Criança? [01]
O universo infantil é lúdico e é por meio da simbologia da brincadeira que a criança se relaciona com o mundo, descobrindo e construindo as diferentes significações. Segundo o psicólogo Lev Vygotsky, o pensamento da criança aproxima-se mais de um conjunto de atitudes ligadas ao mesmo tempo à ação e à fantasia do que do pensamento adulto, que é um pensamento consciente de si próprio (2007, p. 243). Realizando uma minuciosa análise dos diversos estágios de desenvolvimento do pensamento, o autor conclui que, somente na adolescência, o ser humano passa a pensar por meio de conceitos. Assim, somente nesse período as explicações abstratas podem ser realmente compreendidas. Vygotsky alerta que
as palavras das crianças correspondem às do adulto na referência ao objeto: indicam os mesmos objetos. Referem o mesmo círculo de fenômenos. Contudo, não correspondem no plano do sentido (2007, pág. 188).
Dessa forma, a criança está apta a decorar palavras e discursos. Ela poderá repetir algumas frases que perceba que agradam os adultos ou que evitem represálias. No entanto, a distância entre repetir e compreender é enorme. Quando o adulto demonstra dificuldade em entender o processo de pensamento infantil, a criança percebe que não será valorizada se não repetir o discurso. Ao ouvir a reprodução da decoreba, esse adulto se satisfaz, uma vez que acredita estar contribuindo na formação da criança.
Se o adulto insiste que seu modo de ver as coisas é o correto – como bem pode ser, visto objetivamente e com sabedoria adulta -, isso dá à criança um sentimento desesperançado de que não adianta tentar chegar a um entendimento comum. Sabendo quem detém o poder, a criança, para evitar problemas e ficar em paz, diz que concorda com o adulto, e é forçada então a prosseguir sozinha (BETTELHEIM, 2012, p. 171).
Bettelheim afirma que, onde há realismo excessivo, existe uma oposição às experiências íntimas da criança. Segundo o autor, as experiências e reações mais importantes da criança pequena são em sua maior parte subconscientes e devem permanecer assim até que ela atinja uma idade e compreensão mais maduras (2012, p. 27).
Em relação ao teatro, acredito que é preciso que os artistas tenham conhecimento sobre o universo infantil para que possam fazer opções claras e realizar espetáculos que realmente dialoguem com a criança.
Naturalmente, os diretores teatrais e artísticos, além dos atores, deveriam ser conscientes de sua função educativa e conhecedores do mundo das crianças: é indispensável conhecer esse mundo para compreender ao seu público (SIGNORELLI, 1958, p. 58) [02].
Em uma dissertação que enfoca o teatro para crianças, não posso me eximir da responsabilidade de abordar algumas questões controversas reiteradamente discutidas, há muitos anos, pelos profissionais que se dedicam seriamente à área. Como se define a criança para a qual esse teatro se direciona? Como o adulto procura compreender e dialogar com o pensamento infantil? Quais os fatos e ideias que criaram a discussão que busca diferenciar teatro infantil e teatro para crianças?
Sem pretender esgotar o assunto, no presente capítulo e nos demais que serão publicados no site do CBTIJ logo a seguir, reflexões que considero importantes para esta pesquisa.
O que é ser criança? O conceito de infância que temos hoje é uma construção cultural e contextualizada. O historiador Philippe Ariès (2011) afirma, fundamentado na análise de ilustrações do século XI, que, nessa época, a criança era considerada um adulto em miniatura. Não havia o reconhecimento das enormes diferenças que separam o universo adulto do infantil. Ele situa no século XIV o surgimento de um progresso na consciência coletiva desse sentimento da infância (p.20). Dessa forma, é importante compreender que o conceito de criança, assim como o de sociedade, está em permanente evolução e que, em inúmeras vezes, a prática não respalda as definições teóricas.
A concepção de infância, concebida como a conhecemos, assentada numa célula familiar composta por pai, mãe e descendentes, coabitando no mesmo teto sob a proteção e amparo dos mais velhos, em que o mundo do adulto se diferencia significativamente do mundo da criança, data do final do século XVII, na incipiência da formação da burguesia (KETZER, 200, p. 13).
