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Quando focalizamos a produção dramaturgia específica para teatro de bonecos é fácil perceber que a demanda é bem maior que a oferta, principalmente se considerarmos a dramaturgia recente. Portanto, muitos grupos e companhias assumem construir eles mesmos esta dramaturgia, nem sempre por opção e bem mais por falta de opções.

Em casos específicos existe uma necessidade estética anterior de, assumir a função do artista que articulará o processo total da criação. Não só a criação da dramaturgia, ele terá a função de estruturar a obra como um todo orgânico, no papel de encenador.

A palavra encenador, vem tomando força e definindo o articulador de uma visão global da obra de arte a ser criada, com estrutura orgânica, solidez conceitual estética e uma visão total da obra nos aspectos formais que compõem a atividade teatral (dramaturgia, direção de atores, concepção visual, etc.)

Este processo ligado ao encenador como figura centralizadora da criação tomou especial importância no chamado teatro visual, físico ou a tal “performance”. Um teatro que se articula que se articula a partir de ideias, de imagens e de um possível roteiro de intenções e fenômenos.

Cada vez mais vem se consolidando uma nova dramaturgia, que deixa de lado as palavras e compõe seu vocabulário através de gesto e imagens. Esta dramaturgia busca aproximar-se mais de uma comunicação sensorial do que racional. Ao provocar os sentidos, deixa-se de lado a compreensão semântica para entrar no caminho de uma vivência mais abstrata e subjetiva.

A palavra carrega significados bem articulados e definidos pelo autor: Na maioria dos casos estes significados viajam num único plano de compreensão e se complementam com a imagem articulada pelo encenador; formando um pacote fechado de ideias e intenções. Na dramaturgia das imagens e gestos, o leque de significados se expande e transita numa experiência aberta do ponto de vista do transmissor (encenador, ator, performer) e de acordo com a capacidade do receptor para decodificar esta vivência, poderíamos chamá-la de “emissão gestáltica”. O emissor imprime seus gestos, compõe suas imagens “subjetivas” e o receptor as decodifica, complementa e articula de acordo com a livre interpretação e associação dos fatos.

A música, por ser uma arte abstrata por excelência, provoca nossos sem tidos por um caminho “invisível”, que nos impregna de sensações e nos leva a consolidar imagens em nossas mentes. A imaginação abre-se ao mundo das provocações sensoriais. Para cada receptor uma imagem diferente, única, individual, porém fruto da mesma fonte de emissão.

No teatro físico, gestual, ou de imagens, este leque de possibilidades fecha-se um pouco, mas ainda teremos uma ampla margem de leituras subjetivas de acordo com cada espectador.

De alguma forma o teatro ocidental se articula, desde os clássicos gregos, numa estrutura dualista de oposição geradora do conflito dramático. A estrutura aristotélica marca, na maioria das obras, um conceito imutável de espaço-tempo.

Se analisamos o teatro numa perspectiva Aristotélica para expressar nossa realidade contemporânea, com uma estrutura de começo, meio e fim, um conflito claro e uma resolução final deste conflito, pode ser que pareçamos pouco adequados à forma como percebemos o mundo no nosso dia-a-dia.

Possivelmente para uma pessoa que viveu nos últimos 1900 anos este modelo funcione. Mas para um ser urbano que acorda e liga sua TV, computador, rádio, aparelho de som, e começa o dia bombardeado de informações contrastantes, emotivas o bastante para mudar de humores em pouco tempo. Sair à rua e pegar um carro ou uma condução nos permite conferir dezenas de histórias parciais, roubos, perseguições, flertes, acidentes, romances, pequenos incidentes que chamo de focos de revelação, uma visão parcial do mundo, fracionada, desarticulada, desprovida de vínculos e contextos. Será que a dramaturgia atual não deveria refletir este universo?

Verificamos sequencias sem início nem fim, como se circulássemos de automóvel pelas ruas, observando fragmentos da vida, onde a velocidade não nos permite identificar como iniciaram nem como terminaram. Porém sempre nos restará o poder da imaginação e a subjetividade para completar estes fatos.

