Esta entrevista fez parte do Seminário Permanente de Teatro para Infância e Juventude, realizada no Teatro Ziembinski, em 26 de maio de 1997.
Dudu Sandroni
Inauguramos hoje o Seminário Permanente de Teatro para Infância e Juventude com a Companhia Atores de Laura. Além de ser responsável por Decote, o grande vencedor do Prêmio Coca-Cola de 1997, a companhia é uma das que vão representar o Brasil na Bienal de Teatro de Lyon, na França. Começaremos ouvindo a história do grupo, desde a sua fundação. A plateia fique à vontade para participar e incrementar o papo.
Susanna Kruger
Essa companhia nasceu de uma maneira muito especial. Eu e Daniel Herz damos aulas de teatro na Casa de Cultura Laura Alvim desde 1988. No início, tínhamos só uma turma e muita vontade de passado o ano da iniciação, continuar com a turma e desenvolver um trabalho mais complexo. Mas nunca dava certo, os alunos se dispersavam. Finalmente, depois de dois anos, conseguimos. Era um grupo interessantíssimo, que fez um ano inteiro de aulas e permaneceu junto no ano seguinte. Aquela turma de ouro! Depois do terceiro ou quarto ano de trabalho, o Daniel Herz achou que era hora de partir para um trabalho de grupo. Eu já não acreditava mais em teatro de grupo, mas o Daniel estava animado e resolvi tentar de novo. Ele escreveu um texto com o Bruno Levinson, A Entrevista, e começamos a trabalhar para a apresentação de fim de ano na Laura Alvim. Um dia, o Ivan de Albuquerque assistiu o ensaio e, entusiasmado, nos convidou para uma temporada no Teatro Ipanema (hoje Teatro Rubens Corrêa). Tínhamos nove menores no grupo e encaramos a maior burocracia no Juizado. Foi um terror! Finalmente, chegou a estreia e A Entrevista, que era para ficar dois meses em cartaz, acabou ganhando uma temporada de seis meses. E as pessoas ali, prestigiando. Fomos para a segunda peça, Cartão de Embarque, também texto do Daniel e do Bruno. O curso continuava e a maioria dos alunos permanecia. Durante os ensaios de Cartão de Embarque, que também ficou seis meses em cartaz, começamos realmente a encarar aquele grupo de pessoas de maneira diferente. Não foi de uma hora para outra. Foi um processo conjunto meu, do Daniel, dos alunos, do pessoal da técnica – Aurélio de Simoni, iluminador, que está com a gente desde o início; Marina Salomon, coreógrafa, que comprou a ideia também; a Evelyn Disitzer, assessora psicanalítica e, agora, a Lídia Kosovski, cenógrafa. Enfim, veio Romeu e Isolda, a profissionalização dos atores junto ao sindicato e Decote. Agora, a companhia está aí.
Daniel Herz
É importante dizer que, depois de A Entrevista, quem quisesse continuar com as aulas, continuava, mas não era obrigatório. A estrutura da companhia foi se fortalecendo ao longo do tempo. Estamos descobrindo essa proposta de fazer teatro juntos. Fazer teatro em companhia uns dos outros, é isso o que a gente chama de companhia de teatro. Propus isso pra Susanna porque a nossa profissão é muito instável e isso faz com que a gente fique se dividindo – um teste aqui, outro ali, uma peça, um comercial – e deixe de correr atrás dos verdadeiros desejos. O desejo do artista fica sendo só o de se estabelecer, entrar no mercado, conseguir a aprovação do mundo. Afinal, por que viramos artistas? Por que resolvemos fazer teatro? Eu imagino que cada um de nós tenha dentro de si uma chama que faz com que deixemos de lado caminhos mais tradicionais para seguir essa carreira instável. Mas a instabilidade dessa profissão acaba fazendo com que alguns percam a motivação original em função da dificuldade de sobreviver de teatro. E as pessoas acabam não evoluindo porque ficam filipetando na profissão, pipocando. Achamos que a companhia não é só uma coisa de segurar a barra um do outro. É também uma forma de irmos atrás daquilo em que acreditamos artisticamente. Eu sempre falo que, no meu caso, a ideia de criar uma companhia de teatro não é só uma tática de um jovem diretor para se lançar no mercado, se projetar, e depois sair fora e fazer carreira solo. Até agora, tenho conduzido o trabalho movido por um desejo real, verdadeiro, acreditando que essa é a melhor maneira de fazer teatro.
Dudu Sandroni
Além dos ensaios regulares, parece que a companhia mantém algumas atividades paralelas. Eu lembro que, na época do Romeu e Isolda, vocês tinham o acompanhamento de uma psicóloga. Como é esse acompanhamento?
Susanna Kruger
A Evelyn, nossa assessora psicanalítica, é uma profissional que, hoje em dia, tem que fazer parte de qualquer ficha técnica de teatro. Só dá maluco! Só dá egão. E a Evelyn teve participação fundamental na formação da companhia. Ela acompanhava todos os ensaios. Mas não é terapia de grupo, não. Nada de “eu odeio fulano! Fulano fez aquilo comigo”. Não é isso. É apenas um olhar de fora quando você está ali, no rame-rame, não vê os problemas mais evidentes. E quando as coisas passam sem serem resolvidas, vão virando bola de neve… É esse tipo de coisa que a gente tenta evitar, cuidando da relação entre as pessoas da companhia de um modo profissional. É legal a psicanálise poder atuar fora do consultório, trabalhando num grupo de teatro, acompanhando a construção do personagem e o trabalho de direção. Ela acompanha tudo: dos perrengues da gente pela madrugada a dentro, até reunião para decidir quanto cada um vai ganhar. E o resultado desse trabalho tem sido ótimo.
Da Plateia
Daniel, como é largar a atividade tradicional e abraçar a carreira de artista?
