Por Ana Cecilia Reis (*)
“Eu fazia teatro na escola!” “Eu sempre quis fazer teatro!” “Nossa, tenho muita vontade, mas sou muito tímida!” – essas são frases que geralmente ouço quando falo que sou atriz e diretora. No entanto, quando pergunto sobre o que essas mesmas pessoas gostam de assistir, ou da última peça que se recordam, as respostas são menos entusiasmadas; não sabem, ou se lembram vagamente de ter visto alguma peça de um “global” ou um stand up comedy em algum barzinho. A partir disso reflito que existiu um momento, para a maioria das pessoas, onde o teatro foi presente, mas, de alguma forma esse elo se perdeu, e hoje é difícil encontrar uma pessoa que vá espontaneamente ao teatro que não seja da área de artes ou seja parente, amigo ou companheiro (a) de alguém que faça arte.
Depois dos adventos do cinema, da televisão, das plataformas de streaming, é comum ouvir que o teatro passou a ocupar um lugar elitizado, ser visto como objeto de museu, algo artesanal e ultrapassado ou completamente inacessível, com peças “sem pé nem cabeça de gente pelada”. Mas, ainda que isso pareça uma falência sem chance de recuperação nos tempos atuais, a frequência na procura de cursos e oficinas de teatro não diminuem ao longo dos anos, o que demonstra uma vontade das pessoas de vivenciar e compartilhar experiências cênicas.
Denis Guénoun, na introdução do seu livro “O teatro é necessário?” escreve que a especificidade do teatro é que ele só existe quando aquele que faz e aquele que vê estão presentes simultaneamente, ou seja, a recepção das artes da cena se realiza exclusivamente no momento compartilhado. O teatro parece segurar entre dentes a necessidade humana do rito, saindo um pouco da compulsão dos cliques, das postagens, dos likes contabilizados, pois, sendo uma arte testemunhal, exercício de memória ancestral, só se consolida em sua materialidade.
Na década de 1920, o ator, dramaturgo e diretor francês Antonin Artaud escreveu um texto nomeado “Acabar com as obras primas” onde afirmava que se “a massa” não compreendia Édipo Rei (01), a culpa não era “da massa”, mas sim de Édipo Rei. Com essa afirmação ele queria provocar a elite artística da época, que se recusava a repensar a linguagem das obras para mobilizar um maior interesse social. Artaud desejava despertar novas vivências e sensações no público, para além do psicologismo textual do drama burguês. Muito já foi experimentado no teatro depois disso, inclusive sob influência do próprio Artaud, mas parece que a questão da relação do teatro com a sociedade ainda continua um tema em constante debate. Cem anos se passaram e os (as) artistas da cena ainda discutem em seus seminários como fazer para que o teatro saia de sua bolha e alcance novos públicos.
ma das principais questões para o não comparecimento de grande parte da população aos teatros passa pelo viés econômico, seja por barreiras reais (transporte público, falta de acesso à informação, estruturas familiares) ou imaginárias (não ter a roupa adequada para ir, sensação de que a atividade não é destinada para elas, medo de serem coagidas pelos seguranças dos locais etc.). Durante os onze anos que vivi no Rio de Janeiro, morei e circulei em diferentes locais: centro, zona sul, zona norte / subúrbio, baixada, zona oeste… e me lembro que quando morava no bairro Encantado (que não é muito distante do centro, mas tem um sistema de transporte muito precário), eu perdia diversos compromissos por simplesmente ficar mais de quarenta minutos esperando um ônibus que diminuía a sua circulação aos finais de semana. Aquela velha história que o trabalhador já conhece: frota maior durante a semana, e reduzida no final de semana para lazer, o que nos incentiva a ficar em casa assistindo televisão, ou bebendo uma cervejinha no bar mais próximo da área. Esse bloqueio de acesso foi me desanimando muito a ir ao teatro. Era cruel perceber que o lugar onde eu morava acabava determinando as escolhas das minhas atividades, pois o cansaço era tanto, que eu tinha que repensar se valeria a pena esperar muito tempo até um ônibus passar, e uma vez dentro dele, esperar mais uma hora até chegar ao local (sem contar com as “baldeações”, por vezes necessárias) para assistir uma peça teatral que eu nem sabia se seria bacana ou não – isso porque trabalho na área de Artes Cênicas. Convido vocês a imaginar a chance de uma pessoa que não tem o costume de frequentar teatro querer passar por isso no seu final de semana de descanso. Pois é.
