Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 15.08.2018

Para onde vão os brinquedos que esquecemos pela vida?

Não fique de fora do lirismo e da delicadeza de uma peça como Os Lavadores de Histórias, com a Cia. De Achadouros e direção de Tereza Gontijo, inspirada no universo temático de Manoel de Barros

“Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos”. A poesia de Manoel de Barros (1916-2014) tem inspirado muitos espetáculos para crianças nos últimos anos. Felizmente. O poeta mato-grossense falou como poucos sobre ser criança e, sobretudo, brincar.

Os Lavadores de Histórias é um espetáculo que surgiu a partir do verso acima, assim como o nome da companhia que a encena, a Cia. De Achadouros.  A montagem, dirigida por Tereza Gontijo (mineira de Belo Horizonte, palhaça integrante dos Doutores da Alegria e da Cia. Vagalum Tum Tum), tem dramaturgia assinada por Silvia Camossa, concebida em processo colaborativo, a partir das cenas improvisadas pelo grupo em sala de ensaio. É uma atração, antes de mais nada, muito bonita. A plasticidade das cenas encanta do começo ao fim, envolvendo-nos em uma atmosfera lírica e onírica.

Você não vai acreditar na singeleza do enredo. O teatro feito para as famílias está precisando dessa poesia toda. O mundo de hoje precisa dessa delicadeza.  A beleza contida em sutilezas, a graça da imaginação, a intimidade com as pequenas coisas – como diz o grupo no material de divulgação da peça. Isso é muito Manoel de Barros: reencontrar o lirismo contido em cada objeto banal do cotidiano. Para o grupo, o fundamental na peça é fazer o público lembrar de coisas que não deveria ter esquecido, lembrar que brincar junto é fundamental nestes tempos de isolamento. Querem, também, quebrar “as amarras” dos adultos, usando a memória afetiva da infância de cada um. É lindo ler tudo isso no material de divulgação e constatar que, sim, tudo isso está traduzido e sugerido no palco, com muita força e muito talento.

Urucum (Emiliano Favacho), Tom Tom (Mariá Guedes) e Jatobá (Felipe Michelini) são os lavadores de histórias do título da peça. O trio chega de mansinho nos quintais abandonados e recolhe brinquedos e objetos esquecidos e envelhecidos pelo tempo. Com a ajuda do rio da memória, eles lavam cada brinquedo, cada objeto, e, com isso, fazem reviver momentos especiais das infâncias. Vão lavando as coisas que encontram e revelando histórias, fantasias, personagens e brincadeiras. Os três atores foram para as ruas do bairro São Mateus em busca dessas histórias reais da memória afetiva de pessoas comuns (moradores antigos e crianças) – e usaram tudo na peça, com o auxílio da dramaturga e da diretora. Um time de muita sensibilidade.

Um lençol com mancha amarelada de xixi é mote para a história de um menino sonhador que queria voar. Um lenço colorido traz a história da menina que vivia triste até conhecer um menino mágico e seu amor pela música. Um sapato (tênis) velho se transforma em “interfone secreto” para anunciar a missão da primeira criança a pisar na lua. Uma velha escova de cabelos faz as personagens reviverem a história de uma emissora de rádio em que só trabalhavam passarinhos. E assim por diante. As escolhas das histórias reais foram muito felizes. São momentos encantadores, que remetem às infâncias de cada um de nós. Só acho que a radionovela dentro da peça é uma referência pouco imediata para as crianças, mas, enfim, serve para acionar o saudosismo de seus avós – e isso também é válido no teatro infantil, que, felizmente, cada vez mais é feito para todas as idades.

Adoro a cena da velha que é o próprio rio e derrama no palco a água para que se lavem os brinquedos. Gosto também que a peça termine com jeito de festa, em um astral muito agradável e apropriado, condizente com tudo o que se passou em cena. Melhor ainda é a grande sacada de fazer os atores encerrarem o espetáculo transpondo a quarta parede e vindo na direção do público. Olhando bem de perto nos olhos de cada criança, o trio vai exclamando: “Olha, tem uma história aqui. Tem outra ali! E ali!  Nossa, quanta história.” Chega a emocionar. Com isso, os atores apontam que cada um na plateia também tem histórias guardadas dentro de si – e, sozinhas, essas crianças vão lembrar que também já deixaram brinquedos pelo caminho. Tenho certeza que, depois disso tudo, elas chegam em suas casas e olham para seus brinquedos e objetos de outro jeito. O que mais pode desejar o teatro?  Parabéns, Cia. De Achadouros, por serem esses lavadores de almas e por inundarem nossas vidas de poesia e vontade de brincar.

Serviço

Local: Sesc Pinheiros – Auditório (3º andar)
Endereço: Rua Paes Leme, 195, Pinheiros, São Paulo
Telefone: (11) 3095-9400
Capacidade: 98 lugares
Quando:  Domingo, às 15h e às 17h
Duração: 60 min.
Classificação: Livre
Recomendação etária: a partir de 4 anos
Ingressos: Grátis para crianças até 12 anos. R$ 17,00 (inteira). R$ 8,50 (meia). R$ 5,00 (credencial do Sesc)
Temporada: De 15 de julho a 19 de agosto de 2018