Daniel Herz
Bom, segundo o ator Xando Graça, aqui presente, essa opção é a maior roubada, né? (risos.) Na verdade, acho que a decisão vem aos poucos. Eu, por exemplo, quando comecei, cursava economia na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e resolvi fazer um curso de teatro. Você vai se apaixonando aos poucos – ou não. Eu acho que as pessoas têm que ficar atentas para perceber, em relação ao teatro, até que ponto e com que intensidade querem se entregar. Não acho que a decisão deva ser definitiva, do tipo “então tá, vou ser ator para o resto da minha vida”. Acho que não existe isso. Tem que ir sentindo o dia-a-dia. Nós temos uma imagem muito romântica da nossa profissão, que até se justifica. Mas essa atividade também tem um cotidiano, um lado insuportável feito de rotina, horários, disciplina. Enfim, tem seu lado chato, como qualquer coisa na vida. Na hora de optar, é preciso entrar em contato com tudo isso para saber se o tesão de fazer teatro se sustenta, apesar das dificuldades.
Dudu Sandroni
Vocês têm um produtor ou o trabalho de produção é dividido entre os componentes do grupo? Como é a divisão de tarefas?
Daniel Herz
Olha, eu acho essa questão superimportante dentro da estrutura do grupo. Na companhia, achamos que os valores de mercado – diretor tem que ganhar x%, ator, 10% – são uma bobagem. É óbvio que se eu for fazer uma peça fora da companhia, vou me inserir no esquema. A gente acha que, para uma companhia existir verdadeiramente, as pessoas têm que se sentir donas da história do grupo. E a relação econômica é fundamental para que isso aconteça. Então, não adianta falar “olha, gente, nós somos donos desta história” se, na verdade, eu e Susanna estivermos ganhando dez vezes mais do que os outros. É impossível isso ser verdadeiro se, economicamente, a balança pende mais para um lado do que para outro. Nosso esquema é o seguinte, pra ficar bem objetiva essa história: cada função tem uma cota, e o valor da cota é sempre igual. Digamos que, feitas as contas, cada cota dá 3% do líquido. É assim que funciona. Por exemplo, no Decote, aconteceu o seguinte: a Ana Paula Secco trabalhava como atriz, como programadora visual e como figurinista. Portanto, ela tinha direito a três cotas iguais. Eu fiz a dramaturgia e dirigi e, por isso, só ganhei duas cotas. Então a Ana Paula, no Decote, ganhou mais do que eu.
Susanna Kruger
Mas trabalhou mais do que ele.
Daniel Herz
É, não sei. Há controvérsias (risos). Mas acho um exemplo bacana, porque é um critério que faz as pessoas se sentirem verdadeiramente donas da história. Se a pessoa desempenha uma função, ganha por ela. O que não impede o famoso mutirão, aquelas atividades que têm que ser de empenhadas por todos. Divulgação, por exemplo, todo mundo faz. Apesar de termos uma divulgadora, a Verônica Reis, a distribuição de filipetas é feita por todos. Se for preciso dar uma festa para arrecadar fundos, todo mundo participa da organização. É assim.
Susanna Kruger
Nossa divulgadora, a Verônica, é atriz da companhia e, certamente, pelo menos pra gente, faz o trabalho muito melhor do que qualquer divulgador profissional, porque ela só divulga a nossa companhia. Ela tem um carinho especial, pensa, acorda e liga: “Pensei em tal coisa…”. É legal porque cada um mexe um pouco a colher. O Luiz André Alvim e o Ique Larica, desde o início, vêm colando no Aurélio e viraram meio assistentes dele. Em toda montagem de luz, estão os dois lá. Isso é super legal, porque todo mundo faz um bocadinho de tudo.
Da Platéia, Xando Graça Vocês falaram sobre o pagamento do elenco. E a relação de grana com o pessoal da técnica, como é?
Susanna Kruger
É a mesma coisa. Quando fiz contato com o Aurélio, por exemplo, falei “olha, o esquema é esse”. Acho o Aurélio um cara muito especial, como pessoa e como profissional. Ele é… Nossa! É de ouro! E topou entrar nesse esquema. Mas, no primeiro telefonema, reagiu: “Isso é um absurdo! Tenho vinte anos de teatro, não posso ganhar menos do que uma pessoa que começou ontem…” Eu dizia: “Aurélio, você fica quieto. Você vai ganhar a mesma coisa que todo mundo, que o espírito da coisa é esse.” Hoje em dia, tenho certeza de que ele concorda comigo. Todos se entregam muito mais ao trabalho se ninguém se sente explorado.
Lídia Kosovski
Estou me lembrando de quando a Susanna Kruger telefonou, super constrangida. Nós da técnica somos, hoje em dia, muito questionados. A quantidade de atores existente no mercado faz com que a demanda de trabalho, para eles, seja menor do que a que existe para o pessoal da técnica. O resultado é que a técnica aparece meio como vilã da história. O vilão é o cenotécnico, que sempre consegue ganhar três vezes mais do que o ator, que é a essência do teatro. Me lembro bem, apesar de eu e Susanna sermos amigas há muito tempo, que havia um constrangimento claro naquele nosso primeiro papo sobre a companhia. Só que eu acho que as pessoas esquecem que ninguém procura ninguém à toa. Nesse tipo de relação, quando te chamam para trabalhar junto, você se sente, de alguma forma, homenageado e feliz, porque há coisas para trocar nessa relação. Acho que a posição do cenógrafo no teatro é uma coisa delicadíssima, complicadíssima. A questão da cenografia é uma questão à parte, frente ao que está acontecendo com a linguagem teatral moderna. Mas isso já é um desvio da discussão… Essa possibilidade de trocar experiências numa situação completamente distinta, que é a situação de grupo, é o que faz a gente ter tesão pelo trabalho. Querer pagar pra ver. A entrega é de outra ordem. Você pode ver o trabalho de um grupo caminhando, evoluindo e tendo continuidade…
Dudu Sandroni
Todo mundo já sabe do seu cachê, ouviu? Lídia e Aurélio estão ferrados no mercado… (risos)
Lídia
Acho fundamental poder ter essa experiência de ver um trabalho crescendo. Isso, do ponto de vista da técnica, é uma experiência difícil de acontecer. Poder pensar junto, interferir num processo não como um profissional que está sendo escolhido para atuar só naquele acontecimento isolado. Interferir ao longo do processo. Às vezes, você é chamado para um projeto e cria junto, mas o nível de interferência, de construção, a possibilidade de jogar semente só ocorre quando há continuidade, intimidade… A questão da intimidade é muito especial. Uma intimidade artística, uma intimidade no produzir, não só no relacionamento pessoal. Essa possibilidade é um ganho, uma oportunidade única.
