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Um enorme contingente de pesquisadores vem dedicando-se ao longo deste século, aos estudos sobre as relações entre a cultura da oralidade e a cultura escrita. A polemica, entretanto, já aparece em Fedro, de Platão, quando o velho Sócrates alerta para os perigos que o logos escrito comportaria. Relata o diálogo entre o rei Thamous, de Tebas, e o deus egípcio Theuth, descobridor da aritmética, da geometria, da astronomia e das letras. Ao exaltar o mérito dos caracteres escritos, Theuth destacou-os como um conhecimento que tomaria os egípcios mais instruídos e mais aptos a memorizar. Discordando de tal avaliação, o rei mostrou-lhe que aquele conhecimento tornaria as almas esquecidas, deixando de exercer a memória, pois poriam confiança no escrito, devido à duração das letras. Os homens passariam a recorrer a elas, e não a si próprios, para se lembrarem das coisas. As letras serviriam à rememorização, mas não à memória.

Atento a esse episódio e lembrando-me de outros pressupostos referentes aos gêneros dos discursos orais e escrito, aceitei o estímulo tão amavelmente feito pela organização do 2º Festival de Teatro Infantil – evento que se vai afirmando como marco dentro da história do teatro brasileiro e que tem sido realizado pela Secretaria Municipal de Cultura/Fundação Cultural de Blumenau (SC) – para coordenar um curso sobre a matéria referente à relação entre a cena e o público infantil.

Para mim, a vida é uma sequencia de histórias, contadas em volta de uma mesa familiar, em pé num balcão, em rodas de cadeiras nas calçadas, enfim, a qualquer momento, a quem quer que seja. Entendo também que um professor seja um contador de história, ou cantador, e também ouvinte/participante das narrativas dos alunos. Muito interessado em conhecer procedimentos e técnicas adotados em salas de aula, escolhi como companheiros de pesquisa professores de 1° e 2° graus da região, e ainda tive o prazer de contar, como ouvintes, (aliás, bastante participativos) com um grupo de jovens profissionais da Polícia Militar da cidade. Durante o período do Festival nos concentramos em tomo do assunto do curso, de seus desdobramentos e modulações. Queríamos rever-nos como “Professores-contadores de histórias”, observarmo-nos enquanto atuantes dentro do nosso espaço cênico profissional. As primeiras sessões do trabalho foram-se definindo a partir do relatado por cada um, seguido por reflexões desenvolvidas pelo próprio narrador e pela plateia. O olho estava mais voltado para registrar os processos de fragmentação do discurso e de sua maior ou menor contextualização em relação ao real.

Sabia-se de alguns pressupostos, como os que consideram que o discurso oral seria agregativo e contextualizado, enquanto que a escrita produziria sequencias analíticas e tendentes a contextualização. Mas durante as narrativas chegamos a anotar que podem existir vários tipos de descontextualização. Assim descobrimos imensos territórios de atuação do professor como narrador dos mais diversos assuntos e matérias. A fragmentação do pensamento, pode servir como recurso tanto para distender ideias como para agrega-las. Logo, não ficamos presos a conceitos terminais, ainda que não pudéssemos desacreditar inteiramente de algumas afirmações. Lidamos, por exemplo, com a declaração de Jeffrey Kittay, renomado pesquisador, de que a escrita, enquanto divisão entre as coordenadas espaços-temporais de sua inscrição e as de sua leitura, enquanto produção, ao mesmo tempo não-falada e não representada de sua recepção, afastada o escritor das limitações das múltiplas condições da presença do real e dos atos da fala, deixando oportunidades de perspectiva suscetível de descoberta (1).

Por outro lado, sabia-se da prioridade histórica da oralidade sobre a cultura escrita na experiência humana, da prioridade da experiência poética sobre a prosaica em nossa constituição psicológica. De prioridade do ato sobre o conceito, da percepção concreta sobre a definição abstrata (2). O confronto entre pareceres, tão gigantes em densidade, veio confirmar a importância que deve ter, para todos educador, o material produzido pela cultura oral, da necessidade de sua conservação, sua adoração como modo primário de pensamento, sobre o qual a mente humana traçará as operações pertencentes à cultura escrita.

