Bate-papo com Gabriela Romeu (01) sobre a comemoração dos 30 anos do ECA – Estatuto da Criança e Adolescente

Gabriela Romeu

CBTIJ / Leo Carnevale (02): Primeiro queremos agradecer a sua disponibilidade em conceder esta entrevista. Como uma entidade que tem um olhar sobre a infância e a juventude e que congrega profissionais de teatro que atuam para esse segmento é um prazer poder trocar para nós manter este diálogo com você. Desejamos que isso enriqueça nossos associados e amplie a gama de informações e reflexões sobre crianças e jovens. Vamos falar sobre a infância e a juventude, com um olhar especial sobre o ECA – Estatuto da Criança e Adolescente.

Gabriela Romeu: Agradeço o convite pra falar de um marco importante da história da infância no país. Cheguei à redação da Folha de São Paulo no final dos anos 1990, e de lá para cá pude acompanhar como a sociedade foi sendo impactada pela criação do ECA.

CBTIJ / Leo Carnevale:  O ECA está completando este ano 30 anos, No Título I – DAS DISPOSIÇÕES PRELIMINARES o Art. 4º fala que “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”, você pode observar nesse tempo um avanço para o universo infantil, a partir da regulamentação do Estatuto no que tange a estes direitos “assegurados”?

Gabriela Romeu
: Sim, dos anos 1990 para cá, muito avançamos do debate dos direitos da infância no país. O ECA surgiu no bojo da Constituição de 1988 e da forte atuação da militância na área, de movimentos importantes como o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e do surgimento de diversas instituições do terceiro setor dedicadas às causas da infância. A Andi, por exemplo, surgiu no período e foi importantíssima para apoiar jornalistas nas redações com o objetivo de ampliar a pauta e o debate de diversas questões envolvendo as crianças e os adolescentes. A Andi também analisava a cobertura da imprensa e apontava deficiências, desenvolvia publicações que ajudavam a melhorar o entendimento dos repórteres em áreas como saúde e educação. Com o ECA e todo esse movimento que o impulsionou, foi criada uma grande roda para cuidar das crianças em todo o país.

CBTIJ / Leo Carnevale:  A palavra Cultura e Educação aparecem no ECA 11 vezes cada uma nos “Títulos”, “Capítulos”, “Seções” e “Artigos” que o compõem, num texto de 82 páginas. No seu entendimento estes dois segmentos, fundamentais na formação do ser humano, estão bem representados no ECA? Esses direitos estão bem assegurados?

Gabriela Romeu: Para responder melhor a essa questão, eu precisaria ter uma leitura mais técnica do Estatuto, e eu não tenho. Mas o que posso dizer, como uma jornalista dedicada à infância há mais de duas décadas e por ter partilhado da leitura de especialistas importantes na leitura do Estatuto, é que ele tem reconhecimento internacional, temos um bom Estatuto. A discussão ano após ano – e principalmente nos seus “aniversários” – era como implementá-lo, fortalecendo toda a rede de atores no entorno da criança e do adolescente. Apesar dos avanços nos últimos anos, em muitos segmentos, da universalização da educação à queda das taxas de mortalidade infantil (que assustadoramente voltaram a subir…), as infâncias ainda sofrem com as mais diversas vulnerabilidades e muitos abandonos, em diferentes classes sociais. Mas, sim, as crianças e adolescentes negros, das periferias, são vítimas atrozes do racismo estrutural, de um país de muitas violências e do colonialismo do mundo adulto na infância. Hoje, com todas as ameaças antidemocráticas e fascistas que vivemos, demos um passo atrás, o que é assustador. O que precisamos é garantir que a própria existência do ECA e evitar perdas e retrocessos na própria lei.

CBTIJ / Leo Carnevale: As palavras Brincar e Divertir-se só aparecem no ECA apenas uma veze cada uma delas no Capítulo II que fala DO DIREITO À LIBERDADE, AO RESPEITO E À DIGNIDADE no Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. Sendo especificado pelo Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: IV – brincar, praticar esportes e divertir-se; você, que tem uma pesquisa ampla sobre o universo das brincadeiras infantis com a criação do premiado “Mapa do Brincar” e do “Projeto infâncias”, como vê essa particularidade? Esse direito está bem assegurado, mesmo sendo tão pouco citado?