Susanna Kruger
Quando chamamos a Lídia, não foi pra ela fazer o cenário de uma peça. Chamamos a Lídia para um namoro, para ela se integrar à companhia, preencher esse espaço que estava vazio e ser cenógrafa da companhia. E foi ótimo. Nós fomos nos harmonizando, acertando o passo.
Dudu Sandroni
Andamos meio conformados com o fato de não conseguirmos viver de teatro. É natural, portanto, que cada um tenha a liberdade de atuar em outras frentes, outras profissões. O teatro passa a ser feito só por prazer. No caso de vocês, existe uma perspectiva, uma estratégia de profissionalização para que, através do trabalho da companhia, o grupo passe a viver só de teatro?
Daniel Herz
A estratégia é nos fortalecermos interna e externamente. Solidificarmos-nos para conseguir patrocínio, financiamento de firmas privadas…
Dudu Sandroni
Isso é uma meta?
Daniel Herz
Isso é uma meta. Com Decote, conseguimos o primeiro patrocínio, da Coca-Cola. Um patrocínio pequeno, mas significativo. Foi a primeira vez que tivemos algum dinheiro. Para o próximo espetáculo, não temos nem um real, zero. Só temos a caixinha…
Susanna Kruger
A caixinha é uma ideia do Daniel que funciona assim: de cada borderô, do que entra de patrocínio, enfim, de qualquer dinheirinho que chega, tiramos uma porcentagem que gira entre 9% e 11% para a caixinha da companhia. É com esse dinheiro que pagamos a contadora e bancamos o início da produção das peças.
Daniel Herz
Tem uma história interessante, que o Aderbal e você, Dudu Sandroni, presenciaram, sobre aquele encontro com Jean-Michel Guy, funcionário do Ministério da Cultura da França. Eu já sabia que a França tinha todo um esquema de apoio estatal à cultura, mas fiquei muito impressionado com os dados estatísticos, com os números exatos que o cara nos passou – apoio a 600 companhias, fora a verba para 1500 projetos teatrais – dá uma puta frustração perceber que a gente fica aqui nessa guerra para conseguir sobreviver. E sobreviver é fundamental no momento em que as pessoas estão se tornando adultas, mais maduras. É uma questão com a qual a gente vai ter que se confrontar cada vez mais. E temos que tentar fazer isso sem minar a beleza da história da companhia. Acho que a meta é conseguir apoio, seja através do Estado, seja através de uma mudança da política cultural, seja através de empresas, o objetivo é conseguir subvenção para fazer teatro. Essa é a nossa meta.
Dudu Sandroni
E o elenco? Abandonou tudo para fazer teatro ou tem outras atividades?
Daniel Herz
Cada um tem uma história diferente. Um está fazendo faculdade, outro está investindo em dar aulas… Não existe um padrão.
Da Plateia, Djalma Amaral
Gostaria que o Aurélio falasse do seu processo de criação junto à companhia. Se a companhia lhe dá liberdade e se isso ajuda no processo de criação de luz. Com a chegada da Lídia, como é que fica o processo de criação da luz e da cenografia, já que, antes dela, a iluminação meio que compensava a ausência da cenografia?
Aurélio de Simoni
Quando cheguei para o primeiro encontro no Porão da Casa de Cultura Laura Alvim, vi 21 jovens com idades entre 16 e 21 anos. Os dois diretores eram dois pirralhos. Cheguei ali e me senti, mais do que nunca, um ancião. Pedi até uma bengalinha branca. E no porão da Laura Alvim, que você conhece tão bem, Djalminha, naquele espaçozinho atarracado, vi a força que essa garotada tem. E acreditei como ainda acredito que eles iriam evoluir no processo de criação teatral. E sei que o meu processo evoluiu junto com eles, porque criar luz é mostrar o trabalho dos outros. Não estou querendo minimizar a forma ou o conteúdo do meu trabalho. Procuro, com minha luz, trazer esse processo de criação do grupo para a plateia sem competir com o que está sendo feito no palco, sem desviar a atenção do público. Porque a razão do teatro continua sendo a plateia, embora muita gente faça teatro hoje pensando que a razão do espetáculo está no palco. A razão do teatro continua sendo a plateia. É para ela que a gente faz teatro. E essa companhia faz esse tipo de teatro. Me interessa estar participando desse processo. Brigas? Temos muitas! Mas me entusiasma muito. Confesso que beber dessa juventude me alimenta.
Dudu Sandroni
Já que falamos de cenário e luz, vamos falar agora um pouco sobre dramaturgia. Cartão de Embarque e A Entrevista foram textos criados pelo Daniel e pelo Bruno. A partir do terceiro espetáculo, houve uma criação coletiva. Por quê? O que mudou para que o grupo passasse à criação coletiva?
