O Estado de São Paulo – Caderno 2
Por Daniel Piza – São Paulo – 11.03.2007
Educação Artística
Educação Artística era o nome de uma das “disciplinas” da escola, uma aula que ocupava em nossa percepção um lugar parecido com o da tal OSPB (Organização Social e Política Brasileira), ou seja, quase um detalhe ou excentricidade. Lembro que aprendemos a pintar dentro de círculos e que um dia a professora nos pediu para bolar uma cidade ideal, o que todos tratamos de fazer com avenidas retas e jardins clássicos. Me pergunto se não seria bacana que houvesse uma educação artística de verdade, para que as pessoas entendessem melhor o papel das artes e não ficassem tão passivas diante de livros, filmes, peças e composições; que os interpretassem com noções da história e técnica de cada linguagem, não apenas pela afinidade com o tema ou sentimento. O ganho de prazer que se vê no semblante de uma pessoa que é provocada a pensar sobre como é a obra, e não apenas sobre o que ela é, não deixa dúvidas.
A escola seria um lugar bem menos chato se se abrisse para debates culturais, se os professores dividissem com os alunos o gosto de interpretar um poema, de perceber concretamente os conceitos como, digamos, polifonia ou realismo, de reparar em recursos ou sugestões que normalmente nem são captados. Ou se a garotada pudesse ver ilustradas, por exemplo, as relações entre ciência, arte e pensamento de uma época, o que aproximaria professores de áreas diferentes. Seria importante partir de observações diretas, como em laboratório; mostrar as diversas maneiras pelas quais a pintura combina linha, cor e sensação de volume ou movimento, ou a música equaciona melodia, harmonia e ritmo a tal ponto que se modificam entre si. O que falta ao ensino brasileiro, e não só a ele, é mostrar e demonstrar as coisas, em vez de obrigar o aluno a decorar nomes e classificações sem assimilar o que significam.
Meu medo é que, ao institucionalizar um curso assim, o que era para ser inquietante e estimulante passe também a ficar burocrático. Já existe uma vasta, deprimente carência de educação científica no Brasil, a exigir prioridade máxima. Mas já passa da hora de combater essa cultura brasileira da “humildade”, que não é a humildade de aprender, mas a de dizer amém a tudo que se ouve. Talvez já fosse suficiente encontrar um professor que, de repente, entre uma respiração e outra, como meu professor de literatura no colegial, deixasse cair ao chão, como um giz, um verso de Fernando Pessoa – algo para ficar na cabeça dos alunos para depois do expediente, digo, da última aula. E que, com isso, mostrasse a eles que o mundo não começou quando nasceram, e que nem tudo que se anuncia como novo é, de fato, novo – para que senso crítico e sensibilidade não sejam vistos como oposições, mas polos sem os quais não existe essa tão falada e tão pouco realizada educação.
A arte de ver
Foram os textos e documentários dos críticos que me deram o que os professores não davam, o instrumental necessário para ver além do visível. Li nestes dias dois bons exemplos de grandes críticos: Modernismos, de T.J. Clark (Cosac Naify, org. Sônia Salzstein), e The Power of Art, de Simon Schama (Harper Collins, ainda sem tradução no Brasil). Nesses autores ingleses há a preocupação de mostrar que arte não é consolo nem conforto, embora também sirva para ocupar nossa mente com imaginações em vez de picuinhas; e que isso implica uma relação rica, não mecanicista, com a história, com a circunstância em que foi produzida. Em outras palavras, arte é forma sensível de conhecimento.
Clark, de quem destaco um livro de 1999 não publicado no Brasil, Farewell to an Idea (adeus a uma ideia, a da vanguarda), às vezes exagera na sociologia, como quando tenta defender o expressionismo abstrato como “a forma da aspiração pequeno-burguesa à aristocracia naquele momento decisivo em que a burguesia não tem mais essa aspiração” (hem?). E não concordo que as pinceladas de Cézanne sejam “dominadas por uma lógica do artifício”, porque, principalmente em suas naturezas-mortas, esse artifício estava a serviço de uma percepção ainda mais sensível do objeto real; suas maçãs, enfim, são ao mesmo tempo figuras geométricas e nos dão vontade de apalpar. Mas Clark nos põe para pensar e faz observações brilhantes como a superposição do ambiente calculado e de uma “trama de estranhezas” em Vermeer. E é boa a crítica à redenção de Walter Benjamin à redução marxista dos problemas da arte à suposta decadência da “sociedade burguesa”.
Um dos artistas analisados por Clark é também por Schama: Jacques-Louis David, o pintor de Marat, quadro símbolo da Revolução Francesa. Clark acha que a arte moderna começa aí, ao reagir às contingências da política republicana. Mas Schama nota que ainda há na pintura uma idealização – por influência de Poussin – , que romanceia o terror jacobino ao representá-lo como martírio em benefício do “nouveau régime”. Schama, historiador de O Desconforto da Riqueza, Cidadãos e Paisagem e Memória (Companhia das Letras), trata de outros sete artistas no livro novo: Caravaggio, Bernini (um belo ensaio que o mostra para além do rótulo do classicismo), Rembrandt (a quem biografou), Turner, Van Gogh, Picasso (sobre Guernica e a releitura de Goya) e Rothko – em quem diz ver uma poderosa busca de “envolvimento com o público”, ainda que não note como esse envolvimento pressupõe uma disposição metafísica que nem todos aceitam.
O que essa dupla de intelectuais quer dizer, no fundo, é que a arte moderna, transformadora como foi e ainda pode ser, deixou um legado teórico problemático. Ao endeusar ou demonizar o progresso, criou a ideia de que tudo que lhe antecedeu pertencia a uma mesma ordem. Críticos como Herbert Read e Clement Greenberg colocaram a história da arte numa linha “evolutiva”, como se Rembrandt – e não escolho o exemplo por acaso – tivesse como intenção copiar a realidade tal como é, de modo fixo e não aproximativo, e como se uma linguagem experimental fosse apenas a que traz um procedimento até então inédito, e não a que é original ao propor novos termos de ver o mundo. Este debate ainda vai longe.