Crítica publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Lucia Cerrone – Rio de Janeiro – 10 .01.1998
Lembranças de terror de afeto
No minúsculo palco do Museu do Folclore, tudo é surpresa. Assim que o público chega ao teatro, vindo do ensolarado jardim do Museu da República, só é preciso alguns minutos para que o choque entre a luz e a sombra leve o espectador a entrar em sintonia com o espetáculo que está para ser apresentado. Na sala, iluminada com efeito de castiçais, está em cena o ator José Mauro Brant a rezar num pequeno oratório. A inusitada estratégia precede a um irresistível convite ao mundo das histórias contadas. E isso o ator faz como ninguém.
Contos, Cantos e Acalantos é mais do que o espetáculo de um
contador. José Mauro cria um espetáculo inspirado nas primeiras histórias ouvidas na infância e nos acalantos cantados pelas mães para embalar seus filhos, com o maior cuidado em preservar o que ele chama de “dualidade do terror- afeto”, contido nestas cantigas. Para quem se lembra, nada pode ser mais assustador do que as letras de Tutu Marambá, O Boi da Cara Preta, ou mesmo o Dorme Neném que a Cuca vem Pegar. Pequenas torturas musicais, retiradas do nosso folclore, que embalaram o sono de muitas gerações. Mescladas ao canto, algumas histórias não menos assustadoras como o Negrinho do Pastoreio, o Surrão Mágico, a história do pai que queria casar com a filha e João Jil, entre outras.
Numa representação absolutamente teatral, José Mauro usa todos os seus recursos de ator para contornar a tragicidade do texto, sem lhe tirar o peso. Num cenário intimista criado por Ney madeira a partir de peças recolhidas em antiquários, adornados por pequenas caixas quase uns teatrinhos, onde podem ser vistas as esculturas de Fernando Sant’Anna inspiradas em ex-votos, o ator está em cena acompanhado pelo violão de Dil Fonseca, criando um sarau num tom quase litúrgico. Um desafio para o ator, que desta vez escolheu o caminho mais difícil para se comunicar com a sua plateia, já tão acostumada com o festejado humor que normalmente acompanha seus personagens.
Num espetáculo que se completa em detalhes, os figurinos de Ney Madeira seguem a linha das cerimônias de batismo e de primeira comunhão costuradas num só traje. A iluminação de Paulo César Medeiros tem a cor das velas e dos lampiões, como se fosse tirada das pequenas cidades do interior do país, onde provavelmente foram criados esses contos.
Contos, Cantos e Acalantos é uma encenação que corre na contramão do teatro convencional, e tem agradado a plateia adulta muito mais do que era de se esperar. São as lembranças que tomam a cena e invariavelmente vão para casa com o espectador.
Cotação: 3 estrelas (Ótimo)