Um dos motivos que me levou a escrever um artigo sobre este tema para a Revista do 4º FENATIB, foi ordenar e expor alguns sensações e reflexões sobre o que tenho visto a respeito da formatação do espaço cenográfico no teatro infantil.
O teatro infantil padece em geral de grandes carências, principalmente quando comparado ao teatro adulto. Carência de recursos materiais, de espaços adequados, muitas vezes sobrevivendo em suas temporadas, das sobras do espaço e iluminação do espetáculo adulto com quem divide a sala. Acredito, porém, ser ainda mais marcante o fato de muitas vezes existir uma despreparo por parte de cenógrafos, figurinistas, diretores e produtores, sobre o que significa fazer teatro infantil, fazer teatro com um projeto cenográfico adequado para teatro infantil, um cenário para ser visto e apreciado por crianças.
Em primeiro lugar quero fazer uma distinção, ao meu entender determinante, sobre o que é fazer cenografia e o que é apenas preencher um palco com múltiplos elementos. Tenho observado em vários espetáculos a farta utilização de elementos justapostos (tecidos, elementos planos pintados, objetos) que estão em cena como o intuito de “decorar” a neutralidade da caixa preta. São elementos na maioria das vezes que não se relacionam entre si ou especialmente nem são aproveitados em sua essência pelos atores ou pelos desenhos das marcações do diretor. Esses elementos estão em cena apenas para decorar. Então desprovidos de “vida” cênica com cores e formas colocadas gratuitamente, gerando um elemento que funciona como “ruído” à percepção do público.
Caminhando em outra direção e já falando no contexto do teatro infantil está o que eu chamo de “área de jogo” do ator ou espaço cenográfico lúdico. A cenografia nesse caso existe para colocar o jogo teatral num contexto simbólico que organiza o olhar do espectador. Um cenário que expressa uma “concepção visual”, uma intenção plástica ao articular imagens, cores e formas, para organizar o olhar do espectador, provocar sensações e sensibilizar o olhar da criança, um cenário que sirva também de apoio espacial e temporal para o ator se manifestar. Esse ambiente deveria permitir articulações lúdicas, transformações, jogos e possibilidades de movimentação para os atores e para os desenhos de direção.
Em qualquer projeto teatral as linguagens ou meios utilizados deveriam se complementar como um todo, pulsando e se relacionando entre si. O cenário, o figurino, a luz, a música, a dramaturgia, o trabalho do ator-intérprete, a utilização de bonecos e objetos animados dramaticamente, deveriam funcionar em comunhão e nunca um como pano de fundo do outro. Sob esse ponto de vista, cenógrafo e figurinista deveriam se articular, dialogar. Fazer um estudo dos ambientes onde acontecerá a peça, dos diferentes planos onde se desenvolverá a ação, das cores que serão utilizadas, das texturas, dos brilhos, dos diferentes materiais. São alguns dos primeiros passos que poderão ser tomados para elaborar um projeto cenográfico.
Algumas perguntas deverão ser formuladas junto à direção estruturas móveis capazes de desenhar ambientes diferentes? Partiremos de uma proposta realista, figurativa de cenário, ou utilizaremos elementos simbólicos apenas sugerindo espaços e deixando a imaginação do público “navegar”. Utilizaremos um figurino básico formal ou elementos estilizados, exagerados, que ampliem os recursos do ator? Fica difícil, ao se falar de algo que tem a concretude de um cenário ou de peças de figurino, articular conceitos somente com palavras, sem que isso seja acompanhado por imagens ou ao menos por um relato que se aproxime, ainda que no plano imaginário de uma ideia sobre a qual estamos falando em termos de cenografia.
Portanto, a seguir, vou relatar algumas experiências relativas ao XPTO, o grupo que atualmente dirijo e do qual também sou responsável pela direção de arte. Desde o primeiro espetáculo do grupo, A Infecção Sentimental Contra-Ataca, existiu a necessidade de misturar a imagem do ator ao figurino e ao cenário. Recortes de cidade foram incorporados ao corpo do ator, hora eram peças que compunham um figurino, hora eram peças que compunham um figurino, hora eram objetos animados utilizados dramaticamente (prédios que se transformavam em armas, máscaras, peças de um strip-tease). As formas se desconstruíam e se reconstruíam num cenário urbano. O material de base utilizado era o plástico. Amassado, queimado, transformado servia-nos como gerador de uma mensagem poética de uma mensagem poética, como se disséssemos ao público: “vocês lidam todo dia com sacos de lixo, sucata, detritos industriais, olha a poesia que guardam esses materiais, olha a força dramática que revelam ao transformar-se em personagens”. Canos com lâmpadas nas pontas eram os filhos de uma família, sacos de lixo gigantes disputavam alimentos, canos pretos retorcidos articulavam o rabisco de um rosto deformado pela noite, pelo frio e pela fome; flores soltavam fumaças coloridas e engravidavam a população, dois olhos de luz como faróis de carro passeavam entre os desenhos do biombo cenário, se perseguiam, se desencontravam, se amavam.