Gabriela Romeu: O direito ao brincar é uma constante ameaça nas infâncias contemporâneas, principalmente nos grandes centros urbanos, onde as pessoas vivem em espaços diminutos, com cotidianos fragmentados, envoltas numa educação tecnicista. Digo sempre que a criança, no entanto, tem espírito brilhantemente transgressor e brinca em todo tempo e lugar, pois o brincar é sua forma de estar, se comunicar e apreender o mundo. Ela dá um jeito para brincar, transgride a aridez imposta muitas vezes pelo mundo adulto. O que não tira de nós, adultos, a responsabilidade de assegurar mecanismos legais para garantir esse direito tão essencial a uma infância plena. É fundamental garantirmos o tempo e o espaço para a criança brincar – e um brincar espontâneo, autoral e autônomo, claro, diferentemente do brincar pedagogizado que assola muitos espaços escolares. A escola, lugar onde as crianças comumente se encontram, convivem e brincam (e isso apesar de todas as deficiências que elas abarcam, sabemos), é importantíssima para o desenvolvimento da cultura entre pares, ou seja, para a troca daqueles saberes próprios das crianças. Vale ainda ressaltar que a atual crise sanitária que enfrentamos, entre tantos outros males, afeta a importante expansão corporal das crianças, que, apesar de não serem grupo de risco, são totalmente vulneráveis e atingidas por todo esse confinamento (necessário para salvar vida, é obvio).

CBTIJ / Leo Carnevale: No Art. 4º falamos acima e diz que “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”, como você enxerga a atuação do poder público no cumprimento e no desenvolvimento destas “prioridades absolutas”? E os demais “atores” dessa “comunidade”, a “família” e a “escola”?

Gabriela Romeu: Temos leis que asseguram a criança e o adolescente como sujeito de direitos, que devem receber proteção integral e com prioridade absoluta. E, sim, isso é partilhado por Estado, famílias e sociedade. Assim, somos todos responsáveis constitucional e moralmente por todas as crianças, sejam elas os meus filhos e os filhos dos outros, sejam elas os filhos que desconhecem paternidade e maternidade. Mas lei e realidade não andam tão lado a lado, infelizmente. E há muito desconhecimento com relação a isso tudo. Segundo o programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana, 40% da população brasileira conhece pouco ou nada dos direitos da criança. Ou seja, para ser aplicado, o ECA precisa ser conhecido, divulgado, debatido…

Apesar de o ECA estar completando 30 anos, ser um Estatuto maduro, sinto que muitas vezes a sociedade vê a infância e a adolescência com olhos “menorizados”, para dialogar com o antigo Código de Menores, que tratava de crianças abandonadas, infratoras, de classes sociais vulnerárias, como se menores eram as outras crianças. A criança é sempre esse outro, ora o outro que não é o “meu filho” (é o “menor abandonado”), ora o outro que não tem voz e só é passível da voz de comando dos adultos. Ainda é desafiador enxergar a criança como sujeito de direitos. Nesse contexto, com arraigada concepção da infância marcada pela negatividade (a criança é definida pelo o que não sabe, não faz, não fala), é preciso muito trabalho para a sociedade entender essa “prioridade absoluta”. E, talvez até anterior a isso, enquanto não encararmos nossa ferida que é ter um país com grandes abismos sociais, ou seja, sem equidade e justiça social, tão mais difícil discutir as prioridades das infâncias.

CBTIJ / Leo Carnevale: No Capítulo IV que trata DO DIREITO À EDUCAÇÃO, À CULTURA, AO ESPORTE E AO LAZER os Artigos 58 e 59 falam respectivamente: “No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura.” e “Os municípios, com apoio dos estados e da União, estimularão e facilitarão a destinação de recursos e espaços para programações culturais, esportivas e de lazer voltadas para a infância e a juventude.” O que você tem visto com relação a estes artigos, uma vez que a pesquisa que você realiza estende-se por todo o país?