Izquierdo (2012), afirmou que, em geral, a história é registrada pelo ângulo do olhar de quem a escreve. Quem divulga largamente suas ideias possui, não somente informação e formação para atuar no lugar social em que se encontra, mas também, recursos econômicos para publicar e promover suas ideias.
No que concerne à criança, hoje em dia, inúmeros programas e revistas “especializados” buscam orientar os pais na educação de seus filhos. Essas orientações, em geral, são socialmente localizadas nas possíveis realidades de classes economicamente favorecidas, consumidoras das ideias e dos produtos desses veículos de comunicação. Abordando um “padrão” de relacionamento familiar e escolar, a maioria das matérias, simplesmente, ignora o fato de que muitas mães deixam o filho na creche às 7h e os buscam às 19h, ou que muitas crianças não têm mãe, um assustador número de crianças não tem pai e que, para colocar a criança para descansar no horário recomendado, ela precisa ter, no mínimo, um lugar adequado para tal.
Por isso, quando essas revistas e programas, em matérias ou propagandas, referem-se à criança, muitas vezes apontam uma infância com uma família bem estruturada, com pais unidos, que se amam e que trabalham, assim como descrevem uma criança que vai à escola e faz passeios regularmente. Esse grupo social está longe de representar a realidade da maioria dos lares, hoje em dia, mas ainda é o modelo utilizado quando se faz alguma generalização do mundo infantil no século XXI. Em outras ocasiões, essas revistas referem-se a crianças carentes, a crianças órfãs ou a crianças portadoras de deficiência, colocando um rótulo que marca a criança, apaga a sua individualidade e a exclui do caminho “normal” apontado para as infâncias idealizadas.
A concepção de infância, como momento privilegiado para ser criança, instaura-se, de certo modo, a partir do discurso filosófico iluminista e é inspiradora de diversas posições educativas direcionadas aos pequenos. Às crianças começou-se a dar um novo estatuto, visando educá-las com o objetivo de assegurar o futuro da civilização. Assim, elas seriam, a princípio, preparadas para que a sociedade ocidental, no futuro, tivesse adultos bons e produtivos (BULHÕES E TOROSSIAN, 2011, p.7).
O sentimento de infância surge como uma necessidade de o adulto aprimorar o mundo em que vive, garantindo melhoras pelos adultos de amanhã. Assim, cada vez mais, ao menos nos países ocidentais do século XXI, predomina um pensamento em que a produtividade e o consumo ditam as normas. A maioria das escolas ainda quer mostrar serviço aos pais, preparando as crianças para a universidade e para o mercado de trabalho. Os produtos para consumo infantil sufocam uns aos outros, em um apelo de desejo passivo. Ou seja, as crianças recebem brinquedos prontos, que fazem tudo sozinhos ou que vêm com manuais de instrução altamente detalhados de como é certo (e, por consequência, como seria errado) jogar tal jogo. Dessa forma, o espaço para a criatividade e a construção de um sujeito autônomo é cada vez mais comprimido pela ausência de reflexão que conduz a maioria das pessoas na inércia da correria em busca de TER e não em busca de SER.
É no momento em que a posição que cada um ocupará no mundo não está antecipada por uma trama social estável que a infância tem lugar como incubadora de perspectivas de realizações futuras – perspectivas e apostas, pois os adultos passarão a ver nos pequenos a possibilidade de transposição de suas frustrações, de realização de seus desejos fracassados. Como homens modernos, não tivemos nosso destino traçado na origem – ou, pelo menos, queremos crer que não -, mas fomos chamados a construí-lo individualmente – vale sublinhar: individualmente -, ensaiando-nos nessa construção do tempo denominado de infância (MOSCHEN, 2011, p.94).
Assim, ainda que amorosamente preocupados com nossas crianças, o discurso de “Quem será essa pessoa amanhã?” ainda suplanta, em muito, a preocupação de “Quem é essa criança hoje? Ela é feliz? Escutamos a sua voz com respeito, estabelecendo um verdadeiro diálogo?”.
Em pleno século XXI, em nosso próprio país, há crianças morrendo de fome, há exploração do trabalho infantil e se multiplicam os crimes de pedofilia. No entanto, uma visão idealizada da infância como um momento de pura alegria e brincadeira parece predominar no senso comum.
