Como membro de diferentes júris, de análise de projetos, de concursos, ou de prêmios a espetáculos, tenho visto proliferarem as “adaptações” de textos de outros gêneros para o teatro. O que por si só já é motivo para indagação – por que? – uma vez que há tantos e tão bons textos escritos para teatro. (O Catálogo da Dramaturgia Brasileira implantado na Rede da Memória Virtual da Biblioteca Nacional tem mais de mais de 900, de autores de todo o país).
Os resultados têm sido interessantes quando já existe uma escritura cênica criada (como é, por exemplo, o caso dos que partem de folguedos populares e associam as características comuns do infantil e do popular), ou quando o adaptador consegue superar o desafio de apreender o sentido maior e mais profundo do texto e a linguagem que o expressa – o que nem sempre acontece. E há também resultados realmente lamentáveis, quando não se obtém a indispensável transposição ou interação de linguagens e a “adaptação” não passa de mero pretexto para uso do nome de um autor, uma obra ou um título já consagrados. Machado de Assis deve ter revirado no túmulo, a partir de 2008, com o que fizeram usando seu nome e sua obra por ocasião do centenário de sua morte…
No caso do teatro infantil as maiores “vítimas” dessas desastradas adaptações são os contos de fadas. Se eles persistem vivos há séculos é porque – como já assinalaram estudiosos do assunto, como Bruno Bethelheim, Clarisse Pinkola Estés, Marie Von France e outros – neles se expressam, de forma breve e em situações simplificadas, mas nem por isso menos sugestivas, dilemas, perplexidades, emoções e dificuldades da maior importância para a criança: a necessidade de ser amado e não rejeitado; o medo de não ter valor; o medo da morte e o amor pela vida; a angústia de ser abandonado ou separado dos pais; a necessidade de escapar da ira ou da cólera do adulto; os meios de conseguir um crescimento e independência etc., etc. Se as situações expostas são simplificadas e os personagens típicos (mãe boa-madrasta má), os nomes genéricos (João, Maria, Chapeuzinho) isso não impede que mostrem à criança uma maneira de lidar com seus problemas, de descobrir a própria identidade (por projeção e/ou identificação com as figuras vistas), de escapar de perigos ou superar dificuldades (o ciúme das irmãs de Bela, a inveja da madrasta de Branca de Neve, os medos de João e Maria perdidos na floresta) para que possa vir a realizar seus desejos e reassegurar-se quanto a suas possibilidades, recursos e dotes (como Cinderela, mostrando sua iniciativa e capacidade de organização ao buscar a ajuda dos pássaros para realizar suas tarefas, da madrinha para conseguir meios de chegar a seus objetivos, e de assim afirmar sua identidade e realizar seu destino). Não por acaso o herói ou heroína são sempre seres em crescimento, em desenvolvimento, em viagem para, ou a caminho de, atravessando a “escura floresta” do mundo com suas incertezas e riscos. (Até Dante iniciaria sua “Divina Comédia” falando dela…)
Por isso, nessas histórias cada detalhe significa. Reduzir a trama ou enredo a um fiapo de história esvaziada e mal contada, e simplesmente eliminá-los, limitá-los a uma veste cênica que desaba por falta de um corpo que a sustente, ou trocá-los por figurinos coloridos, músicas e coreografias que nada dizem, ou inventar uma “moral da história” artificial e supostamente conclusiva é anular tudo isso.
Por que esses “adaptadores” ou os produtores que investem tempo e dinheiro para levantar suas produções não buscam fazer um trabalho melhor, já que há tanta informação a respeito? Por que pais e professores não se decidem a deixar de lado essas contrafações, bem como as menos bem-intencionadas produções caça-níqueis que delas se servem (e que, infelizmente, também existem), contribuindo para acabar com esse “teatro” que não é mais que um desrespeito à criança e à própria arte teatral?
Maria Helena Kühner
Escritora de peças teatrais para adultos e crianças, ensaios, pesquisas, literatura infanto-juvenil