Outras vezes, como no caso de Kronos, o espetáculo nasceu de um projeto cenográfico elaborado a partir de um sonho no qual pessoas empurram rodas gigantescas dentro de uma pista circular. Queríamos que o espetáculo guardasse em sua essência a fragilidade do sonho, o efêmero, o nebuloso. O primeiro passo foi concretizar os objetivos que seriam parte principal do projeto cenográfico: duas rodas gigantes de madeira e ferro com grande mobilidade. Rapidamente, nos ensaios, descobrimos seu grande potencial dramático e também os interessantes jogos que nos ofereciam quando criavam espaços diferentes, como corredores virtuais e pequenos palcos dentro do grande palco, além de uma versatilidade enorme, possibilitando no jogo com os objetivos, estruturar micro-espaços como o de uma ampulheta desenhada na roda que servia de morada para dois bonecos que residiam em seu interior, a base de um gigantesco vulcão ou os portais da besta do tempo. Os elementos cenográficos criam espaços e os destruíam a cada momento. Criavam um caminho pelas sombras para articular o olhar do espectador sem dizer exatamente que “isto é isto” e “aquilo é aquilo”, muito pelo contrário, permeando de magia o espaço cênico, levando o olhar do espectador por um caminho surreal e onírico.
Um dado interessante: quase ao mesmo tempo em que estreamos Kronos, Ulisses Cruz ensaiava uma obra onde apareciam elementos cenográficos muito próximos ao de Kronos, dentro de um contexto dramatúrgico completamente diferente. Acredito ser isso puro sincronicidade. As formas estavam no ar no plano inconsciente. Existiram vários projetos do XPTO onde o elemento cenográfico era uma ou várias estruturas móveis multifuncionais; foi o caso da ópera Aquelarre 2000 – La Luna e das peças O Pequeno Mago, Babel Bum, e Buster. Especialmente em O Pequeno Mago, as árvores da floresta e as partes que compunham o castelo, construídos de ferro e elásticos em estruturas circulares com rodas, permitiam rápidas movimentações, criando perspectivas diferentes e dando velocidade às cenas e às passagens entre as cenas. a floresta e o castelo mudavam de lugar, criando um movimento cinematográfico”, desde o ponto de vista do público observador.
Cabe destacar a fundamental participação de atores manipuladores, sensíveis aos detalhes das coreografias, das pontuações e manipulações técnicas das árvores, da abertura das folhagens que funcionavam como gigantescos leques, bem como da manipulação de objetivos e bonecos. Em Buster, o cenário consistia em caixas metálicas de grande porte, com portas duplas e giratórias que permitiam muitas articulações espaciais diferentes, trabalhar em diversos planos de altura e criar uma variedade de truques de entradas e saídas por portas e alçapões. Alguns dos personagens eram clonados por dois ou três atores, o que facilitava entradas e saídas rápidas de lugares distantes e em planos diferentes, o que permitia criar divertidos jogos de ilusão.
Gostaria ainda de destacar a utilização pelo XPTO, de figurinos cenográficos que permitem aos atores criar seus próprios “lares ambulantes”.
No interior desses figurinos os personagens “vivem”. Andam pela cena utilizando o cenário-figurino para sublinhar a saída de uma mão por um buraco, a mexida de uma perna, esconder a cabeça, etc. Geralmente quando utilizamos esse tipo de figurinos de grande porte, deixamos de lado elementos cenográficos muito marcantes e, principalmente, utilizamos a luz dentro de uma caixa preta para determinar espaços climáticos diferentes.
Sem dúvida, o teatro de bonecos e de animação representou para o projeto cenográfico e para os figurinos do XPTO, uma fonte referencial muito importante. O imprevisível, a surpresa, a imagem sugerida ou inacabada é uma constante na concepção visual do grupo. De alguma forma deixamos que o espectador participe, concluindo virtualmente uma imagem, uma forma. O ator que trabalha no XPTO se posiciona dentro da obra como uma criança que brinca com objetos e formaliza um enredo, num procedimento onde a imaginação é campo fértil no processo da criação.
Nenhum figurino até hoje foi construído como uma peça utilizável no “dia a dia”. Sempre houve, até nos figurinos mais clássicos, como no caso de Buster, a necessidade de pesquisar materiais não convencionais, ampliar as proporções das roupas, destruir de alguma forma o espaço físico “conhecido” do ator, desestruturar seu andar pelo palco, sua estabilidade, criando a necessidade de reconstruir o personagem desde uma perspectiva nova, em perfeita harmonia com o objetivo roupa que o veste, com o objeto cenário que o determina espacialmente. Claro que esse tipo de trabalho necessita de um tipo de ator que se doe, um pesquisador, um ser criativo que interaja com a novidade e a dificuldade e, sobretudo, com muito tempo para os ensaios. O figurino e o cenário chegam para o ator no início do progresso e deverão ser seu playground, o berço da sua expressão.
Osvaldo Gabrieli
Nascido em Buenos Aires, Argentina, formou-se em Artes Plásticas pela Escola Nacional e superior de Belas Artes. Trabalhou com diretores de teatro argentino, criando cenários, máscaras e figurinos, em especial para o teatro de títeres. A partir de 1980 fixa-se definitivamente em São Paulo. É fundador e diretor do Grupo XPTO desde 1984, recebendo vários prêmios de direção, cenografia e figurino.
Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 4º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2000)