Daniel Herz
Isso começou com Romeu e Isolda. Cheguei pra Susanna e falei: “Vamos tentar uma coisa diferente – criar junto com os atores”. Depois do texto criado – eu, sempre fazendo a dramaturgia, costurando, fazendo o trabalho de revisão – virei pra Susanna e disse: “Olha, é injusto, é antiético eu assinar esse texto. Porque, apesar de a ideia ser minha, o texto não é meu, as palavras ditas pelos personagens não saíram da minha cabeça. Foram criadas pelos atores.” Então, nada mais justo que botar nos créditos – dramaturgia: Daniel Herz; texto: companhia. E foi um processo maravilhoso! E, mais uma vez, voltamos àquela questão de as pessoas se sentirem donas da história, do processo. Porque acontece muito de as pessoas botarem os atores para improvisar e eles criarem o espetáculo inteiro e depois, na hora de assinar o texto, aparece lá o nome do cara que teve a ideia. Acho isso uma sacanagem. É esse tipo de coisa que mina a relação interna de um grupo. No meu caso, o que me motiva é a saúde do grupo e não uma projeção pessoal imediata. Acho importante falar sobre isso. As pessoas perguntam: “mas como é esse negócio de criação coletiva?” Na verdade, não é muito diferente do que existe por aí. A diferença é que nós assumimos para o mundo que a criação do texto é coletiva.
Dudu Sandroni
Com Decote, vocês queriam montar Nelson Rodrigues? Chegaram a começar e a família não concordou? Como foi essa história?
Daniel Herz
A gente nunca pensou em montar uma peça do Nelson. Por quê? Primeiro, porque a gente acha que não cabe na companhia uma peça do Nelson e, principalmente, porque o que mais motivou a história do Decote foi juntar três questões que o Nelson trabalhou isoladamente, mas nunca agrupou: futebol, situações passionais e a questão do coro, que aparece em algumas das peças dele. A gente achava fascinante juntar esses três mundos paralelos na cena. E não existia nada do Nelson que falasse disso. Num primeiro momento, pensamos em usar A Vida como Ela é. Aí teve, sim, um problema. Nem chegamos a falar com a família do Nelson, mas soubemos que a Rede Globo tinha comprado os direitos e ninguém podia montar. Decidimos então fazer disso um desafio diferente: criar as situações necessárias para nossa história. Depois de mergulhar no universo rodriguiano por três meses, a lógica dele começou a se instaurar no grupo. Aí ficou fácil criar as situações.
Dudu Sandroni
Nas três primeiras peças, vocês tratam de um universo que tem muito a ver com o do grupo, ou seja, o universo dos jovens e seus conflitos. No Decote, vocês se voltam para outro universo, o universo rodriguiano. Por que sair daquele universo temático, já que a companhia é formada por jovens?
Susanna Kruger
Na verdade, Cartão de Embarque não pertence ao universo jovem. A Entrevista realmente trata dessa questão: o lugar do jovem no mundo. Já Cartão de Embarque fala de uma questão que não tem nada de adolescente: é a questão da violência – de como todos somos passíveis de cometer atos violentos. E os cometemos a cada dia. Em relação a Romeu e Isolda, até tenho minhas dúvidas, afinal, o amor não é um sentimento exclusivo dos adolescentes. Tem um amigo meu que diz assim: “Todo dia eu acordo, entro no ônibus e acho que vou encontrar a mulher da minha vida. Olho pra uma, não é. Olho pra outra, também não. Mas todo dia eu procuro”. Pô, tem coisa melhor? Neguinho sai procurando amor a torto e a direito. Então, esse sentimento é um sentimento jovem que permanece no ser humano eternamente.
Clara Linhart
Tem uma coisa que o Daniel e a Susanna sempre falam: tudo o que vamos fazer, como atores, está dentro de nós. Se você vai interpretar um ladrão, tem um pouquinho de ladrão dentro de você e basta exacerbar um pouquinho esse lado. Acho que, na verdade, muitos temas abordados nas nossas peças não têm muito a ver conosco, porque nós somos muito jovens. Tem coisas que realmente são difíceis pra gente entrar em contato, mas a Evelyn nos ajuda muito nesses casos. Os temas rodriguianos foram difíceis. Eu lembro de um exercício que ela fez para trabalhar um lado sádico e masoquista. A princípio, você pensa: “Ah, que nada, não tenho nada disso.” E era um exercício tão simples – ficar brincando com o outro com uma caneta. Mas, durante o exercício, você acaba percebendo que seria capaz de ficar horas torturando seu colega com a caneta. E isso demonstra que todos os sentimentos estão dentro da gente.
Dudu Sandroni
Só aproveitando esse barco, como é essa questão do jovem pra vocês?
Daniel Herz
No fundo, era isso que você queria perguntar.
Dudu Sandroni
Isso, falei! Porque existe essa questão: no teatro infantil, a gente faz peças para crianças. Vocês são um grupo de teatro para jovens. Isso é ou não uma preocupação?
Daniel Herz
Na verdade, esse lugar no mercado, o do teatro jovem, aparece com Confissões de Adolescente, espetáculo de Maria Mariana dirigido por Domingos Oliveira. Mas, antes disso, teatro jovem se fazia com Carlos Wilson, com o Asdrúbal Trouxe o Trombone. Portanto, teatro jovem existe há muito tempo. Agora, essa coisa institucionalizada, batizada do jeito que está hoje, foi incorporada pela mídia e pela própria Coca-Cola em função de um momento. O que é ótimo! Mas tem que ficar bem claro que isso já existia antes. O que acontece, Dudu, é o seguinte: tenho uma relação muito ambígua com essa questão. Até a Lucia Cerrone é testemunha de que nós vivemos um problema para classificar Decote. Mas essa ambiguidade é da mídia, não minha. Então, vou empurrando com a barriga. Por exemplo, acho que o espaço que o Jornal do Brasil dá para o teatro jovem é obsceno. É perverso. Bota a palavra “palco” na Zine, da Revista Programa, para dar o serviço de teatro dedicado aos jovens. Palco é o quê? Estão construindo um palco? O que é palco? É uma coisa muito pejorativa. É uma coisa menor. E a gente tem que sobreviver a isso, mas também tem que se defender disso. Acho que essa luta, com o tempo, está se solidificando, se fortalecendo. Bacana isso! Acho que o meio artístico está conseguindo fortalecer esse espaço. Maravilhoso. Todos nós fazemos parte dessa luta. Quando Decote estava em cartaz, pedi à repórter do JB: “Pelo amor de Deus, bota a gente no tijolinho de teatro adulto, por que as pessoas não ficam nem sabendo que a peça está em cartaz. Ninguém olha a Zine e, se olha, nem vê a palavra palco.”