A psicanalista Alba Flesler lembra que Freud situa o nascimento da criança como um lugar no Outro. Ou seja, é quando um adulto reconhece que aquele ser merece cuidados especiais e que está em um momento diferenciado da vida que ele passa a ter o direito de exercer a infância e de ser criança.
Merece ser assinalado que esse objeto que a criança é para o Outro já implica uma operação, pois isso não está dado: nem sempre um vivente chega a ter o lugar de criança no Outro. Dizemos, às vezes de um modo rápido e sem medir as ressonâncias disso, que a criança é objeto do Outro. Mas há viventes que jamais chegam a ocupar um lugar de objeto no Outro, e a prova é de que são descartados e jogados no lixo, tomados só como um pedaço de carne, como um incômodo; nesses casos, não chegam a ser uma criança. Mais ainda, nem sempre uma criança chega a ser um filho (FLESLER 2011, p.22).
Muitas vezes, considera-se que o bem-estar e a felicidade são inerentes à infância, esquecendo-se que o adulto tem um papel fundamental no sentido de propiciar as condições necessárias para que a criança se sinta bem em um mundo repleto de desafios desconhecidos e assustadores. Para a criança, é uma grande luta conhecer o mundo, relacionar-se com ele e aprender coisas novas a cada dia. A infância é um período difícil da vida humana e para que possa ser belo e singelo precisa do apoio de adultos que assumam a sua responsabilidade.
A criança é um ser atuante na sociedade, interagindo em todas as suas relações e participando na construção, consolidação e transformação de papéis sociais. Clarice Cohn afirma que a criança é um sujeito social pleno, e como tal deve ser considerado e tratado (2009, p. 45).
A autora esclarece que a criança não é simplesmente encaixada em uma engrenagem social imutável, anterior a ela, mas que atua para o estabelecimento e a efetivação de algumas das relações sociais dentre aquelas que o sistema lhe abre e possibilita (COHN, 2009, p. 28).
O reconhecimento de que a criança atua a partir das relações que o sistema possibilita deixa evidente a responsabilidade da sociedade como um todo em relação ao desenvolvimento infantil. Um ambiente social favorável possibilita que a criança desenvolva sua individualidade, reconhecendo-se enquanto parte integrante e fundamental no movimento social. É com base nos distintos referenciais culturais que a criança tem acesso, que ela constrói a sua atuação no mundo. Por meio desses referenciais, as crianças passam a ser produtoras de cultura, elaborando sentidos, valores e percepções. Como diz Cohn, elas não “ganham” ou “herdam” simplesmente uma posição no sistema de relações sociais e de parentesco, mas atuam na criação dessas relações (2009, p. 30).
Mas que infância é essa? É uma infância legalmente reconhecida e amparada pelo Estatuto da criança e do adolescente [03], para defender e apontar os seus direitos, muito embora esses ainda estejam longe de ser aplicados efetiva e democraticamente. Esse Estatuto, ao exigir igualdade social e lutar pela especificidade de políticas para a infância, denuncia a realidade desigual e o papel marginal que a infância ainda ocupa no desenvolvimento de políticas sociais e culturais brasileiras. Como refere Cohn,
só podemos entender o Estatuto da Criança e do Adolescente vigente hoje no Brasil, assim como as polêmicas que o rodeiam, se compreendermos a concepção de criança e infância que o embasa (2009, p. 44).
A conquista do Estatuto é um passo histórico de inegável valor em busca da justiça social e denota também uma mudança de mentalidade, ao iniciar uma trajetória na qual o bem-estar e o desenvolvimento da criança passam a ser prioridade, ao menos, em alguns setores sociais e nos discursos em geral. É preciso que a lei referida passe a ser amplamente aplicada em ações concretas, as quais, como afirma Nazareth, atentem para o fato de que
uma criança de classe alta de uma megalópole e uma do interior do país, da mesma idade, têm universos absolutamente diferentes, embora tenham um elemento em comum: a idade. (2012, p. 32)
É bem verdade que a realidade dessas crianças é completamente diferente, mas também é verdade que o fato de terem a mesma idade as une em um grupo que tem características semelhantes.