A possibilidade de uma articulação cênica, com diversidade de pontos de vista sobre a mesmo situação, me atrai como ponto de partida para desenvolver pesquisas de linguagens no âmbito teatral. Esses focos de revelação nos permitem a ambiguidade, subjetividade, a visão onírica surrealista. Esta forma de “contar uma história”, se manifestou bastante no teatro do XPTO onde formas animadas não ditavam regras reconhecíveis, possibilitando uma espécie de visão gestáltica da obra, partes que sugerem um todo numa pulsação entre o ser e o não ser.

Pensamos a dramaturgia desde os primeiros trabalhos do grupo (baseadas em roteiros e não em obras com diálogos escritos), como se fossem peças autônomas de estrutura dramática e musical. Havia uma continuidade temática e visual, mas as partes integrantes da obra passavam ao espectador uma sensação aleatória e fragmentada. A fragmentação da trama dramática em “focos de revelação” sugere uma visão parcial do mundo, como na vida moderna. A palavra falada foi substituída por idiomas inventados ou tomada por um caráter musical justaposto ao semântico.

A palavra de desdobra, se fragmenta, se reconstrói em novas articulações com íntima relação dramática criada junto à música realizada ao vivo, (sublinhando e articulando o movimento dos atores). Esta atitude permite que a obra crie com o espectador uma comunicação sensível e total, deixando que aspectos mais racionais, que estejam solidificados pela palavra, vaguem sem rumo pelo terreno das ambiguidades, dos sonhos, do imperceptível, propiciando imagens abertas capazes de serem articuladas pelo público de formas diferentes.

O teatro não verbal foi uma moda passageira dos anos 80? Penso que não. Quando nos propusemos realizar um teatro não verbal, buscávamos escapar de um tipo de teatro realista, onde o ator realizava sua performance inundando a cena com palavras que apontavam apenas ao intelecto, sem sensibilizar os sentidos como um todo. Queríamos dar significado à imagem, ao movimento, ao gesto silencioso, codificando uma linguagem com leituras múltiplas, menos direcionadas que as verbais. Em nenhum momento procuramos realizar mímica ou gestos ilustrativos para cada ação; muito pelo contrário, buscávamos extrair do gesto abstrato, do olhar, da máscara facial e corporal o máximo de expressão. Comunicar sem ser didático, criar imagens ambíguas que permitam diferentes leituras. O teatro tem e sempre teve seu lado hermético, que é necessário. Como numa missa, muitas partes do ritual encontram-se escondidas no subsolo e vão aparecendo, emergindo, arbitrariamente no momento exato e único da revelação individual, que acaba ecoando também na coletiva. Garcia Lorca sempre falava que o espectador não devia ultrapassar as finas teias que o poeta tecia misteriosamente em seu labirinto de imagens.

Na vida moderna, a fragmentação faz parte do cotidiano e cada pessoa deve articular estas impressões sensoriais para dar coerência ao mundo onde vive. Extrai-se do mundo aquilo que é do nosso interesse ou foco de atenção, filtra-se e descarta-se tudo aquilo que funciona como “ruído” da existência.

O artista que trabalha com imagens fragmentadas e focos de revelação já fez esse filtro prévio, e emite exatamente aquilo que a seu entender é “significante” e pode traduzir sua visão do mundo e da vida. Esta articulação de imagens deve conduzir o espectador sutilmente, seduzindo os sentidos, provocando.

Porém, acredito ser de grande importância, que o artista tenha bem claro aquilo que se propõe a comunicar, pois do contrário acabará transformando sua obra em mais um “ruído” descartável para o espectador.

Através da utilização de imagens simbólicas e metáforas, talvez possamos criar o embrião de uma nova dramaturgia e forjarmos novas tramas poéticas, mágicas e paradoxais, que deverão articular novamente o mundo que nos cerca a partir destas novas perspectivas.

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Osvaldo Gabrieli
Dramaturgo, Cenógrafo, figurinista e Diretor do Grupo XPTO de São Paulo.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 3º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (1999)