alegremente, se agacham, dizendo miau!. Com quem essas crianças se identificam quando estão agachadas? Qual personagem representam? O gato, evidentemente. Essa sábia brincadeira popular possibilita à criança vivenciar inconscientemente diversos papéis vinculados à agressividade: o agressor (atirei); o observador (Dona Chica) e o agredido (gato).

A criança, representando essas distintas posições, aprende a manejar esse sentimento de forma adequada e saudável. A agressividade faz parte dos sentimentos humanos e, utilizada da forma correta, é necessária, pois é essa agressividade que possibilita à criança, não somente defender-se, como enfrentar situações difíceis. Não é possível eliminar a agressividade de um ser humano, mas aqueles que não podem brincar nem escutar histórias em que ela esteja presente de forma lúdica possuem muito mais dificuldade em lidar com esse sentimento. A brincadeira é o sábio mestre que fala a linguagem da criança da forma que ela pode compreender.

Ao brincar com a cantiga Atirei o pau no gato é muito mais provável que as crianças se sintam afeiçoadas aos gatos do que motivadas a agredi-los. O gato é o personagem com o qual se identificam de forma mais intensa, visto ser, o momento do miau, o mais divertido da brincadeira. Nele, há um movimento que desperta as articulações dos pequenos e desafia seus músculos; há, nesse movimento, ainda, uma busca de equilíbrio nas mãos dos colegas que se agacham junto, resultando em uma cumplicidade do grupo. Ao dizer miau é permitido gritar – atitude que a brincadeira autoriza nesse momento especial, mas que é, em geral, reprimida em situações cotidianas. Aliás, a criança, ao poder gritar miau realiza o desejo de gritar, compreendendo (sempre subjetivamente) que há momento para tudo e, assim, provavelmente, não gritará em ocasiões consideradas impróprias. Além disso, a criança se identifica com a vulnerabilidade do gato, por ser frágil como ele. Ao verificar que, após ter recebido a paulada, o gato não morreu e reagiu, emitindo o miau e se agachando, a criança percebe que há esperança e saída para as possíveis agressões com que venha a ter contato.

A sabedoria popular certamente contribui com a educação por ser fruto do diálogo da subjetividade de diversas gerações e por colaborar na construção de um discurso no qual a criança se sente acolhida em sua maneira de ver o mundo, pois

na hora em que, em performance, o texto […] se transforma em voz, uma mutação global afeta suas capacidades significantes, modifica o seu estatuto semiótico e gera novas regras de semanticidade. O tempo que continua a audição e que dura a presença, o gesto e a voz colaboram (necessariamente) com o texto para compor o sentido (ZUMTHOR. 2005, p.148).

Ao brincar com cantigas de roda, a criança reforça os laços de identidade com seu povo ao perceber que pessoas de distintas idades, em sua comunidade, conhecem os mesmos jogos e canções. Na contemporaneidade, temos acesso a inúmeras culturas por meio da televisão e da Internet. É claro que esse fato tem aspectos positivos e negativos, os quais não serão aprofundados nesta oportunidade, por não ser esse o objeto do presente trabalho. Aqui, a intenção é evidenciar a enorme importância que a manutenção da cultura popular tem em nossa vida cotidiana, pois ela reforça a identidade e os laços afetivos entre as pessoas de um mesmo povo. Ao descaracterizar nossas cantigas, optamos por fragilizar vínculos culturais que nos unem há muitas gerações.

Por evidente, não defendo que as cantigas sejam intocáveis. As brincadeiras são feitas para brincar, e o ato de brincar exclui toda a possibilidade de engessamento de qualquer espécie. Como ao brincar de telefone sem fio, diversas alterações são feitas nos jogos e canções folclóricos, os quais encontramos em inúmeras versões. Ao mesmo tempo, por vezes, é possível inspirar-se na brincadeira popular e recriá-la, sem perder a sua essência. Retomando a cantiga abordada na análise do espetáculo Quaquarela, cito como exemplo a versão A avó a bordar, criada na série de programas infantis Cocoricó [04], com base na brincadeira tradicional A velha a fiar. Os criadores do programa situam a brincadeira no paiol, local onde acontecem as ações de todos os episódios. Eles se utilizam de personagens do programa, em uma versão divertida e sensível, que mantém a ludicidade presente na cantiga popular.

É importante não criar regras rígidas para brincar. A criatividade e o diálogo lúdico são sempre bem-vindos. O que discuto aqui é a necessidade de compreensão de como se dá a comunicação na brincadeira folclórica e de sua importância no desenvolvimento afetivo, psíquico e cognitivo das crianças, considerando-a como fruto da sabedoria popular.

