Ciro Acioly. Foto Andrea Nestrea

Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 19.10.2018

Fotos: João Pacca

Um espelho na cara da juventude prozac e da geração multitelas

Não deixe de levar os jovens de sua casa para ver Quando as Pessoas Andam em Círculos, da Artesanal Cia. de Teatro, só mais dois dias (hoje e amanhã) no Sesc Pinheiros. A peça fala deles e das angustias deles.

Eis uma assumida incursão do grupo carioca Artesanal Cia. de Teatro pelos temas do mundo jovem: a peça Quando as Pessoas Andam em Círculos, que eles decidiram estrear em São Paulo, em temporada curta no Sesc Pinheiros – em horário de teatro adulto, ou seja, à noite. Encerra suas apresentações já neste fim de semana. Tente não perder.

A companhia já é craque no teatro para crianças, muito sensível e poética no seu repertório, e por isso reconhecida por crítica e público. Tem 23 anos de trajetória, um tempo a se respeitar. Bater na porta do teatro jovem é tarefa mais recente no grupo. E há que se louvar. Este é um espetáculo de muita potência e muito talento. Nele, o grupo traça uma radiografia forte da juventude que toma remédio para ansiedade e depressão, a chamada ‘juventude prozac’, e tem medo de tudo: de tomar decisões, dos percalços corriqueiros da vida, de relacionamentos, de olho no olho.

Ao mesmo tempo é uma geração mergulhada em multitelas, ou seja, que só sabe interagir com o mundo se for pela mediação das telas de computador, tablets, laptops e, sobretudo, dos smart phones – e abrem todas essas telas de uma vez só diante de si, daí o termo multitelas. Como se vê, a peça possui uma autoconcentração de questões relativas à juventude contemporânea não só brasileira, mas mundial.

Com texto assinado em dupla por Gustavo Bicalho e Daniel Belmonte, a dramaturgia é bem construída, cheia de frases muito fortes. Um espelho na cara da juventude. Apoiada em solilóquios, em que cada um do elenco tem seus momentos solitários de teatro narrativo, a peça constrói seu ritmo à base desses relatos muito sinceros e abertos, tudo tão honesto que o jeito escolhido para começar foi deixar claro que é uma peça de teatro e que todos ali são atores interpretando papéis. Esse jogo franco logo de saída com a plateia é estratégia certeira para conquistar a confiança da juventude, que ainda vai ao teatro muito desconfiada de que nada ali lhe diz respeito.

Nunca antes, em mais de duas décadas de trajetória, a Artesanal havia trabalhado com jovens atores em primeiríssimo contato com a companhia. E, pelo que se vê como resultado artístico, deu muito certo. As escolhas do elenco foram todas acertadíssimas. O conjunto todo é bem expressivo: Bruno Jablonski, Ciro Acioli, Igor Orlando, Isis Pessino, Leonardo Bianchi e Mag Pastori. Talvez Ciro Acioli possa ser destacado, porque abre o espetáculo cantando com uma voz impressionantemente bela e faz de seu personagem – um nerd que todos identificam como o Estranho – um elo consistente de amarração de todas as outras histórias. A canção que abre a peça, aliás, é a mesma que vai encerrá-la, Creep, do Radiohead, um hino aos nerds. É da boca desse nerd que saem frases lapidares sobre a geração atual: “Meu avô foi a Woodstock e tomava ácido, eu tomo ansiolítico. Cada tempo tem a droga que merece.”

Os conflitos que desfilam a nossos olhos são todos muito próximos dos jovens que a gente conhece, nossos filhos, sobrinhos, netos, alunos, vizinhos. Como a ‘gordinha’, que toma remédio para emagrecer, e profere um dos trechos mais impactantes da peça, ao passar mal do estômago durante a balada: “Não aguento mais! Não aguento mais engolir.

Eu tô vomitando a minha gordura. Tô vomitando o que eu acho feio em mim. Tô vomitando aquela roupa que não cabe mais em mim! Aquela que nunca coube! Tô vomitando as minhas inseguranças. Tô vomitando o meu fígado, o meu rim, o meu pâncreas, o meu cérebro. Tô vomitando um câncer que eu tenho medo de ter, um enfarte que eu tenho medo de ter, uma paranoia que eu tenho medo porque tenho! Vomitando Xenical, Amirolida, Atenolol, Sibutramina. Eu vomito tudo, mas eu não vomito o medo? Sai!!! O medo não sai. Saaaaaaai!” Impossível não deixar o teatro com essa pergunta na cabeça: o que queremos vomitar para fora de nossas vidas e não conseguimos por ter medo? Uma grande sacada do texto, que dialoga diretamente com as angústias mais doídas desses jovens.

Há momentos fortíssimos de trabalho de corpo dos atores, como quando imitam tiques nervosos. Expressão corporal a serviço da trama. Trilha e iluminação, como sempre nas peças da Artesanal, também estão afinadíssimas com o tema e seus ‘climas’. Outra inteligência da direção: quase no final, quando você já está conhecendo todos os personagens, eles se perfilam parados na boca de cena, encarando a plateia. Ficam um tempo assim, mudos, só olhando para os rostos na plateia, como se dissessem: “olhem, vejam, somos nós e somos vocês. Essa geração é assim. Eis nosso legado.” Impressionante o efeito incômodo que causa na plateia. Não posso deixar de elogiar também a cena eletrizante em que os personagens gay e negro primeiro se ofendem e se xingam, em clima de catarse, depois se abraçam. Como se o abraço fosse rebalancear as energias um do outro, por serem afinal vítimas das mesmas questões, o preconceito e o bullying.

Não deixe de levar os adolescentes que você tem em casa.

Serviço

Local: Sesc Pinheiros – Auditório (3.º andar)
Endereço: Rua Paes Leme, 195, Pinheiros, São Paulo
Telefone: 11 3095-940
Quando: Sexta (19) e sábado (20), às 20h30
Duração: 70 minutos
Classificação etária: 16 anos
Ingressos: R$ 25,00 (inteira), R$ 12,50 (meia) e R$ 7,50 (comerciários com carteirinha Sesc)