Susanna Kruger
Oba! Vamos polemizar! Essa questão da Zine é importante. A Zine é uma vergonha nacional! É verdade! É como se todo adolescente fosse um débil mental, que só gosta de surfe ou “daquela gata”. Na época de Romeu e Isolda, o resumo do espetáculo, na Zine, era: “Aquela gata, que encontra aquele gato gostoso”. Porra! O meu espetáculo não era nada disso! Falei com a repórter: “Como é que você escreve um negócio desses, você não viu o espetáculo? Tem jovem que lê Sartre, Fernando Pessoa e tem jovem que fica no rock and roll o dia inteiro! Então, que negócio é esse de ‘é tu do assim ou é tudo assado’?” Com Romeu e Isolda, ficamos seis meses em cartaz num teatro considerado uma caveira de burro por todo mundo. Mas não existe teatro caveira de burro. Se fizer um trabalho decente, o público aparece. Não tem dúvida. O Teatro da Barra estava abandonado. A gente ficou dois meses lá, pagando pra fazer a peça – pagando aquele mínimo caro. Depois do terceiro mês, passou a ter fila na porta. Teve um dia que apareceu uma carrocinha de pipoca. Imagina! Um pipoqueiro na fila é sinal de que a coisa melhorou! E aí a coisa foi dando certo, foi dando certo. Nós fazíamos debates e várias pessoas diziam: “Nossa! Eu recebi o negocinho lá da Uniarte ou da Star Palco, fui olhar no jornal e não achei a peça”. Óbvio que não vai achar. Ninguém vai ver a palavra “palco” na seção Zine. E quando a repórter foi ver o espetáculo, pedi: “Olha, bota nossa peça em ‘teatro’ para as pessoas abrirem a revista e verem”. Teatro é teatro, gente!
Daniel Herz
Estamos ajudando a fortalecer a ideia do teatro jovem. A Susanna deu uma declaração ao jornal O Globo, depois do Prêmio Coca-Cola, que era assim: “Teatro jovem não é mais só a gatinha, a primeira menstruação”. Nada contra, é o maior barato, mas agora não é só isso. Legal uma peça com temática rodriguiana. Acho que isso projeta o teatro jovem com uma consistência legal.
Da Plateia, Djalma Amaral
É confortável ser enquadrado como grupo de teatro jovem?
Susanna Kruger
Eu te confesso que não me sinto confortável nessa posição de teatro jovem, porque o teatro jovem ainda não tem uma posição definida, não tem o espaço que merece. Hoje em dia, graças a Deus, você tem nitidamente um espaço pra teatro infantil. Mas não posso me sentir confortável numa categoria que ainda é vista como pejorativa, não tem espaço, não é respeitada. Tem uma atriz que falou assim: “Pois é, mas vocês, com essa coisa de teatro jovem, né?” Qual é o problema? Amanhã eu vou fazer uma peça infantil e, por isso, depois de amanhã não posso fazer um adulto? Não posso fazer um jovem? Por que tem que ser tachado? Se for assim, daqui a pouco vou começar a fazer teatro pra preto, teatro pra judeu, teatro pra índio. Gente é gente, cara! E o objetivo é fazer teatro.
Da Plateia, Telmo
Queria perguntar se vocês pensam em fazer coisas mais desafiadoras como um clássico, por exemplo?
Daniel Herz
Procuro estar sempre pesquisando e vendo o que mexe com a gente. O que a gente tem vontade de falar. Não existe uma fórmula fechada. Talvez, a próxima peça seja a adaptação de um clássico. Pode ser que seja um texto novo, meu e do Bruno, pode ser que seja um infantil. Não resolvemos ainda. Mas, na verdade, o que eu acho que existe é a coisa da chama. O que é que está mexendo com a gente agora? O que inquieta, o que dá vontade de emburacar e trabalhar? Não importa se vai ser um Shakespeare, um texto nosso ou uma criação coletiva.
Maria Helena Kühner
Estou convicta de que só vão permanecer como realmente significativos no teatro brasileiro os grupos que mantiverem um trabalho contínuo, um processo evolutivo. É o contrário do caminho sugerido pela nossa sociedade capitalista, caracterizado por um diretor que contrata atores, monta uma peça qualquer com muito riso e muito sexo, consegue algum dinheiro, fica feliz da vida e ponto final. Estou acompanhando o que vocês dizem e, com muito carinho, vejo que vocês têm uma preocupação com o desenvolvimento, com o pensar junto. E fiquei com uma pergunta na cabeça: quando vocês discutem a temática das peças, existe a preocupação de ambientar essa temática ao momento que estamos vivendo, aos valores que ditam as coordenadas do comportamento jovem, à linguagem que atinge esse público? Como isso é discutido entre vocês? Essa pergunta me veio à cabeça quando vocês estavam comentando sobre o conteúdo pasteurizado daquilo que hoje é apresentado ao adolescente. Quer dizer, a maneira como o jovem é visto e apresentado tem características que não correspondem ao jovem real e que são deformadas pela mídia…
Daniel Herz
O problema é a padronização, a pasteurização do jovem. Só se falar de certos assuntos. Acho que o capitalismo tem mesmo muito a ver com isso, já que o jovem é o melhor mercado consumidor que existe. Então, está tudo voltado para que eles virem aquela coisinha de tenisinho importado. Dependendo do que a gente vai trabalhar, existe uma discussão ideológica, politizada. No Cartão de Embarque, que tratava da violência que existe dentro da gente, de ficar ou não no Brasil, de lutar pelo país ou sair fora, a gente falava muito sobre política, economia, sobre tudo o que estava acontecendo. Já em Romeu e Isolda havia uma questão mais romântica. Mas, pra te responder objetivamente, sempre tem uma discussão para poder mergulhar, mas o mergulho muda a cada processo.
