Crítica publicada no site Folias Teatrais
Por Tania Brandão – Rio de Janeiro – 13.02.2022
Para salvar a alma da cidade: Pinóquio e o Prefeito!
Você já chorou de dor? Não, a pergunta não é a respeito de qualquer dor não. É sobre a pouco falada dor de crescimento, aquela agonia fina que corta a alma, mas passa, e, quando passa, promove um pequeno milagre, pois você se tornou uma pessoa melhor. Conhece?
Ah, não se iluda descartando-a como problema infantil: quem tem alma e enfrenta o mundo, volta e meia sucumbe sob as delicadas garras cortantes do mal. Duvida? Ora, olhe ao seu redor, aqui no Rio… Sim, ela poderia ser apelidada como dor de Pinóquio. Nas famosas aventuras do boneco de madeira, para que ele se torne carne, gente de verdade, ele precisa enfrentar o desafio de encarar precisamente esta dor.
A felicidade do texto do italiano Carlo Collodi (1826-1890), publicado em 1883, reside na materialização precisa do tema. O original oferece um retrato impressionante do processo humano de compreensão sentimental do ato de viver. Pois esta fábula urdida com tanta inteligência e sensibilidade foi retomada em Pinóquio, pela Cia PeQuod, um coletivo de primeira grandeza, um dos grandes monumentos teatrais cariocas.
Sim, a temporada termina amanhã, domingo, pois a montagem vai viajar para apresentações em outras casas do CCBB, em Belo Horizonte, Brasília e São Paulo. No entanto, não chore, se você perdeu a chance de ver ou se, tendo visto esta obra prima do grupo, está ardendo por dentro de necessidade existencial de rever… claro, o espetáculo voltará ao cartaz no Rio. Aguarde.
Mais, até: certamente o prefeito do Rio, Eduardo Paes, atento à necessidade urgente de consolidar a grandeza cultural carioca, vai conceber um tapete vermelho para o grande retorno, uma forma para garantir o mais amplo acesso possível da população a esta incrível joia da cena. Certamente haverá uma bela temporada popular no Teatro Carlos Gomes e com certeza uma ciranda de luxo premiará espaços como o Imperator e a Cidade das Artes. A cidade inteira precisa muito deste espetáculo em cartaz por toda a parte.
E por quê? Como, afinal, explicar o caráter fenomenal deste trabalho? Quais são os acertos responsáveis pela notável densidade da cena? O que faz com que a peça surja como marco histórico e programa obrigatório no nosso tempo?
Bem, a lista é longa, a sucessão de acertos e achados é quase interminável. De saída, há a harmonia profunda da parceria entre Miguel Vellinho e Tim Rescala. O tratamento do texto original, desde a escolha da tradução até a concepção do libreto e da trilha musical, somou percepções agudas da sensibilidade contemporânea, mas, curiosamente, sob um colorido brasileiro rascante.
Neste sentido, os autores conseguiram sintonizar duas memórias profundas da alma brasileira: o circo e o teatro musical. Conquistaram o feito graças a duas escolhas. Primeiro, ao criar um Circo Collodi, concebido para contar a história de Pinóquio, muito de acordo com a vontade dos sujeitos, hoje, de lidar com a narração, com o protagonismo.
Em segundo lugar, para tornar a narração sinuosa em múltiplos aspectos – sedução, jogo poético, humor… – ela foi concebida como fluxo musical contínuo, entregue às belíssimas vozes de Mona Vilardo (soprano) e Santiago Villaba (barítono). A partir destes narradores-cantores, acontece a sucessão das cenas dramáticas, mas sempre pontilhada pela ideia do circo.
Chegou-se, assim, a uma renovação do conceito de opereta – pequena obra musical estruturada ao redor de uma ação dramática. Pois, aqui, a música de Tim Rescala, em diálogo profundo com a cena desenhada por Miguel Vellinho, concebe com extrema riqueza de recursos poéticos a espinha dorsal do espetáculo. A música surpreende por sua extrema versatilidade: é canto e é ação; é dança e é acrobacia; é caricatura e é humor; é estripulia circense e é palhaçada; é suspense e é mágica… enfim, é poesia em estado puro para teatro e circo a um só tempo.
Na direção, Vellinho arquitetou cenas de extremo encantamento e requintada carpintaria, explorou a fundo o jogo entre o épico, o lírico e o dramático. O elenco apresenta o circo, se esmera no circo que conta a história do menino boneco e mergulha na representação da história de Pinóquio. Para chegar a este resultado, Vellinho não economizou arte, reuniu procedimentos teatrais, musicais, circenses e de animação. Há desde o clown até a palhaçada, o teatro e a acrobacia. O diretor obteve uma concepção sofisticada da cena; de certa forma se trata da maturidade da Cia PeQuod, agora com vinte e um anos.
