Publicada no O Estado de São Paulo – Caderno 2
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 26.08.2002

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Autores Ensinam como Escrever Peça Infantil

A convite do ‘Estado’, oito profissionais em atuação na área de teatro infanto-juvenil de São Paulo – Atilio Bari, Fernando Lyra Jr., Henrique Sitchin, Dedé Pacheco, Marcelo Romagnoli, Hugo Possolo, Alexandra Golik e Osvaldo Gabrieli – respondem a cinco questões sobre a responsabilidade de se criar textos dramatúrgicos para crianças.

Quais os ingredientes para se contar uma boa história para crianças no teatro? Um bom contador de histórias é um potencial bom autor? 

Henrique Sitchin – Eu nunca consegui construir uma história que me satisfizesse partindo de algum conceito temático preestabelecido. Minhas histórias sempre nasceram de alguma emoção vivida ou de alguma imagem ou de uma interpretação diferente da realidade. Nunca perguntei às imagens o que elas queriam significar e, sim, que inspirações artísticas elas me permitiam alcançar.

Fernando Lyra Jr. – É preciso, em primeiro lugar, gostar de crianças e entender seu universo. Nunca esquecer de usar fantasia, como transformar um prendedor de roupas em um foguete, fazer um nariz crescer ou comer uma maçã enfeitiçada e sair correndo com uma panela na cabeça.

Hugo Possolo – Trabalho de maneira intuitiva. O mais importante não é a história em si, mas a maneira como ela é contada. De pequenos detalhes que podem prender a atenção, a elaboradas peripécias que amarram uma trama, o eixo central é voltar-se ao que a criança vai saborear. Há excelentes espetáculos que não contam história alguma. A dramaturgia não se limita a contar histórias. A vivência do dia-a-dia do teatro é fundamental para um autor.

Osvaldo Gabrieli – Quando escolho um “tema” como foco, penso muito nos “temas” que motivavam meus “sonhos infantis”. Fui uma criança cheia de fantasias, minhas brincadeiras criavam mundos e engenhocas. Quando o autor envolve a obra com depoimentos poéticos de sua vida, falando sobre seus sonhos, seus medos, suas verdades, suas dificuldades e conquistas, começa a criar um nível maior de interesse e traz humanidade à obra, ajudando a captar o interesse do público. O teatro tem a capacidade de instalar o espectador num mundo simbólico, de síntese e se não existe “magia” ao se comunicar, o elo se quebra e tudo começa a soar falso. Já vi contadores de histórias fantásticos que ao mexer com pequenos objetos e contar suas histórias tinham uma capacidade de comunicação enorme para cativar seu público.

Atilio Bari
 – A vida de cada um de nós é repleta de ingredientes para uma boa história. As histórias, na verdade, somos nós. Nossos sonhos, nossas perdas, nossas lutas, nossos amores: aí estão as histórias. Dramaturgia é uma técnica. O contador de histórias, como tal, é um ator e pode ser também um autor.

Alexandra Golik – Considero importante a identificação da criança com algum personagem da história. E isso se dá se o personagem não for “perfeito”, mas cheio daqueles pequenos defeitos que toda criança sabe que tem. Por exemplo, o fato de detestar tomar banho. Fraquezas são tão importantes quanto virtudes, por isso devem ser mostradas. Se uma criança só tem virtudes, ela não “cola”, não é real – é a “Sandy”.

Marcelo Romagnoli – Um contador de histórias pode ser um autor medíocre, assim como o inverso é possível. Mas saber envolver com uma história, oral ou escrita, é importante para ambos. No caso dos textos, é preciso ter sido criança, e todos fomos, o que facilita muito. Depois, sensibilidade e inteligência para lidar com o ritmo, a estrutura e a forma. Um mínimo de cultura literária e teatral. E nunca fazer concessões.

É preciso querer ensinar ou basta escrever uma peça que divirta as crianças? Toda peça infantil deve trazer necessariamente uma lição de moral? 

Henrique Sitchin – Acho isso uma tremenda prepotência de quem faz teatro. Ensinar cabe ao educador, que estudou para isso. Aos artistas foi reservado outro universo de expressão. Nós costumamos dizer aos professores, em nossas idas às escolas, que viemos dizer para as crianças que nem sempre 2 mais 2 são 4. E que esse questionamento contribui para o crescimento de pessoas sensíveis, o que já se provou ser tão ou mais importante do que o acúmulo de conhecimentos científicos.

Fernando Lyra Jr
. – A criança obedece pai, mãe, avó, avô, professores, irmãos, de forma automática, sem entender o motivo. O teatro, para mim, ensina com doçura. A criança se identifica com o problema ou a vivência da personagem e vê o resultado em “3D”. Isso é positivo. Lição de moral a criança tira de acordo com sua necessidade pessoal. A bruxa não precisa morrer, para a criança saber que não devemos fazer maldades.

Hugo Possolo – Para mim, a arte é mais expressiva e ampla quando consegue ser amoral. Uma moral final, no meio ou durante uma peça serve apenas para incomodar o público. Ainda mais as crianças que já são vigiadas em seus atos pelos adultos, que muitas vezes confundem educar com limitar. Se o artista quer dar uma visão libertadora não deve dar recadinhos nas peças. O autor que age assim impõe em sua obra uma visão de mundo totalitária.

Osvaldo Gabrieli 
– Passar conteúdos e “divertir” não são questões antagônicas, dependendo muito de como a montagem for apresentada. Vivemos numa sociedade apolínea, onde é supervalorizado o “sucesso individual”, o “externo”, a competitividade, o racional. Hoje, como autor, abordaria temas como o trabalho em equipe, a tolerância, tentar entender e dialogar com as diferenças, a ecologia (sem cair em simplificações tolas), a ética nas relações, a sensibilidade social e cultural.

