Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Ricardo Schöpke – Rio de Janeiro – 10.04.201
Um mundo feito de fantasias de criança
Inspirada na obra de Jacques Prévert, peça de Miriam Virna cria o universo fantástico de um garoto que se deixa levar pela imaginação
O ano de 201 certamente será muito especial para o teatro para a infância e juventude. Uma importante notícia foi divulgada pelo Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB); depois de anos de ausência, o espaço voltará a programar uma agenda regular de teatro para as crianças. Responsável por patrocinar encenações históricas em seus 20 anos de existência, como A Mulher que Matou os Peixes (1994), de Clarice Lispector, Curupira (1995), de Roger Mello, Ludi na TV (1996), de Luciana Sandroni, e Orquestra dos Sonhos (1997), o CCBB selecionou o ótimo projeto brasilense Fragmentos de Sonhos do Menino da Lua para abrir a temporada.
Livremente inspirado em L’Opera de La Lune, do francês Jacques Prévert (1900-1977) – poeta e roteirista francês que participou do movimento surrealista – o espetáculo foi traduzido por Adalberto Muller e adaptado pela premiada autora e diretora Miriam Virna, com bastante propriedade. Miriam conseguiu captar com bastante sensibilidade e inteligência o rico universo da obra original e dos conceitos desenvolvidos por Prévert. Fazendo-se valer de uma atmosfera surrealista, extremamente poética e onírica, construiu a narrativa escrita com riqueza de detalhes. Trazendo à tona, através de pequenas e sutis pinceladas, situações bastante complexas para os seres humanos.
Sonhos na madrugada
Fragmentos de Sonhos do Menino da Lua conta a história de Miguel Moreno, um garoto que nunca conheceu seus pais. Por isso, mora com pessoas que não são nem boas nem más, apenas adultas. Ele pouco sorri, afinal, vive às voltas com cálculos mentais. À noite, porém, é só a lua dar as caras para a melancolia do garoto sumir. É a noite que surge o corpo do baile dos carneirinhos, os relâmpagos, as estrelas, o marque nunca é perigoso. Estes são alguns dos elementos que povoam os sonhos e as fantasias de Miguel madrugada adentro. Trilhando o mesmo caminho surrealista, a concepção cênica do espetáculo é bastante objetiva em dividir claramente os dois mundos. O mundo reto, lógico e cartesiano dos adultos e o mundo imaginário, fantástico e “ilógico” das crianças.
Faltou apenas definir melhor para o espectador qual é posição que a encenação tem em relação aos adultos. Por alguns momentos eles parecem infantis demais, entrando com muita facilidade nos jogos propostos pela professora, e por vezes exageram um pouco na repetição de algumas gags, ainda que isso não tire o brilho e a qualidade do ótimo espetáculo apresentado.
A cenografia de William Ferreira separa os espaços geográficos que habitam as personagens. Miguel vive literalmente sempre em suspensão – numa cama de 1,80m – no seu mundo de fantasias, enquanto os adultos vivem com os pés no chão e transitando entre um mobiliário em linhas retas. Os figurinos, assinados por Alessandro Brandão, e a caracterização, criada por Marcus Barozzi, se valem de distorções, volumes, e muita cor para realçar o universo fantástico. A trilha sonora composta por Mateus Ferrari apresenta músicas mecânicas interagindo com agradáveis sonoridades vocais. A iluminação de Dalton Camargo serve muito bem ao espetáculo, mesclando claros e escuros. Todo o elenco tem uma ótima atuação. Desde a talentosa e afinada Miriam Virna no papel da professora Anais, passado pelos atores William Ferreira, Alessandro Brandão e Elisa Tandeta no papel dos expressivos adultos. A revelação é Kael Studart, num trabalho de impressionante delicadeza e sutileza no papel de Miguel Moreno.