Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Lausimar Laus Gomes – Rio de Janeiro – 07.11.1948
Assuntos e Perspectivas
Na semana passada, minha filha me carregou para ver O Casaco Encantado. Digo que me carregou, porque eu estava doente com febre e sai da cama para ir ver dona Morineau vestida de bruxa, voltando outra vez a “minha infância querida que os anos não trazem mais”. Confesso que relutei a principio, ponderando a minha. garota que estava febril, que seria bom deixar para outro dia, mas não houve nada que a fizesse desistir da ideia.
No colégio todas as meninas já tinham visto o bruxo querendo deitar na cama do João e já tinham conhecido o relógio mais maravilhoso do mundo, andando em passos de bailarino carregando consigo a musiquinha mais deliciosa que possa existir, enfim o relógio que sorri e que brinca com tempo como se ele fosse seu servo, e ela ainda não tinha a felicidade de ver tudo isso.
Confesso que me pus a pensar, voltei a ser do tamanho da minha garota e aquelas confissões dela me seduziriam também. Bruxa casada, marido bruxo eu gostaria de ver… No meu tempo é verdade que já havia a velha bruxa, mas coitada sempre sem marido, sozinha no mundo como qualquer velhota obscura.
Agora, bem que eu gostaria também de ver o marido da bruxa querendo deitar na cama do João. E é claro que esse feiticeiro relógio também me deixou tentada. E ai já eu tinha entrado no reino do encanto, roubando muita coisa da imaginação criança que podia só pertencer a minha filha.
Quando dei por já estava no lotação para ver a casa da vovozinha que contava uma linda historia. E lá me embarafustava, cada vez mais por um caminho diferente, aquele caminho que leva a gente para um lugar distante, onde se pode arrumar tudo direitinho o mais lindo que se queira, e fazer as pessoas tão bonitas de espírito e tão doces, justamente como a gente desejaria que elas fossem.
Agora O Casaco Encantado tomava conta da minha cabeça. Não sei se a minha filha estava também ausente do lotação, mas eu estava. Quem sabe se ela não chegou a fazer a visão antecipada da história da senhora Lucia Benedetti? O fato e que eu estava inteiramente transportada para a ideia de um casaco encantado que o João e o José tiveram a oportunidade de ter em seus braços.
Que bom seria ver um capote assim! Ele deve encerrar tantos segredos! Que doce os segredos dos encantos! Gente virando bicho, bicho virando príncipe, flor virando passarinho… Que poder mágico teria esse encantado casaco que a senhora Benedetti encontrou naquele lugar que os grandes ficam pequeninos de novo?
Assim, quando o lotação parou em frente ao Jornal do Brasil para alguém saltar, foi que eu notei que aquilo era mesmo um lotação que levava pessoas diferentes que a cidade era a mesma todo o dia e o pior, que eu havia passado de onde devia saltar. Já estava longe do teatro.
Peguei na mão da minha garota e sai correndo. O relógio era o intransigente relógio verdadeiro que no meu pulso já marcava vinte horas e dez minutos! Estava muito longe de ser o encantador marcador de horas de que minha filha me falara.
Por isso quando chegamos, a avozinha já tinha começado, a história. O João e o José já estavam afobados para terminar o capote do rei. Caminhei léguas e resca a costura e o modo de trabalhar dos dois alfaiates! Exatamente como nos livros de histórias… Até a casa deles tinha aquele “quê” de encanto!
Mudei-me com armas e bagagens para a terra dos dois. Nem: me lembrei mais que tinha minha filha ao meu lado. Senti o pavor com deles, quando chegou o bruxo com aquela capa de tiras, faminto, fazendo misérias fazendo um virar sapo e encantando o capote do rei. Caminhei léguas e léguas com os dois coitados, até aquelas longínquas paragens onde havia uma árvore que tinha alma e escondia as mágoas da bruxa chorando os maus tratos do marido; senti também com eles toda a alegria quando vi a princesa ensinando as palavras mágicas para ensinar fazer o bruxo dormir. Em suma vivi toda a emoção diferente daquele mundo maravilhoso, e namorei o relógio o tempo todo. Para mim, aquele relógio era a alma da peça, tal a maneira como foi idealizado. Todos os artistas estavam excelentes.
Dona Morineau sempre extraordinária e não sei se pelo fato de ter sido uma coisa nova e linda no meio de tanta coisa triste que se vê por aí vendida as crianças, que eu senti que nada faltava na peça. Cenários encantadores, direção magnífica, interpretação esplendida.
Quando voltava para a casa, vinha me lembrando, entre os comentários deliciosos da peça, que minha filha fazia que tanta coisa pode ser feito no terreno da literatura Infantil dando a criança esses ternos instantes de encantamento dentro de uma sutileza divina. Devíamos acabar de uma vez por todas, com essa espécie de literatura perniciosa, incentivando os que fazem o bom teatro, a boa leitura a boa musica infantil.
A criança em nossa terra começa a ser compreendida e cuidada! Nada mais justo, quando em outros países, ela representa algo de importante na preocupação dos povos e dos governos que muitos se interessem pelas leituras que mesma se dão e pelas diversões que frequentam.
Nada mais digno do que procurar fazer do homem do futuro uma personalidade sadia de quem o País possa estar seguro quanto a sua dignidade de cidadão. Por isso, acho que o dever de cada pessoa, que se dedica a escrever para crianças e fazer recreações infantis, aplauda a grandiosa obra da senhora Lucia Benedetti, fazendo bom teatro para sossegar o espírito, deliciar os olhos e desenvolver a bondade. Creio que se fosse em outro país, onde as crianças são consideradas como merecem e onde se dá a máxima atenção aos seus problemas, os jornais teriam feito verdadeira consagração a peça O Capote Encantado, tanto como na Inglaterra se fez a Alice no País das Maravilhas que ficou constituindo uma joia da literatura infantil, não só das Ilhas Britânicas como também de todo o resto do mundo.