Constato que, muitas vezes, existe a predominância de uma educação que prioriza o resultado imediato do acúmulo de informações, e não o processo educacional, como um todo. Essa priorização de resultados pretende impor valores e menospreza a construção de um embasamento ético adequado para que cada educando elabore um pensamento crítico e saiba se posicionar nos distintos contextos. A decoreba da fórmula, em vez da compreensão do processo criativo e científico que levou a determinado resultado, acarreta o pensamento de que tudo pode ser enquadrado como certo ou errado, independente do contexto, e que os educadores têm de ensinar conhecimentos engessados, ao invés de proporcionar a reflexão.

Verifiquei que, em decorrência dessa visão tradicional, foi criada uma nova versão para a cantiga Atirei o pau no gato. Essa modificação da letra, como um todo, não tem relação com as pequenas modificações que ocorrem espontaneamente, no diálogo lúdico de cada brincadeira com diferentes comunidades. Desprovida de ludicidade, a letra abaixo expulsa a brincadeira da cantiga.  Essa nova versão tem se multiplicado dentro de colégios e escolas de Educação Infantil e diz o seguinte:

Não atire o pau no gato-to,
porque isso-sso,
não se faz-faz-faz.
O gatinho-nho
é nosso amigo-go,
não devemos maltratar os animais
jamais!

Embora dita versão reproduza a melodia, o ritmo e o jogo de repetir as últimas sílabas da palavra, ela é desprovida de ludicidade porque, em vez de narrar uma história, dá uma ordem em tom de lição de moral.  Portanto, percebe-se que, nessa versão nova da cantiga, em vez de ser utilizada uma fala lúdica que contribui com elaborações inconscientes, como acontece em Atirei o pau no gato, passou-se para um discurso realista.

Essa alteração do texto da cantiga em estudo não é motivada pela observação de crianças brincando e dos ecos da brincadeira. Essa distorção, provavelmente, vem da análise do texto literário, em conversas entre adultos. Nessas ocasiões, pretende-se uma abordagem objetiva da palavra, o que acaba por inverter completamente a significação original.

Zumthor (2005) sustenta que, no ato da performance é que o enunciado poderá realmente ser recebido e decodificado pelo ouvinte, ou por aquele que pretenda fazer uma análise profunda do mesmo. Segundo o autor, esse discurso, ao mesmo tempo em que se faz narrativa, pelo som da voz e o movimento do corpo, torna-se comentário desta narrativa: narração e glosa.

Se excluirmos o texto de Atirei o pau no gato de seu contexto, se lermos essa frase com um pensamento adulto e realista, poderemos encontrar nela a confissão de uma agressão gratuita. No entanto, essa análise nada tem a ver com a brincadeira original que gerou a letra. A incompreensão do papel da ludicidade gera a incapacidade de compreender a brincadeira como um todo. A análise objetiva da letra acabou por gerar a versão realista que expulsou a brincadeira da canção na versão atual.

A afirmação Não atire o pau no gato, a ordem de algo que não deve ser feito na realidade, resulta na concretização da percepção da agressão no plano real. Verifica-se que essa versão ensina que atirar o pau em um gato é uma possibilidade verdadeira. A criança jamais teria essa ideia com a cantiga popular. Ao tratar essa questão de forma realista, além de explicitar a agressão, a ordem confunde a criança que passa, então, a se sentir culpada, por um lado, e ameaçada, por outro, em uma sensação concreta, ao invés de uma elaboração inconsciente. Dessa maneira, pode-se concluir que há uma contradição enorme entre a palavra dita e o discurso afetivamente percebido pela criança. Afinal, ela continua sendo o gato, em sua maneira lúdica de encarar o mundo!

Segundo Bettelheim,

as explanações realistas são normalmente incompreensíveis para as crianças, porque lhes falta o entendimento abstrato requerido para lhes extrair sentido. Enquanto que o dar uma resposta cientificamente correta leva os adultos a pensar que tornaram as coisas claras para a criança, tais explanações a deixam confusa, subjugada e intelectualmente derrotada (2012, p. 70).

Muitas vezes, a criança é obrigada a repetir discursos que não está preparada para compreender. Bettelheim esclarece que dizer para a criança o que deve fazer apenas substitui o cativeiro de sua própria imaturidade pelo cativeiro da obediência aos ditames dos adultos (2012, p. 65). É também o mesmo autor quem afirma:

Tais crianças repetem como Papagaios explicações que, de acordo com sua própria experiência de mundo, são mentiras, mas que devem acreditar serem verdadeiras porque algum adulto assim o disse. A consequência é que as crianças passam a desconfiar de sua própria experiência e, por conseguinte, de si próprias e do que suas mentes podem fazer por elas (2012, p. 71).