Seriam, então, como as tarefas de adaptação de uma narrativa escrita no emprego oral, na boca-a-boca do dia-a-dia?

Apanhei duas histórias: “Gaetaninho”, do Alcântara Machado, e “Tragédia Brasileira”, nos versos épicos, líricos e dramáticos do Manuel Bandeira.

Mais uma vez fui para a plateia, também como diretor, cenógrafo, fotógrafo, filósofo, ou como ruído na transmissão. Uma das razões de ser consistia em jogar com a flexibilidade e com as indicações liberadas pelo autor em cada palavra deixada pra trás, ao olhar encantatório do leitor. Para escapar ao conflito entre “o formal e o informal”, nosso trabalho foi ao encontro das diversas modulações de significação presas ao texto. A prioridade histórica da oralidade sobre a escrita na experiência humana não era dado suficiente para tranquilizar-nos enquanto contadores de histórias. Quero dizer, nossa autoria gostaria de encontra as linhas de tangência, de tradução, entre os textos escritos e contado. Isto foi o que caçamos. Repetíamos Sócrates:

“O que há de assustador, penso eu, na palavra escrita é que se pareça tanto com a pintura. Na verdade, os seres que esta dá à luz tem o aspecto de seres vivos, todavia, se lhe fizermos qualquer pergunta, cheios de dignidade, não responderão. O mesmo acontece com os escritos; julga-se que o pensamento anima o que eles dizem; interrogue-se, porém, um deles com
finalidade de nos elucidarmos sobre o que afirma sempre responderão uma só coisa, a mesma sempre… Se alguém discordar do que diz, refutando-o injustamente, para se defender precisa sempre de ajuda do pai que o gerou: por si só, é mudo, é fraco e indefeso”
 (Platão. Fedro).

Como radicalizam alguns intérpretes, com a escrita sempre começa a separação, a tirania e a desigualdade… A fragmentação da comunidade de falantes, a divisão da terra, a análise do pensamento e o dogmatismo, tudo começa com a escrita.

Largamos, então, os ensaios de “contação” de histórias vividas, aumentadas pela tradição, para se escamar o “poesis”” poético, virtual nos textos escritos.

A súbita prontidão e explosão do uso dos códigos de expressão das histórias apanhadas no ar, uma ligeira acelerada das inflexões gerais, e das particulares, uma visibilidade mais exibida, por exemplo, são anotações próprias das narrativas dos nossos primeiros encontros; que não podem entretanto, rivalizar-se nem como estilo, nem com as recriações mais refolhudas, vingadas das páginas literárias.

O que parece é que chegamos a perceber as liberdades escondidas no jogo da troca de registro; contador de histórias tem como ir-e-vir entre o que vê-ouve-fala-lê. Estivéssemos voando em histórias da carochinha, piadas, acontecimentos presenciados, ou então falando dos episódios que o Alcântara Machado, o Bandeira, tinham anotado, o que instigava mesmo, de verdade, era a enorme bagagem de querer falar e de ser escutado, de abrir o olho e segurar a atenção do ouvinte. Nos ouvimos.

Rio de Janeiro, outubro de 1998.

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Notas

(1) KITAY, Jeffrey: “Pensando em termos da cultura escrita”in: DAVID R. OLSON e NANCY TORRANCE. Cultura escrita e o oralidade. São Paulo, Ática, 1995.
(2) HAVELOCK. Eric. “A equação oralidade-cultura escrita: uma fórmula para a mente moderna”. Idem, ibidem.
Nota Final: os elencos de artistas amadores e profissionais que se apresentam em cena como “contadores de histórias” têm-se revelado, por sorte nossa, grandes adaptadores de textos para o teatro.

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Lauro Góes
Mestre em Sistemas de Comunicação, Doutor em Letras e Prof. da UFRJ-RJ

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 2º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (1998)