Gabriela Romeu – Ando mais pelos quintais do Brasil e bem menos pelas escolas. Mas, por onde ando e muito pelo o que vejo, o contexto social e cultural das crianças e adolescentes não são respeitados muitas vezes, infelizmente, no processo educacional. E eu posso falar isso só a partir das minhas andanças e do diálogo com algumas realidades do país, então só me firmo nisso, vale destacar. As singularidades das infâncias não são consideradas a partir já da própria arquitetura das escolas. Vou dar um exemplo. Imagine o que é viver na região pantaneira, à beira do rio Paraguai, em meio a uma natureza pungente e mestra de muitos saberes. Quantos estímulos e aprendizados só no entorno, não? Então você chega à escola, uma caixa quase sem janelas, abafada, de costas para o rio que tem seu ar-condicionado natural. Ou seja, se a escola não dialoga nem com o lugar, como é que dialoga com as pessoas e as infâncias do lugar? Então entramos na sala de aula e lá estão pregadas nas paredes tarjetas com letras e desenhos de um abecedário. Lá vemos os tradicionais “c” de casa (uma casa genérica…), “d” de dado, “e” de elefante… Onde está a alfabetização freiriana (só para não deixar de citar um dos nossos mestres) que parte da realidade, as histórias de vida das alunas e dos alunos?

Percebo também que a escola, nas zonas urbanas e rurais, pouco se abre ainda hoje para a própria cultura da infância. A escola tem muito o que aprender com o quintal, espaço do exercício pleno da infância. É preciso “quintalizar” a escola, considerar os saberes dos quintais exercitados pelas crianças – falei mais disso neste texto aqui (https://projetoinfancias.com.br/site/projetos/artigos/artigo-2/).

CBTIJ / Leo Carnevale: No Capítulo II dentro do tópico DA PREVENÇÃO ESPECIAL, Seção I, DA INFORMAÇÃO, CULTURA, LAZER, ESPORTES, DIVERSÕES E ESPETÁCULOS o Art. 76. fala: “As emissoras de rádio e televisão somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas.” Você vê esses critérios sendo respeitados? Qual é a sua avaliação sobre o conteúdo audiovisual disponibilizado para crianças e jovens no Brasil?

Gabriela Romeu: Nos últimos anos, houve um movimento importante para proteger a criança da veiculação do consumo violento nas TVs abertas, mas não houve paralelamente a isso uma defesa da programação infantil nos mesmos espaços, garantindo programas de qualidade para as infâncias. Os anunciantes foram embora, a grade de programação, também. As crianças ficaram indefesas diante da programação “mar aberto”, expostas na maioria das vezes a conteúdos que precisam de mediação (o que sabemos que é uma deficiência nas famílias brasileiras, que ainda têm a TV como babá e muitas vezes como único entretenimento). E, sim, importante considerar também que o grande playground de muitas infâncias contemporâneas é a internet, que permite maior diversidade de conteúdos, mas também requer mediação e estratégias de proteção. Voltando à televisão, o contexto, claro, é diferente nas TVs pagas (longe de ser cenário sem desafios), de acesso bem mais restrito social e economicamente. Nas TVs pagas, canais novos surgiram e a programação cresceu, inclusive com o fomento ao audiovisual via Fundo Setorial, propulsor do aumento de produções nacionais de qualidade dirigidas aos públicos infantis e juvenis, muitas delas criadas após desenvolvimento cuidadoso. De novo, alarmante que tudo isso esteja ameaçado pelos aviltantes desmontes atuais na Cultura, afetada, massacrada por uma guerra cultural cheia de concepções retrógradas.

As produções culturais (e aqui amplio para as diversas linguagens, incluindo o teatro, a literatura, o cinema, a música, as artes plásticas…) constroem nossa casa simbólica, nos constituem como sujeitos, desde o alicerce e desde a infância. E assim segue nos constituindo por toda a vida. É preciso garantir que as crianças tenham acesso aos bens culturais, das artes e das muitas manifestações culturais Brasil afora e adentro.

(01) Jornalista, documentarista e escritora, especializada em produção cultural para infância, com vinte anos de atuação em projetos que abordam temáticas infantis e desenvolvidos em diferentes plataformas, como livros, documentários, sites e exposições.

(02) Ator e palhaço, membro do Conselho de Administração do CBTIJ/ASSITEJ Brasil

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