Isto quer dizer algo muito importante – esta sua concepção se materializa no palco com alto grau de eficiência graças ao perfeito entrosamento da equipe de criação artística. O cenário de Doris Rollemberg, de aparência singela, porém, na realidade, um requintado exemplo de teatralidade, sustenta a estruturação da cena com uma inspirada geometria plástica, a do picadeiro que se faz teatro, sob uma delicada aura de sonho.
São muitas as trocas de cena, basicamente realizadas graças às mudanças de figurinos e ao manejo de adereços, e, dentro da excelente caixa cênica criada por Rollemberg, o acelerado fluxo da ação se dá sob um andamento sem fraturas. Outro ponto impressionante desponta na paleta de cores – ao lado dos tons quentes e alegres, circenses e infantis, nuances esmaecidas evocam lembranças do passado, tanto do circo que se foi, como de um tempo inocente que passou.
Os figurinos de Kika de Medina, imersos no mesmo conceito de cores, obedecem a um tom simbólico discreto, mas contundente, eficiente para chamar a imaginação para o universo da fábula. Assim como a música, a concepção geral e a direção, os figurinos são pontilhados por alguns tons elegantes de humor e de ironia, de exageros circenses, detalhes importantes para indicar que tudo, ali, se reduz a um jogo para sonhar.
Nesta batida, Renato Machado, grande mestre do claro-escuro, criou uma luz propicia à alternância básica entre picadeiro e sonho, realidade e fábula, e atenta aos desenhos e climas da ação. A luz valoriza muito o visagismo de Mona Magalhães, preocupado com as necessidades da fábulação e o extravagante do circo.
Enfim, todo este edifício de requintada criação se torna um monumento teatral graças à delicadeza da arte dos atores reunidos na cena, alguns dos quais veteranos do grupo, outros recém incorporados com total felicidade. De saída, no conjunto, chama a atenção a afiada – e afinada – presença dos corpos. Intensidade corporal, maleabilidade, expressividade, potencia acrobática e coreográfica revestem o corpo único do elenco, fruto da excepcional qualidade da preparação corporal assinada por Bárbara Abi Rihan.
É fundamental falar, aqui, do coletivo, pois o conjunto do elenco se desdobra em múltiplas funções cênicas: afinal, a PeQuod funciona como um exemplo perfeito de teatro de grupo. Neste painel, contudo, alguns atores respondem por papéis fixos – e permanecem em cena quase todo o tempo. Outros seguram o fluxo coletivo, mas defendem também papéis de extremo impacto cênico.
Consequentemente, ao lado da exaltação da qualidade coletiva, cabe perceber o colorido das assinaturas pessoais. Liliane Xavier, responsável pelo boneco-moleque, apresenta em cena um tom saboroso de rebeldia inocente, cabeça avoada e extrema comunicação sentimental com o ato de viver. A emoção do público logo recai sob o seu controle.
No Geppetto, Marcio Nascimento traz para o palco um ser comovedor, entre a carência e o patético, uma pessoa rara disposta a existir como doação amorosa e vontade de criar a vida. Assim, o seu Geppetto enfrenta ele próprio a dor do crescimento, dilata para os adultos o drama que, para os desavisados, poderia ser apenas infantil.
O Grilo Falante de Marise Nogueira se destaca de imediato por ser, na figura exterior, apenas uma sugestão de grilo; ao receber de presente uma canção inspirada e divertida, a atriz uniu o canto a uma linha de ação física contundente, o bastante para impor o inseto inteligente como uma criação de extrema felicidade. A sua imagem se afirma como a razão impotente, mas divertida e bem humorada.
Dentre os vilões, a projeção maior cabe ao corrosivo casal dançante e cantante, a raposa e o gato, desenhados com ácido primor por Maria Adélia e João Lucas Romero. Maria Adélia impressiona ao insinuar a perversidade como um fluxo de charme, sedução e encanto, expressão solidária e bondosa. Já a linha de João Lucas Romero sublinha a inteligência camarada do mau, a liderança bandida dissimulada.
Importa insistir ainda mais na beleza do desenho musical da peça, decididamente uma obra marcada por uma potente força melódica, um marco para a história do musical brasileiro. E destaque-se: a solução técnica para a música em cena é surpreendente – são dois músicos no palco, David Ganc e Tibor Fittel, encarregados de múltiplos instrumentos.