Maria Helena
Essa discussão existe sempre?
Susanna Kruger
Sempre. Voltando a uma coisa que o Dudu Sandroni perguntou – se a gente faz teatro pensando no público jovem – eu não sei, Dudu. Tenho a sensação de que o teatro, na realidade, é para qualquer idade. Acho que o teatro infantil tem uma particularidade, porque o tempo da criança é diferente. E quando você vê um espetáculo infantil bom, pode estar com 80 anos de idade e ele vai tocar fundo, como toca uma criança. Não acho que direcionamos os espetáculos exclusivamente para a lente do jovem. O que tentamos fazer é dar esse mergulho na temática que estamos trabalhando e, aí sim, dependendo da plateia, direcionar esse mergulho para provocar a discussão.
Maria Helena
Acho que você sacou o que eu queria dizer sobre como a mídia trata o jovem. É uma forma intencional de norma lizar o jovem, enquadrá-lo nos moldes preestabelecidos da sociedade ou então desqualificar e botar à margem. O teatro tem outro compromisso, não importa a classificação que tenha – concordo plenamente com a Susanna Kruger, seja ele infantil, jovem, adolescente, e esse compromisso é o de fazer ver. O teatro cria no espectador um modo diferente de ver as coisas e proporciona a possibilidade de transgredir essa normalização ou essa marginalização.
Lídia Kosovski
O grupo tem preocupações que representam uma saudável utopia, sobretudo neste fim de século, quando as questões individuais acabam determinando até práticas supostamente mais generosas, práticas em grupo, práticas artísticas. Existe uma clareza ética que não tem nada a ver com pieguice, com ser bom ou mau. Não consigo saber exatamente por que isso acontece, mas existe essa preocupação com a saúde da relação dentro do grupo, que acaba resultando num trabalho inteiro. É uma ideia de utopia mesmo. Não se esbarra mais com essa palavra nas esquinas. É uma palavra velha, quase um palavrão, sinônimo de ingenuidade. E, no entanto, com toda essa fragmentação que existe no mundo hoje, ainda há espaço para acreditarmos em alguma coisa. E eles estão juntos há cinco anos. É claro que são novos. Às vezes fico pensando: “Puxa, as pessoas vão definindo as suas vidas, criando família, como é que isso vai acabar?” Mas a impressão que dá é que tem uma semente que se inaugura a cada dia. Qual é a mágica, eu não consigo detectar. Mas as coisas, nessa companhia, vêm de dentro, não vêm a partir de uma necessidade externa. E isso é extraordinário.
Lucia Cerrone
O grande trunfo da companhia, além dessa vitalidade, é a surpresa. A surpresa que seus espetáculos causam no espectador, que já está cansado do que vê habitualmente. Eu, por exemplo, fico muito feliz quando vou assistir a uma coisa que me surpreende. Acho que a plateia fica fascinada com esse tipo de trabalho.
Da Platéia, Djalma Amaral
Eu queria dizer que sou apaixonado por vocês, acho um barato! É acasalamento, é convivência.
Susanna Kruger
Assim, parece até que essa companhia é um mar de rosas. Nada disso. Não tem ninguém perfeito, o pau come! Uma das nossas maiores brigas é quanto à pontualidade no trabalho. É o seguinte: o ensaio está marcado para as 8h30, vai começar às 8h30. Quer bater papo, chega às 8h. Quer se aquecer, chega às 8h. Essa disciplina faz a maior diferença na qualidade do trabalho.
Da Plateia, Adriana Maia
Vi o primeiro espetáculo, A Entrevista, e tinha um protagonista. Em Romeu e Isolda não havia protagonista. Isso foi proposital? Uma companhia não deve ter protagonista?
Daniel Herz
Nem passou pela nossa cabeça pegar um texto que inviabilizasse a proposta do grupo, por que a gente acha que, nesse primeiro momento, é preciso fortalecer muito a questão dos valores que queremos trabalhar. Talvez, uma pessoa mais velha, mais experiente, chegando de fora para ser o protagonista, complicasse muito as coisas. É óbvio que todas as peças são motivadas também por essa questão. Nosso objetivo é fazer os espetáculos com o grupo. Se precisar de protagonista, teremos um. Mas será alguém do grupo.
Susanna Kruger
O que não vai existir nunca é a estrela da companhia. Nem morto que um dos atores será o principal, aquele que sempre faz todos os papéis principais. Não vai haver porque não é saudável. Lembro que isso era uma preocupação no Cartão de Embarque. O Luiz André Alvim tinha feito o protagonista de A Entrevista. No Cartão de Embarque, a gente falou: “Não pode ser o André, não é legal pra ele. Tem um outro ator na companhia que pode fazer o papel tão bem quanto ele”. O que é melhor a longo prazo? Criar um monstrinho? Não dá certo. Já participei de um grupo e tinha um papo pra boi dormir que era assim: “Não, você fica. Um dia você vai ter um papel.” Mentira! Passou um ano, passaram-se dois, três anos e eu sempre entrava muda e saía calada! Os melhores papéis ficavam com as mesmas pessoas. Isso é muito chato! Nesse sentido, também vale o socialismo. Todo mundo tem as mesmas oportunidades.
Luiz André Alvim
Até quando existe protagonista – posso falar porque vivi bem essa situação, não há tratamento especial pra ninguém. A única diferença é que se ensaia mais. Mas no tijolinho do jornal aparece “companhia” e não essa coisa de “fulano e outros”. Até a cota de pagamento é igual, para não brotar essa sementezinha ruim, que a gente vê por aí, do “eu sou e você não é”. Na verdade, na companhia, todo mundo é.
