Crítica publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Lucia Cerrone – Rio de Janeiro – 27.07.1996
Multidão em uma performance
O Passado a Limpo é o primeiro texto infantil escrito por Rogério Blat para a direção de Ernesto Piccolo. O espetáculo é o terceiro da série que integra o projeto Rio Enquanto é Tempo, iniciado por Piccolo e Blat junto ao Centro de Artes Calouste Gulbenkian, com Funk-se e Com o Rio na Barriga, ambos dirigidos ao público adolescente. Os dois espetáculos, cada um com uma média de 60 pessoas em cena, vindas das mais diferentes classes sociais e faixas etárias, reuniam no palco uma multidão de não atores, que, esbanjando vitalidade, seguia à risca as marcas da direção. Era a vitória do coro. Os espetáculos se transformaram numa espécie de evento teatral, como estética e linguagem próprias.
A nova montagem segue a formula das anteriores, mas como foi escrita para, no máximo, 10 atores, ficando o restante – 50 atores – como elenco de apoio, Piccolo e Blat tiveram que dividir forças para contar sua história. A peça, desta vez com protagonistas já destacados no texto, cria um núcleo principal de atuação. Mesmo assim o grande trunfo do espetáculo continua sendo a performática multidão que dá movimento às cenas em especial teatralidade.
O texto de Rogério Blat é desta vez ambientado no Rio de Janeiro; mais precisamente, um pouco antes da chegada de D. João VI e da corte portuguesa ao Brasil. Na cidade imunda vive Mariano, um pequeno inventor, às voltas com uma máquina de retirar lixo das ruas. Completamente desacreditado pela sociedade local e pela própria família, Mariano é impedido por Vidigal, chefe máximo da polícia, de namorar Júlia, sua filha. O pai prefere como pretendente o capitão Abílio, seu braço direito. Mas isso é só uma parte da trama. Vindos do futuro, Caio, João, Zezinho e Ana são os responsáveis pelo encontro de Mariano com D. João, para que o rapaz se torne parte do governo e possa construir o espetáculo da dupla Blat e Piccolo, O Futuro era Hoje.
O enredo cheio de tramas no núcleo central não deixou desatenta a direção de Piccolo para sua principal atração: o elenco de apoio. Entre uma cena e outra, circulam pelo Rio de 1806 índios, escravos, policiais, população local e corte portugueses em detalhes ricos de criação. A pesquisa histórica muito bem colocada no texto, sem nenhum didatismo, chega à cena com inconfundível toque de humor. Em destaque, alguns chavões da nossa história, como a preguiça do povo local, a falta de educação dos colonizadores e a sensual influência da população escrava, que deságua na atualidade, como resposta à situação em que se encontra o Rio de Janeiro em 1996.
O Passado a Limpo é um espetáculo de grande porte, que tem figurinos muito interessantes de Kalma Murtinho, tanto para o elenco principal como para o de apoio. Na mesma linha, os cenários de Gil Haguenauer – o interior de uma casa da época que se transforma em praça para chegada da corte – ganham contornos bem delineados na iluminação de Dimitre Martinovich. As músicas de Charles Khan e Guilherme Hermolin fecham o trabalho em bem lembrada citação aos espetáculos anteriores, como Funk-se e Com o Rio na Barriga. Está fechada a trilogia.
Cotação: 3 estrelas (Ótimo)