Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 1979

Barra

Aonde Levar as Crianças

Como se Fosse Um Conto de Fadas

Numa casa há sempre alguns lugares que as crianças escolhem como esconderijos. E os espaços entre a cortina e a janela, atrás de uma porta, debaixo da mesa, transformam-se em lugares só seus, espaços mágicos onde, sozinhas, inventam histórias e vivem as suas fantasias. O sótão é um desses lugares. Basta que se entre nele para que venha à tona lembranças e velhas histórias. É num sótão, como uma viagem ás sensações, histórias e aos personagens da infância, que se desenrolam as situações de Apenas um Conto de Fadas, espetáculo com texto e direção de Eduardo Tolentino, em cartaz no Teatro Vanucci.

Duas crianças, Márcia e Renato, dentro de um sótão, remexem nas coisas, brigam, conversam, e resolvem visitar o Reino Encantado que conhecem das histórias. Como num passe de mágica, fadas, bruxas e duendes invadem a cena e o velho sótão com seus objetos quebrados e sem uso torna-se o cenário de um conto de fadas. De um lado, as bruxas, submetidas ao domínio de Maleficus Magnificus, de outro, fadas revoltadas contra o domínio do Mágico de Us. Quebrando com a oposição entre bons e maus, a luta é das bruxas e fadas, unidas, contra os grãos-senhores do bem e do mal. E, mesmo esses, não são tão maus assim. Um bruxo se apaixona por uma fada, o espelho mágico por uma bruxa, a rainha das bruxas Maleficus Magnificus. Afasta-se assim o espetáculo da rígida oposição entre personagens bons e maus, tradicional nos contos de fadas. No entanto, mais do que uma tentativa não de todo nova de problematizar os limites entre bem e mal no terreno das histórias infantis, a peça parece encaminhar-se para uma discussão irônica dos comportamentos e histórias que costumam servir de base à formação da criança. Daí as referências constantes a contos tradicionais ou personagens conhecidos via televisão como Plim-Plim, o mágico. Misturam-se o grilo falante do Pinóquio, o espelho da madrugada de Branca de Neve, um mágico, duendes, fadas e crianças. E, retirados de seu contexto de origem, funcionam como elementos de sonho que, despregados das histórias e quase como os objetos e trapos espalhados no sótão, servem para trazer de volta vivências infantis e velhas histórias. Interessante sobretudo, o retorno  ao velho sótão e a interrupção da história, como ocorre habitualmente quando se está sonhando, com insistentes batidas na porta do esconderijo. As crianças acordam, abrem a porta e se assustam. “São eles”, gritam, os bruxos que queriam cortar-lhes as cabeças. Voltam à cena Maleficus Magnificus, a rainha das bruxas e uma fada. Só que agora se trata dos pais de Márcia e de uma tia mal-humorada. Do cenário mágico volta-se a cena familiar, e os personagens readquirem os seus traços habituais. Na viagem pela bagagem ficcional, pai e mãe servem de molde aos personagens das histórias e revestem-se de contornos mágicos, quase como figuras igualmente ficcionais e perdidas em meio às fadas e bruxas.

Bom o texto de Eduardo Tolentino, apenas por vezes pesado, por um acúmulo de referências, e com uma influência pouco atrapalhada de A Menina e o Vento; e está bem aproveitado pelo tom irônico adotado na montagem e pela boa interpretação do elenco. Emília Rey, Flávio Antônio, Ernani Moraes, Laís Chamma e Christina Couto, principalmente, estão com um trabalho muito bom. Talvez, com relação ao cenário, se pudesse ter mantido o tempo todo em cena os materiais que povoavam inicialmente o sótão; em vez de uma troca constante que deixa o palco, algumas vezes, vazio demais. A direção musical de Fernando Carrera acompanha o tom, ora irônico, ora sentimental, da montagem; com destaque para música-tema de Oscar Carrera Jr., que, como a peça, chama a atenção para a possibilidade de, de repente e diante de qualquer objeto, ser possível deixar-se invadir por um outro tempo. O que transparece metaforicamente na Fada Lavínia, personagem que passa toda a peça à procura de seus ponteiros. “Alguém viu meus ponteiros”, pergunta aos meninos e, ao contrário do coelho sempre atrasado de Alice no País das Maravilhas, a Fada Lavínia trafega sem ponteiros pela memória. Só, ao final, as crianças encontram os ponteiros no sótão. No esconderijo, a possibilidade de se reencontrar velhas sensações, como em Apenas um Conto de Fadas, viagem pela infância.