Da Plateia, Adriana Maia
Vocês dois, Daniel e Susanna, já foram dirigidos por outros diretores. Vocês acham que existe uma diferença entre o trabalho de um diretor que é ator e o de um diretor que nunca foi ator?
Daniel Herz
Não sei por que eu sou ator também e não posso falar da sensação do diretor que não é ator. Acho que tem uma diferença, mas não é impossível que um diretor que nunca tenha sido ator faça um grande espetáculo.
Susanna Kruger
Acho que existe uma diferença, não importa se o diretor foi ou não ator, entre diretor que gosta de ator e diretor que não gosta de ator. E diretor que não gosta de ator é um inferno na vida do ator. Cara, eu sofri o pão que o diabo amassou na mão de alguns diretores. Porque o diretor tem um poder absoluto e manipula você do jeito que quer. Desde o assédio sexual até a opressão do poder mesmo. Diretor que gosta de ator é uma maravilha. Tem cuidado. Chega um momento que é como se o ator estivesse sem pele. Fica absolutamente descarnado, em carne viva. O cara tem que saber ter cuidado. Diretor não pode competir com ator. Acho que, em teatro, não tem uma função mais importante do que outra. Todas as funções são igualmente importantes. Mas é preciso lembrar sempre que quem está em cena é o ator! A carne viva é dele, não tem jeito.
Da Plateia, Célia Bispo
Vocês se encontram só para montar os espetáculos ou vocês têm um trabalho de oficina permanente?
Daniel Herz
Não, nesse momento, não. Nesse momento, o que existe são os encontros para a realização de um projeto específico.
Da Plateia, Célia Bispo
Vocês começaram com 21 atores, não é? Nesses cinco anos, mantiveram os 21, perderam alguém, incorporaram outros? Quantos formam a companhia hoje?
Daniel Herz
Dos 21 de A Entrevista, pelo menos 17 estão aí. Quem não atua em determinado espetáculo, fica responsável por outras funções. A Viviane Florêncio, por exemplo, fez Romeu e Isolda, mas, no Decote, trabalhou na operação do som. Isso também é uma postura do grupo.
Da Plateia, Célia Bispo
Como é o processo de escolha de personagem? Você e Susanna Kruger resolvem ou todos os atores passam por todos os personagens e a coisa vai nascendo naturalmente?
Daniel Herz
Cada processo tem suas particularidades. Até hoje, a gente escolheu quem ia fazer a peça. Quem estava no processo, sabia que ia entrar em cena. Depois disso, cada um experimentava todos os personagens, durante um curto período de tempo e, finalmente, a gente escolhia quem ia fazer o quê. No próximo espetáculo, isso deve mudar. Talvez a gente comece a trabalhar com todo mundo, mas a gente ainda não sabe.
Susanna Kruger
O momento da escolha do elenco é o mais difícil para a direção. Essa coisa de dirigir em dupla é muito legal porque, de saída, a gente tem valores éticos, artísticos e pessoais muito parecidos. Só que são dois olhares diferentes sobre a vida. Quando eles se complementam, é super legal. Tem momentos em que, obviamente, é um pega-pra-capar do cão. E o momento mais difícil é o da escolha do elenco.
Da Plateia, Eleusa Mancini
Eu queria saber como é a relação no ato de dirigir. Todo mundo dá pitaco. Como é dirigir com o grupo todo opinando?
Daniel Herz
Olha, não se pode confundir socialismo com falta de divisão de tarefas. As tarefas são muito bem divididas. Eu e Susanna dirigimos o espetáculo, o que não impede que qualquer decisão de produção seja coletiva, seja votada. Mas uma marca nunca é votada. Tem momento em que, pela própria dinâmica, não há espaço para opiniões; em outros há e isso eu acho bem razoável. Rola de uma forma bacana. A direção dos nossos espetáculos está cheia de ideias e opiniões do elenco. Muitas! Mas o poder de decisão é nosso. Existe uma coisa da confiança. No momento em que resolvo trabalhar com fulano, é porque confio em fulano. O que não impede de haver erros. Mas existe um estado básico de confiança entre nós, que é muito saudável.
Da Plateia, Aderbal Freire-Filho
Eu queria falar de duas questões que me parecem muito importantes. Coisas que provocam. Uma questão que até confirma a conveniência de vocês serem os primeiros convidados desse projeto idealizado pelo Dudu Sandroni: a discussão sobre o conceito de juventude e de teatro jovem. O Dudu propôs e nós, o Gillray Coutinho e eu, nos entusiasmamos com a ideia de que o Teatro Ziembinski tivesse, mais do que esse projeto dos seminários, um teatro aberto à infância e à juventude. Portanto, vocês abrem o projeto e uma das coisas mais fortes que rolam nesse debate é a discussão sobre teatro jovem. Acho isso perfeito até porque, de saída, não é sem conflito que essa questão é encarada. De fato, ouvi a Susanna dizendo: “Não, não existe diferença, o teatro é um só.” Mas essa juventude, que é própria de vocês, certamente resulta num produto que é mesmo jovem. E aí eu posso começar pela história da seção Zine, da revista Programa do JB. Vocês sofrem com a Zine porque é a parte da mídia que toca vocês. Eu sofro com qualquer mídia. A parte da mídia que toca vocês desagrada profundamente porque é ruim, trabalha com valores inventados ou, pior, como disse a Maria Helena, propositadamente construídos para enquadrar a juventude. Mas é tudo assim. Dizem que vivemos a idade da mídia, e isso é verdadeiro. E em todas as áreas, em todos os setores, a informação é tratada do mesmo modo, deturpada, falseada. Me lembro que há poucos dias rolou na imprensa uma questão sobre a crise do teatro. As pessoas do teatro se juntaram e levantaram essa questão. A questão existe, mas talvez tenha sido precipitadamente levantada, Meu nome estava lá, mas só fui a uma reunião e me manifestei contra abrir o papo para a imprensa antes de ele amadurecer entre nós. Mas perdi. Imediatamente, a mídia tomou conta da questão e, se ela