A abordagem criativa, por meio da brincadeira de faz de conta, é fundamental para que a criança possa se relacionar com o mundo e compreendê-lo paulatinamente. No livro Pedagogia do brincar, Vera Lúcia Bertoni dos Santos, a partir dos estudos de Jean Piaget, expõe que

uma visão abrangente da larga faixa etária compreendida pelos jogos simbólicos, que pode ter início antes dos dois anos de vida e estender-se até os onze anos, permite observar que as condutas lúdicas das crianças evoluem na medida dos progressos da inteligência, assumindo características diversas, que correspondem a múltiplas funções e expressam variados desejos: de aprendizagem, de afeto, de experimentação e superação de capacidades individuais, de afirmação, aceitação, conquista, confronto, curiosidade, de inserção no mundo, de relação com o outro (2012, p. 78).

É preciso resguardar o direito de brincar de mãos dadas, de elaborar inquietações por meio da brincadeira, de forma tranquila e divertida. A educação, a arte e a brincadeira devem estar juntas, pois fazem parte de um mesmo processo de formação humana. Todas as áreas precisam de criatividade, autonomia de pensamento e de pessoas felizes e confiantes em si mesmas.

Por isso, defendo a importância da lógica lúdica na comunicação teatral, já que, como diz Maria Clara Machado, uma cambalhota, à maneira dos irmãos Marx, está talvez mais perto da verdade das crianças do que uma enxurrada de ensinamentos morais duvidosos… (1986, p. 51)

É preciso interpretar brincadeiras e obras em geral com todos os sentidos, todas as formas de percepção, com o coração aberto e a mente alerta.

Não atire o pau na cultura popular! Não atire o pau na ludicidade!

Bibliografia

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. São Paulo: Paz e Terra, 2012.

FORTUNA, Tânia Ramos. “Brincar com os diferentes e as diferenças – O potencial da brincadeira para a promoção da inclusão e transformação social”. In: Brincar com o outro: Caminho de saúde e bem-estar / Vera Barros de Oliveira, Maria Borja i Solé, Tânia Ramos Fortuna – Petrópolis: Vozes, 2010. p.101-124.

OLIVEIRA, Vera Barros de. “Brincar: Caminho de saúde e felicidade”. In: Brincar com o outro: Caminho de saúde e bem-estar / Vera Barros de Oliveira, Maria Borja i Solé, Tânia Ramos Fortuna – Petrópolis: Vozes, 2010. p.13-50.

SANTOS, Vera Lúcia Bertoni dos. “Brincadeira na infância e construção do conhecimento”. In: HORN, Cláudia Inês et al. Pedagogia do brincar. Porto Alegre: Mediação, 2012.  p. 45-80.

ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo. São Paulo: Ateliê, 2005.

Notas

[01] Capítulo presente na dissertação de mestrado de Viviane Juguero, intitulada “Bando de Brincantes: um caminho dialético no teatro para crianças”, defendida no PPGAC/UFRGS, sob a orientação do Prof. Dr. João Pedro Gil. Para fazer download da dissertação completa, acesse o link http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/97657

[02] Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS, sob a orientação do Prof. Dr. João Pedro Gil.

[03] O autor utiliza o termo performance, segundo ele, emprestado da dramaturgia, referindo o ato de concretização da fala, ou seja, a confluência de significações corporais, sonoras, etc. presentes na emissão.

[04] Cocoricó é um programa infantil de bonecos na televisão brasileira, produzido e transmitido pela TV Cultura. Foi criado pelo núcleo infantil da TV, estando em exibição desde 01 de Abril de 1996. O programa utiliza bonecos animados como personagens, sendo, a maioria deles, animais falantes. O protagonista Júlio foi criado por Fernando Gomes para o especial de natal Um banho de aventura, de 1989. Inicialmente, o programa era dirigido por Arcângelo Mello e Eliana Andrade (de 1996 até 2001), mas, a partir de 2003, passou a ser dirigido por Fernando Gomes, até os dias atuais. Se mantém em exibição ininterrupta desde a sua estreia, sendo renovado com novos episódios, a cada ano. Seu sucesso fez com que o programa passasse nos canais TV Rá-Tim-Bum e TV Brasil. É exibido também na Argentina,  pela TV Pakapaka e internacionalmente, pela TV Globo Internacional. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cocoric%C3%B3. Acesso em 14 de fevereiro de 2014.