Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 16.01.1981

Como sair do Labirinto?

Por que entrar num labirinto, quando se sabe que é quase impossível encontrar uma saída? Quando se sabe que talvez haja um Minotauro pronto a devorar aqueles que se atrevem a transgredir os seus domínios? Quando se sabe que, na lenda grega, Teseu, mesmo vitorioso, sai do labirinto coberto de sangue? Mesmo achando uma saída, é inevitável que o herói, de uma forma ou de outra, se machuque e tenha que abandonar ou perder algumas coisas pelo caminho. É inútil a angustia dos espectadores quando veem personagens de histórias de mistério e aventura entrarem todo o tempo, como Teseu, em lugares escuros e estranhos, de onde não se sabe sequer se serão capazes de sair. O medo é inútil, assim como as tentativas, que sobretudo o espectador infantil sempre faz, de avisar onde estão os perigos. Mas, mesmo capaz de externar muito mais claramente seu temor, quando se observa a reação de uma criança diante dos riscos por que passam seus personagens favoritos, não dá para deixar de perceber que a esse temor se mistura sempre um certo prazer. Meio parecido com a sedução de se subir num lugar bem alto de onde se pode cair, de se sujar uma roupa limpa ou nova, de se desmontar algum brinquedo perfeito demais, de esconder coisas e guardar segredos, de desobedecer a irmãos mais velhos, a mãe e a professora. Sabe-se dos riscos, mas há um prazer sempre maior. Por isso é tão fácil, para a criança, entender a loucura daqueles que enfrentam monstros e labirintos. Por isso as crianças entram muito mais facilmente na viagem pelo escuro Labirinto, que serve de eixo a Coisas? Adoro Coisas, espetáculo do Grupo Lua ME Dá Colo que já esteve em cartaz na Aliança de Botafogo e volta esse final de semana para uma curta temporada no Parque Lage. Sobretudo porque parece impossível destruir minotauros e bruxas, ou crescer, sem levar tombos, perder brinquedos, amigos e bonecas, sem entrar mesmo nos labirintos mais escuros e enfrentar riscos, disfarces e caminhos imprevisíveis.

Coisas? Adoro Coisas mistura um imenso e inteligente cenário labiríntico onde o espectador parece estar sempre diante da surpresa e do risco, com uma retomada da lenda do Minotauro. Só que o touro, ao invés de ameaçador, funciona apenas como impulso para a movimentação dos espectadores. Está mal e toda a aventura é uma busca de solução para o seu caso. Quem fica efetivamente em primeiro plano não é um Minotauro doente, mas o Labirinto. E os espectadores, guiados por um dos atores (que também, volta e meia, se perde), assumem o papel de Teseu. Entra, e saem de corredores e lugares escuros, de onde surgem ora temporais, ora flores, ora um saci, ora alimentos invisíveis. Seu antagonista, ao invés de um mostro, passa a ser o próprio Labirinto com suas surpresas. O Touro, como qualquer mostro, é só um nome que se dá aos obstáculos por que se terá que passar. Fica bem mais fácil chamar o imprevisível de Minotauro e talvez pensar que ­o perigo maior é um monstro cujo nome já se conhece dê um pouco menos de medo. É mais fácil enfrentar um monstro que já se conhece, do que alguma coisa que não se sabe bem o que é, que não tem uma etiqueta certa. Um touro se pode vencer, uma bruxa se joga no caldeirão ou não, um lobo mau se mata; mas as surpresa e dúvidas, não.  Nada dá mais medo do que o imprevisível. Por isso talvez fique mais difícil para os acompanhantes adultos a viagem proposta pelo Grupo me Dá Colo. Principalmente quando se sabe que o Touro ficou de fora. E não se sabe o que se poderá encontrar depois do corredor escuro que inicia o Labirinto. Não adianta nada saber que Teseu derrotou o Minotauro. Porque o Minotauro sumiu e só resta o Labirinto, a ser atravessado sem a ajuda dos deuses. Porque os fios que teciam a história de Teseu desapareceram e cabe ao espectador inventar a sua própria ficção. Inventar os seus próprios monstros e vencê-los. Ou deixar, como propõem Ricardo Waddington, Christiane Couto, Monica Bil e Jorge Barrão do Grupo Lua me Dá o Colo, que rumos da história sejam tão labirínticos como o espaço de Coisas? Adoro Coisas. E as surpresas e personagens não tenham nome e etiquetas como objetos num supermercado. E o espetáculo torna-se uma possibilidade de viver o labirinto e seus riscos com um misto de ansiedade e prazer. Mesmo sabendo que sempre pode surgir algum mostro novo, que são inevitáveis as perdas, que se vai cair e ralar o joelho mil vezes. Ou, o que é pior, que talvez não se encontre logo de cara a saída.