Pela primeira vez ouso escrever sobre o teatro de formas animadas. Sim, afirmo ser uma ousadia, por se tratar de um tema tão complexo e por vezes polêmico.
Não vou entrar em teorizações nem em conceituações, já que Ana Maria Amaral e Valmor Beltrame (o Nini) já o fazem com tanta propriedade e competência em livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.
Quero falar mais de minhas impressões e até preocupações com este gênero do fazer teatral.
Fico maravilhado ao perceber que existe um movimento bastante amplo, em termos de espacialidade, em nosso país, em grupos que começaram e desenvolveram pesquisas relacionadas às formas animadas. Acredito que festivais como o de Canela e mais recentemente de Curitiba, tenham contribuído para juntar estes “bonequeiros” e fazer com que uma especialização se fizesse sentir nos processos de montagens e nas próprias pesquisas. Os artistas que trabalham com formas animadas nunca deixaram de participar de festivais de teatro espalhados pelo Brasil, mas viam seu espaço reduzido dentro das programações que davam preferência a espetáculos conduzidos por atores, de carne e osso.
Este é outro tema bastante interessante. Será que o manipulador deve também ser um bom ator?
Quanto a isto eu não tenho a menor dúvida. Como diretor de atores, tenho a percepção, ao assistir a um espetáculo de bonecos, por exemplo, do quanto é importante esta familiaridade que o manipulador precisa ter para fazer com que seu boneco tenha mais possibilidades de movimentos e ações. O boneco parece ser uma continuação do corpo do manipulador/ator e não apenas um objeto que precisa deste ser humano para se deslocar. O manipulador que conhece a arte do ator com certeza terá um melhor aproveitamento em seu trabalho. Não estou falando de um virtuose, mas pelo menos de alguém que busca nas técnicas de interpretação um melhor aparato para seu próprio trabalho.
Entender os paradoxos e sacralidades do boneco é de fundamental importância para que ele possa respirar e existir enquanto movimento e não apenas forma. O manipulador é aquele que transforma um objeto inanimado em forma animada, não apenas bonecos construídos com as mais apuradas técnicas, mas também objetos do dia-a-dia que ganham vida, como por exemplo, Terezinha, a colher de pau (Grupo Filhos da Lua).
O boneco em sua monstruosidade e o seu desapego às formas convencionais e cotidianas de existir são, na minha opinião, a essência de seu estar entre nós. As infinitas possibilidades que o boneco ganha nos fazem pensar em nossas infinitas impossibilidades. O boneco é o nosso desejo de fazer tudo e ser tudo. O boneco é o nosso além. É o nosso estado de graça. Não pode ser banalizado. Não é admissível.
Quero poder me emocionar por “Abaporu” que sai das telas da esplêndida Tarsila do Amaral e toma forma tridimensional e ganha movimentos. É como se Tarsila estivesse respirando com mais ardor por meio dos manipuladores que dão vida a seu filho mais ilustre. É uma lição de arte e de sensibilidade.
Quando anteriormente falei em banalizações, quero me referir ao perigo que corremos com grupos que percebem que as formas animadas causam um fascínio em seus espectadores, fazendo com que comecem a aparecer montagens sem o menor aparato técnico, com textos medíocres e com manipuladores que apenas movimentam objetos, mas não conseguem sequer fazer com que eles respirem, e por conseguinte, ganhem vida. São espetáculos que sobrevivem da ingenuidade de algumas plateias e da falta de profissionalismo de alguns produtores.
O teatro de formas animadas não merece conviver com este tipo de produção.
O estado de paz e fúria que aparece dentro de nós ao assistirmos a um bom espetáculo de animação faz com que também se faça uma reflexão de como estão os mecanismos para discussão, em âmbito público e privado, deste gênero teatral. Ainda não consigo perceber uma política pública que busque desenvolver e aperfeiçoar o acesso a mais pessoas de nossa população a conhecer e até aprender a confeccionar bonecos ou manipular formas que possam se tornar animadas, mesmo que de forma simples. Acredito ser este gênero teatral uma excelente forma de educar e estimular a criatividade em um contingente bastante significativo de nosso povo. A escola deveria ser um destes canais.
Agora, também é fundamental que profissionais qualificados possam desenvolver este trabalho, não aventureiros que apenas se arvoram em achar que conhecem as técnicas de manipulação, mas apenas conseguem desqualificar um trabalho tão delicado e caótico (no bom sentido!!!). As secretarias de Educação dos municípios e Estados deveriam olhar com mais interesse este assunto, e estimular a criatividade de seus alunos, para que tenhamos uma sociedade que possa sonhar com qualidade.
Axé aos festivais de teatro de animação que estão acontecendo em Santa Catarina (Rio do Sul e Jaraguá do Sul), além de iniciativas em outros festivais que abrem suas portas não só para a apresentação de espetáculos, mas também para a sua discussão, como é o caso do Fenatib.
Axé aos profissionais de nosso Estado que têm se dedicado à pesquisa e montagens de espetáculos que nos honram.
Quero citar um profissional e por meio dele agradecer a todos… Obrigado Nini Beltrame, que tem nos ensinado muito nestes anos e por nunca ter se cansado de lutar e discutir o teatro de formas animadas.
Para terminar, quero deixar o meu mais sincero obrigado ao Adeodato Rohden (o Dato), que, tenho certeza, está lá em cima com seus fios maravilhando uma enorme plêiade de espectadores e está também nos iluminando com as luzes que ele sempre teve dentro do peito.
Axé, ao bom teatro de formas animadas! Axé, ao bom teatro de bonecos! Axé, ao bom teatro de animação!
Lourival Andrade
Diretor Teatral, Mestre em História Cultural, Santa Catarina
Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 7º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2004)