ainda era frágil, foi transformada numa bobagem. Aí eu lia coisas assim: “Isso é falta do que fazer. Esses artistas que começaram essa história têm mais é que trabalhar. Sempre há peças de sucesso”. Tinha um colunista, não de teatro, que citava três peças de sucesso: “Tal, tal e tal”. E, das três, duas eram enormes fracassos. Ou seja, a tese dele era provada com exemplos falsos. Mas ninguém se importa, é assim mesmo. Então, cada um tem o Zine que lhe incomoda e que não merece. É uma questão terrível essa da mídia. Falo dela para esclarecer que, se vocês vierem a ocupar outro espaço, também terão enormes desgostos, serão maltratados… Maltratado não é agredido, é tratado sem a atenção, o cuidado merecido. É da própria natureza da mídia. Não que os jornalistas sejam maus, é essa relação de mundo e comunicação… Outra questão que me interessa muito é a da sobrevivência. Todas estão interligadas, naturalmente. Essa é uma questão grave e séria, mas acredito que a salvação está no grupo. Como a Maria Helena, só confio num trabalho contínuo. E a continuidade só depende do grupo. Não é fazendo peças avulsas que se vai resolver a questão. Você falou, Daniel Herz, que a solução era tentar se fortalecer internamente. Acho que é por aí, mas não é só isso. A luta também tem de existir externamente. Como você contou, no encontro com aquele francês, soubemos que, na França, existem 600 companhias, 5 mil grupos de teatro, sessenta e tantos centros dramáticos, cinco teatros nacionais, quarenta e tantas salas, tudo subvencionado pelo governo, e ele terminou o papo dizendo: “Na França, o povo e o Estado sabem que o teatro é um serviço público”. Numa pesquisa recente, a pergunta era: “Numa situação de crise, você acha que a ajuda ao teatro deve aumentar, permanecer a mesma ou diminuir?” Saibam que 14% dos franceses disseram que devia aumentar, cerca de 80% disseram que deveria permanecer igual e só um mínimo de gente era favorável a que a ajuda do Estado ao teatro diminuísse em situação de crise. Mas o que me surpreendeu é que 14% dos franceses acham que, se a situação é de crise econômica, a ajuda do Estado ao teatro deve aumentar. No Brasil, a gente diz: “Não podemos pensar em ajuda econômica porque somos um país que precisa de escolas, hospitais.” E vivemos numa crise permanente. Nos Estados Unidos, existem companhias do tamanho da de vocês, e até maiores, nas quais todos ganham salários e vivem deles. A bilheteria responde por 30% da despesa da companhia. O resto do dinheiro vem das leis de incentivo, de renúncia fiscal. No dia em que fui ver o Arena Stage, em Washington, uma companhia importantíssima – elenco com 30 atores, um prédio de cinco andares, setor de dramaturgia, setor de não sei o quê -, o grupo estava rifando um barco. Aqui, quando a gente rifa qualquer coisa, acham que a gente é amador, pobre. Lá, é uma mentalidade diferente e não há financiamento estatal. O que não é possível é que aqui, sem o Estado e sem o empresariado, a gente consiga viver de teatro e manter um grupo de duas pessoas, quanto mais de 21. O que eu quero dizer é que nosso problema financeiro, em relação ao teatro, é real e a solução não depende só de nós. Falo, creio, com a autoridade de quem não para de produzir, de quem produz febrilmente. Queria aproveitar esse encontro jovem para dizer que a gente tem que pensar politicamente. Precisamos de uma estratégia política! Temos que tentar situar a mídia claramente, conviver bem com ela, esclarecer essas coisas, para que o resultado da relação artista/imprensa – o material publicado – seja menos deturpado. Por outro lado, ter consciência de que temos uma grande luta pela frente, que passa por uma grande transformação social.
Daniel Herz
Aderbal, não sei se é ingenuidade ou romantismo, mas, apesar de eu nunca ter votado no César Maia, no PFL, no Conde, acho que o trabalho cultural que vem se desenvolvendo na Prefeitura do Rio de Janeiro, nos últimos anos, é um alento. Acho também que a classe artística, às vezes, não valoriza o pouco que tem. E o problema de não valorizar o pouco é que esse pouco pode ser destruído, deixar de existir. Pode ser ingenuidade minha, mas, realmente, acho que pequenas coisas, pequenas transformações, estão acontecendo: essas leis de incentivo fiscal ainda um pouco confusas – mas que não existiam antes -, as prefeituras dos centros urbanos dando algum incentivo. Vejo alguma coisa acontecendo. Acredito que é possível conseguir sobreviver de teatro. Tenho um olhar otimista. Acho também que essas coisas que estamos falando aqui, graças a esse projeto que vocês propuseram, o de conversar, são super legais, pois, todos nós vamos sair daqui pensando nisso. E vamos reproduzir essas ideias lá fora. É um movimento que parece que não tem ressonância nos meios políticos, mas tem. Sempre tem.
Maria Helena Kuhner
Esse encontro é também um ato político, se ele for aproveitado como tal. Quando a Lídia falou em utopia como uma palavra ultrapassada, lembrei-me de algo que ouvi do Leonardo Boff: ”Utopia é o projeto ou o sonho que nos leva adiante”.
Susanna Kruger
Quando comecei a fazer aula no Tablado, em 1977, ouvia o tempo inteiro as pessoas falando sobre a carreira, a necessidade de profissionalização. Lembro que, naquela época, as pessoas corriam muito para a coisa da carreira solo, mais do que hoje em dia. Acho que hoje existe um movimento de retorno ao trabalho em grupo, o que é muito legal. Acho que cada grupo tem o seu tempero e a pessoa tem que procurar onde está o tempero parecido com o seu para ser feliz fazendo teatro. Acho que o fato de estarmos cada vez mais em bloco, agrupados, faz com que estejamos mais próximos da possibilidade de lutar juntos por alguma coisa. Eu também sou otimista.