Atilio Bari
 – Os tempos mudaram, mas gosto que a história tenha uma moral, desde que adequada aos nossos dias. Não radicalizo a ponto de dizer que toda peça infantil deva ser assim, mas acho que todo bom espetáculo tem esses elementos. Não tenho nada contra a diversão pura, mas acredito no teatro como recurso pedagógico. Valem todas as regras e preocupações do teatro infantil, acrescidas de mais uma questão complicada: a de transformar o conteúdo didático em algo que continue a ser teatro, e não uma “aula encenada”.

Alexandra Golik – Querer ensinar é chato. A mensagem, a boa intenção, o melhor caminho, a honestidade, o caráter e tantas outras coisas mais passam para a criança por osmose. Criança é um ser extremamente sensível, que absorve por todos os poros. Se você apresenta qualidade, você não precisa apresentar “serviço”. A lição de moral é consequência.

Dedé Pacheco – A peça precisa ser um desafio à imaginação do espectador mirim. Para isso, o texto tem de estar aberto a significações. O maior compromisso didático do teatro é o de estimular a construção do universo simbólico da criança. A lição de moral é a coisa mais improdutiva e canhestra dentro do teatro para crianças, talvez apenas superada pela pieguice.

Como manter o ritmo de um texto dramatúrgico para que a criança de hoje, ligada em videogames e na velocidade da internet, não se disperse? 

Henrique Sitchin – Algumas vezes, já me vi tentado a usar truques para adequar o meu discurso a esta geração rápida e aflita. Mas, por enquanto, venho seguindo uma linha que tenta fazer do texto dramatúrgico, em si, o maior fator para que a criança não se disperse. Vou continuar assim, competindo com esse mundo de chips da forma mais humana possível, buscando a poesia.

Fernando Lyra Jr. – Criança é, foi e sempre será criança. Não existe criança de hoje e sim pais de hoje, que esquecem de tratar criança como criança. Minha preocupação, quando escrevo, é com a rapidez de pensamento da criança. Ela sempre quer novidades, quer saber mais.

Hugo Possolo
 – De tempos em tempos, a sociedade acelera seu ritmo de assimilação de informações. Não podemos fechar os olhos a este fato, mas também não devemos nos submeter a ele. Uma peça de teatro tem de, acima de tudo, atingir a imaginação de seu espectador. Feito isso, pode ter o ritmo que quiser. Às vezes, uma peça pode demorar duas horas e, ao final, o público não perceber que o tempo passou. Noutras, pode ser uma peça com ritmo frenético, mas não se passaram nem cinco minutos e o público acha que já se passaram três horas.

Osvaldo Gabrieli – A dramaturgia nos propõe um ponto de partida, pode ter uma estrutura clássica aristotélica, pode ser fragmentada, tanto faz. Personagens bem estruturados são vitais para sustentar a dramaturgia, polaridade entre os personagens, arquiteturas bem desenhadas de quem é quem no tabuleiro da cena e como ele joga com os outros personagens. Transformações e viradas do jogo durante a cena são importantes.

Atilio Bari – A peça infantil pode incorporar algo dessa agilidade atual, mas não deve se deixar levar por ela. O andamento da peça não deve se pautar pelo ritmo, e sim pela pulsação. Não adianta você colocar correrias e musiquinhas excitantes no palco, se a peça não tiver conflitos, emoções, alegria ou desafios latentes.

Alexandra Golik – Quem vai ao teatro já está preparado para ver gente, de carne e osso. Não são imagens virtuais. É real, é gente de verdade, que fala e se mexe. O público quer ver o ator bem preparado, criador, inteligente, defendendo uma concepção artística igualmente criativa, surpreendente. Não se trata de realizar uma superprodução. Não tem nada a ver com isso. Não se pode confundir riqueza material com qualidade. Teatro bem feito não dispersa a criança, ao contrário, a estimula.

Marcelo Romagnoli – Parece que o ritmo não está isolado numa estrutura dramatúrgica. Ele será mantido por meio de variantes e também acompanhará a densidade da história. Se a narrativa é viva e existe ação presente, o ritmo resistirá sozinho.

Dedé Pacheco – É muito importante não confundir ritmo com hiper estimulação. É preciso ter coragem de também abrir espaço para o silêncio e para a delicadeza, do contrário, perderemos a dimensão do sensível.

Que cuidados deve ter um autor ao escrever teatro para crianças? Existem temas proibidos? O final deve ser sempre feliz?

Henrique Sitchin – O final deve oferecer às crianças alguma alternativa de transformação. Podemos trabalhar temas difíceis, mas também devemos indicar caminhos possíveis de superação.

Fernando Lyra Jr. – Tudo pode ser falado. Desde que seja feito com elegância e que não magoe o pensamento infantil. 

Hugo Possolo – Temas proibidos? Não. Existem temas que não interessam às crianças ou que merecem um cuidado grande na abordagem. O final, feliz ou não, deve conter esperança na humanidade.

Osvaldo Gabrieli – Eu chamaria os autores a refletir sobre o mundo em que vivemos, um mundo insensível, infestado de guerras, miséria e intolerância. Atilio Bari – O maior cuidado é o de não se distanciar dos ideais humanitários. E gosto dos finais que convidem a uma reflexão.

Alexandra Golik – O final, se não for exatamente feliz, acredito que deva ter ao menos a intenção de ser feliz, fazer o possível para que as coisas, ao final, possam dar certo. A criança ganha mais se sair do teatro com esperança, com vontade de ser bacana.

Dedé Pacheco – O maior cuidado que um autor deve ter é o de escrever bem.