Se cada cultura pensa o desenvolvimento da criança a partir de seus próprios termos, isso não quer dizer que a criança se desenvolva diferentemente, mais ou menos, mais rapidamente ou com maior vagar a depender de onde cresce. Por outro lado, se universalizarmos demais, tornamo-nos incapazes de perceber as especificidades dadas pelos contextos socioculturais (COHN, 2009, p. 42).
Como respeitar as singularidades contextuais, identificando, ao mesmo tempo, os fatores que unem as crianças em um mesmo universo infantil? Como criar espetáculos que dialoguem com as crianças em distintos contextos e que, ao mesmo tempo, abordem o respeito à diversidade, sem a construção de excessivas e aborrecidas explicações verbais? Como construir uma cena lúdica e responsável, apresentando à criança elementos que dialoguem com seus referenciais? Como oferecer uma ampla gama de possibilidades para suas elaborações simbólicas, sem buscar doutriná-la, mas, ao mesmo tempo, apontando um caminho que gere o respeito ao próximo e uma percepção de que a transformação para melhor é possível?
Acredito na opção de criar situações que dialoguem com a criatividade, que proponham seres diferentes, louvando a diversidade, que convidem a criança a participar cognitiva, perceptiva e sensorialmente e que respeitem a lógica lúdica do pensamento infantil. Assim, possibilita-se à criança uma sensação de segurança e autoestima, viabilizando o sentimento de alegria hoje e auxiliando na tomada de uma posição ativa no mundo, em todas as fases da vida.
Nos espetáculos do Bando de Brincantes, procura-se evitar a reprodução de situações sociais realistas a que nem sempre todas as crianças têm acesso ou que reforcem a permanência de relações hierárquicas ou ainda de enquadramentos de status social. A apresentação de universos mágicos em que flores conversam com insetos, lulas convivem com aranhas ou jacarés conversam com gente, possibilitam que as crianças subjetivamente relacionem suas próprias vivências com as situações apresentadas. Assim, cada criança pode elaborar seus anseios e desejos, conforme suas necessidades pessoais, divertindo-se no mundo da imaginação. Incluindo a todos em um ambiente imaginário democrático, valoriza-se cada criança enquanto a pessoa que é hoje. Para que seja feliz hoje. Para que tenha confiança em si própria hoje. Para que tenha condições emocionais e educacionais para construir seu amanhã, vivendo, plenamente, cada dia.
ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2011.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. São Paulo: Paz e Terra, 2012.
BULHÕES, Maria Ângela; TOROSSIAN, Sandra Djambolakdjan. “Editorial”. O infantil na psicanálise: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p.07-08, jan./jun. 2011.
COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
Estatuto da criança e do adolescente: Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, Lei n. 8.242, de 12 de outubro de 1991. Brasília : Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2001.
FLESLER, Alba. “As intervenções do analista na análise de uma criança”. O infantil na psicanálise: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p.18-30, jan./jun. 2011.
IZQUIERDO, Iván. Conferência de abertura. In: ISAACSSON, Marta. Tempos de Memória: vestígios, ressonâncias e mutações. Porto Alegre: Associação Brasileira de Artes Cênicas (ABRACE), 2012.
KETZER, Solange Medina. “A criança, a produção cultural e a escola”. In: JACOBY, Sissa (Org.) A criança e a produção cultural: Do brinquedo à literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003. p. 11-28.
MOSCHEN, Simone. “A infância como tempo da iniciação à arte de produzir desobjetos”. O infantil na psicanálise: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p.89-98, jan./jun. 2011.
SIGNORELLI, Maria. El niño y el teatro. Buenos Aires: Eudeba, 1958.
STANISLAVISKI, Constantin, 1863-1938. A preparação do ator. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1998.
VYGOTSKY, Lev. Pensamento e linguagem. Lisboa: Relógio d’água, 2007.
[01] Capítulo presente na dissertação de mestrado de Viviane Juguero, intitulada “Bando de Brincantes: um caminho dialético no teatro para crianças”. Para fazer download da dissertação completa, acesse o link http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/97657
[02] “Naturalmente, los diretores teatrales y artísticos y los actores deberían ser conscientes de su función educativa y conocedores del mundo de los niños; es indispensable conocer este mundo para compreender a su público”.
[03] Lei 8.069 de 13 de julho de 1990