No entanto, pessoas ricas ou pobres continuam produzindo atividades artísticas e culturais, cada qual com sua dinâmica. Sobre isso, escreve o historiador Michel de Certeau, em seu livro A invenção do cotidiano, analisando as práticas populares e marginalizadas, suas maneiras de pensar e de agir como “uma arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar”. Certeau mostra que as atividades culturais periféricas não são por vezes reconhecidas, mas certamente produzidas e consumidas cotidianamente. É preciso criar estratégias para minimizar as barreiras que impedem uma real aproximação com os bens culturais de outros espaços. Uma das formas de isso acontecer é deslocar o fazer artístico que é feito nas áreas centrais e estratégicas da cidade. Essa é uma ação importante, mas é preciso cuidado para não hierarquizar esse movimento, no sentido de achar que está levando o que há de “melhor” para a população de baixa renda, e utilizar desse discurso apenas como um item de contrapartida social na justificativa de um edital qualquer. Não se trata de dar acesso às atividades para as populações fora do eixo centro/zona sul, mas sim investigar formas de construção que consigam dialogar com os interesses e produções desses locais, alimentando-se mutuamente das realidades múltiplas dentro de uma mesma cidade.
Sem repensar o deslocamento e formas de ações, torna-se impossível envolver mais a sociedade no fazer teatral. Se pensarmos no modelo de encenação de espetáculos no formato de “A Paixão de Cristo”, nos deparamos com um fenômeno de integração de toda a comunidade no desenvolvimento de uma peça, dos figurinos, cenários, atuação etc. Para além da questão religiosa, todas as pessoas assistem porque todas se sentem parte em algum aspecto daquele acontecimento, e é nesse ponto que professores (as), artistas e diretores (as) precisam articular meios de construção que envolvam mais a sociedade.
Muitas cidades do interior se mobilizam para produzir diferentes festivais e os (as) moradores (as) sabem que por um determinado período poderão assistir produções de diferentes lugares a preços populares. Esses eventos são também uma forma de socializar com pessoas diferentes, aprender, trocar, festejar, e se sentirem inseridos (as) em uma certa atmosfera criativa. Mas quando o Festival acaba, quais são as reverberações nesses locais? É importante que cada comunidade se sinta apta a realizar ao longo do ano uma frequência de criação e recepção que não sejam sazonais, que a riqueza das atrações não permaneça apenas no “estrangeirismo”, mas no constante fluxo de ações locais promovidas nos espaços culturais permanentes e/ou transitórios.
Outro exemplo de integração teatro/sociedade é do diretor e pesquisador Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido. Seus métodos encontraram caminhos partindo muito do conceito de ampliar a voz daqueles (as) que se sentem marginalizados (as) e nunca ouvidos (as), criando formas que pudessem traduzir questões sociais, fazendo com que as pessoas se apropriassem de suas histórias, e enxergassem a importância de seus sentimentos, desejos e trajetórias. Hoje em dia esse método é internacionalmente utilizado e muito difundido em diversas culturas.
“Eu quase nunca vou ao teatro”. Por qual motivo? Se eu quero resgatar um sentimento de acolhimento das diferenças através do fazer teatral, preciso antes de tudo estar atenta às respostas das pessoas, colocando energia de escuta e observando o que elas consomem, o que gostariam de assistir, onde são os espaços onde costumam circular, histórias que gostam de ouvir e contar, experiências que gostariam de vivenciar.
Tudo isso requer mais iniciativa independente e menos expectativas de apoio das esferas públicas e privadas que muitas vezes determinam modelos de ação que engessam e tornam as pessoas que trabalham com arte míopes para outras possibilidades de construção. Também requer esforço mental e físico para entender que estar no mesmo lugar, fazendo as mesmas coisas para as mesmas pessoas pode ser um lugar acolhedor e seguro, mas muito pouco significativo para que a presença da arte na vida da sociedade deixe de ser apenas uma reminiscência, e se torne, realmente, um potencial transformador.
(01) Édipo Rei é uma peça do teatro grego antigo escrita por Sófocles por volta de 427 a.C.
Texto publicado inicialmente na Revista Iconoclasta, seção Artes Cênicas, setembro 2021.
(*) Atriz, Diretora e Pesquisadora na Cia. Plúmbea