Além da dupla, na outra lateral do palco, existe um interessante arsenal de instrumentos de percussão, manipulados pelos próprios atores. Este dado sublinha também o desenho muito contemporâneo da proposta: ao lado da narração e do drama, do circo, da performance e do teatro, a cena aparece marcada pelo distanciamento e pela instrumentalidade. E se projeta como uma forma direta de construção da arte.
Assim, Pinóquio, ao contar a fábula de um pedaço de madeira falante que vira um boneco que sonha ser um menino e que consegue virar gente, conta uma história de arte. Uma arte da Cia PeQuod. O alcance, no fim, soa contundente.
E ele pode ser localizado numa escolha específica. Além de sustentar a narração da peça, a atriz Mona Vilardo também defende o papel da Fada Azul, uma entidade cantante, esvoaçante ondulação azul. Ela é o truque mágico que, no final, permite resolver a trama, um pouco como se o grande remédio para a dor do crescimento – aliás, afinal, simplesmente a pura dor de viver – fosse a arte.
A lição é preciosa: a arte cura. Seguindo a lição, o prefeito do Rio, sempre pronto a declarar o seu amor pela cidade e pela cultura carioca, devia fazer de tudo para doar este remédio para a alma da cidade. A alma do Rio anda em frangalhos, Pinóquio socorreria a todos. Como se fosse uma vacina espiritual, eficiente para ajudar a cidadania a encarar essas tantas dores absurdas da vida aqui.
Pinóquio
Ficha técnica
Texto: de Carlo Collodi
Texto adaptado, música e direção musical: Tim Rescala
Idealização e encenação: Miguel Vellinho
Elenco: Liliane Xavier, Mona Vilardo, Maria Adélia, Marise Nogueira, Marcio Nascimento, João Lucas Romero e Santiago Villalba
Músicos: David Ganc e Tibor Fittel
Iluminação: Renato Machado
Cenografia: Doris Rolemberg
Figurinos: Kika de Medina
Bonecos: Eduardo Andrade – Arte5
Visagista: Mona Magalhães
Desenho de som: Andrea Zeni
Preparação corporal, assistência de direção e assessoria circense: Bárbara Abi Rihan
Preparação Vocal: Doriana Mendes e Alessandra Quintes
Assessoria coreográfica: Cláudia Radusewski
Adereços: Eduardo Andrade, Miguel Vellinho, Lucas Menezes e Gustavo Kaz
Contrarregra: Divany de Souza
Operador de luz: Maurício Fuziyama
Operador de som: Paulo Alves Mendes
Microfonista: Jamile Magalhães
Sonorização: Áudio Cênico
Cenotécnico: Anderson Batista Dias Veiga
Equipe de montagem de cenário: Marco Vilarte, Vagner Pereira Crispim
Equipe de montagem de luz: Maurício Fuziyama, Rodrigo Maciel e Rommel Equer
Montagem do letreiro de led: Wesley Santos
Costureira da cortina: Nice Tramontin
Confecção da perna de pau: Horácio Storani
Assistentes bonecos e adereços: Marcely Soares e Joana Damazio
Assistente de visagismo: Cleber Ferreira de Oliveira
Assistente de Microfonista: Mayra Miranda
Estagiários de montagem de som: Mathaus de Oliveira, Wilton Lourenço
Estagiários Pequod: Lucas Menezes e Gustavo Kaz
Programação visual: Roberta Freitas
Fotos: Renato Mangolin
Filmagem e edição: Zhai Shichen
Filmagem: João Paulo Casalino
Assessoria de imprensa: Mônica Riani
Assessoria de Mídias Sociais: Rafael Teixeira
Produção executiva: Thiago Guimarães
Coordenação geral e direção de produção: Lilian Bertin
Realização: Cia PeQuod – Teatro de Animação
Serviço:
Local: Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Teatro III
Rua Primeiro de Março, 66. Centro – RJ | Tel.: 21. 3808-2020
Duração: 100 minutos.
Classificação etária: livre. Indicado para crianças a partir de 7 anos.
Estreia dia 1º de dezembro de 2021, às 19h.
Temporada: até 13/02/2022.
Sessões: quarta a sexta-feira, às 19h / sábado e domingo, às 16h.Ingressos: R$ 30 (inteira); R$ 15 (meia) na bilheteria do CCBB de quarta a segunda, 9h às 21h ou no site eventim.com.br
O Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro funciona de quarta a segunda (fecha terça), das 9h às 19h aos domingos, segundas e quartas e das 9h às 20h às quintas, sextas e sábados.
A entrada do público é permitida apenas com apresentação da comprovação de vacinação contra a COVID-19 e uso de máscara.
Não é necessária a retirada de ingresso para acessar o prédio, os ingressos para os eventos podem ser retirados previamente no site ou aplicativo Eventim ou na bilheteria do CCBB.