Abrazo, do grupo Clowns de Shakespeare

Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 10.07.2015

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O grupo fala de temas árduos para crianças e jovens, como exílio, poder, repressão, violência, censura, autoritarismo, ditatura, truculência e dor

A peça fica em cartaz no Sesc Pompéia até 19 de julho. Fotos: Pablo Pinheiro

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Horrores do autoritarismo ganham os palcos infantis

Em Abrazo, em que é proibido se abraçar, grupo de Natal (RN) traduz truculência e poder em fortes simbologias cênicas, sem palavras

Em São Paulo para uma curta temporada de três espetáculos no Sesc Pompeia, o premiado grupo de Natal (RN), Clowns de Shakespeare, nos brinda com o segundo infantil de sua trajetória de quase 23 anos: Abrazo, livremente inspirado em ‘O Livro dos Abraços’, do escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015). Nessa trilogia, todos os espetáculos têm como tema a América Latina.

No poético e pungente Abrazo, o grupo tem a coragem de falar de temas árduos para crianças e jovens, como exílio, poder, repressão, violência, censura, autoritarismo, ditatura, truculência, dor. Tiro o chapéu para essa ousadia temática da companhia. Em uma modalidade de arte que ainda sofre de muito preconceito e excessos desnecessários de zelo, é louvável fugir do padrão acomodado de quem pensa que teatro infantojuvenil só pode ser alegre, eufórico e colorido.

Não há texto no espetáculo, ou quase. Outra ousadia. Isso exige do elenco (Dudu Galvão, Paula Queiroz e Camille Carvalho) um rigor corporal, gestual e facial extremamente formalista e preciso. Eles dão conta, exibindo uma ampla alternância de ‘máscaras’ com grande talento e versatilidade. A plateia mirim não tem algo fácil diante dela para digerir. A multilinguagem é extremamente sofisticada, alternando mímica, dança, música, poesia, clowns, palhaçaria, animação em vídeo, narração em off, sonoplastia incidental, referências a desenhos animados e ao cinema mudo. Esse acerto na multiplicidade de recursos e de linguagens confere um dinamismo cênico que não deixa literalmente a peteca cair. (Há uma peteca usada como alegoria do universo indígena, por causa das penas.)

A cenografia, assinada coletivamente pelo grupo, é rica em adereços e objetos que ‘falam’ com a plateia, relativos a esse mundo de repressão e de poder desmedido. A força simbólica de cada objeto escolhido (gaiola, avião etc) é um grande trunfo da direção de Marco França, bem como do roteiro dramatúrgico criado por Cesar Ferrario. Crianças e jovens precisam desse mundo de símbolos, metáforas e poéticas – um mundo que os estimule a exercitar a fantasia e a compreender que a arte será tão mais arte quanto mais fugir de linearidades óbvias e mais mergulhar nas profundezas da imaginação. A sacada de demarcar um quadrado no palco, por onde os personagens transitarão o tempo todo, prepara o público para as cenas finais, em que os atores justamente arrancam do chão a fita adesiva (ou corda) e passam a ter mais espaço no mundo, menos controle, mais liberdade de ir e vir. Essa comunicação com a público feita à base de sugestões, nunca de entregas facilitadoras, faz de Abrazo um estímulo às descobertas e uma aula de potência criativa.

No enredo, proclama-se desde a primeira cena que é proibido abraçar. Assim, o desfile de personagens passa pelas mais variadas situações de relacionamento, mas sempre que surge a hora de trocar afeto soa uma sirene de polícia, impedindo a aproximação dos corpos. Isso vai impressionando as crianças de tal forma que, na cena em que finalmente uma avó abraça o neto, a plateia não se segura e explode em aplausos de aprovação e alívio. É lindo também, durante o espetáculo, ouvir as risadas das crianças que vão despontando aqui e ali, com espontaneidade e como forma de aprovação e perfeito entendimento do que está se passando no palco sem palavras. Não tem nada mais prazeroso do que isso no teatro infantil: crianças demonstrando que estão absortas e completamente entregues às linguagens propostas – ainda mais num caso como Abrazo, em que nada é mastigado, ao contrário, tudo tem de ser desvendado.

Incrível é a trilha sonora de Marco França, com inserções estimulantes de sonoplastia. Pais, mais do que filhos, enchem os olhos de água ao ouvir Gracias a la Vida, por exemplo. Incríveis também são as ilustrações de José Veríssimo, com seu traço firme em preto e branco, perfeito para as estripulias da animação em vídeo criada por Paula Vanina. É raro um espetáculo em que a projeção de imagens animadas se integre com tamanha harmonia às marcações dos atores e à trilha. Contribui também para isso o eficiente desenho de luz, a cargo de Ronaldo Costa.

Ponto máximo para o figurino todo em branco, da grife de João Marcelino, um mestre que sempre acompanha os Clowns de Shakespeare. A dança de chapéus, boinas, quepes, bonés, dá consistência ao jogo de identidades proposto pela direção.  E, assim, a cada ‘ratatá-tá’ disparado com os dedos pelos atores, como se brincassem de caubói, surge um novo sobressalto na plateia, completamente enredada pela força da comunicação não-verbal. A violência da guerra desponta de forma lúdica, impactando pelo contraste entre a dureza das arbitrariedades do mundo e a riqueza/delicadeza expressiva de que é capaz o teatro, quando é um teatro assim tão bem feito. Não percam. Faltam só mais dois fins de semana, antes que a trupe faça as malas de volta à sua sede potiguar.

Serviço

SESC Pompeia
Rua Clélia, 93
Tel. 3871-7700
Sábados e domingos, 12h (meio-dia)
Ingressos: R$ 5,00 (credencial plena / trabalhador no comércio e serviços matriculado no Sesc e dependentes), R$ 8,50 (usuário inscritos no Sesc e dependentes, +60 anos, estudantes e professores da rede pública de ensino) e R$ 17,00 (inteira)
Até 19 de julho