Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 08.12.2017
‘Mártir’ provoca a juventude sobre intolerância atual
Dramaturgia explosiva de autor alemão é trunfo da nova montagem da Cia Arthur-Arnaldo, há dez anos especializada em teatro para e sobre jovens
Em momentos de crise social e política, o que se costuma esperar do teatro é que contribua para pensamentos e reflexões, como espelho de nossas mazelas e feridas mais prementes. Vivemos um tempo assim. Redes sociais polarizadas, parente brigando com parente, intolerâncias generalizadas, manipulações maniqueístas, ondas de conservadorismo retrógrado – socorro, parem o mundo que eu quero descer!
Eis que um grupo paulistano, Cia Arthur-Arnaldo, há dez anos especializado em espetáculos prioritariamente voltados para o público jovem, sempre com temáticas relacionadas a essa fase conturbada da adolescência e a descoberta do mundo adulto (DNA, Rolê, Coro dos Maus Alunos, Os Pés Murchos X Os Cabeças de Bagre, Feizbuk, Cidadania, Bate Papo), nos brinda neste final de ano com a montagem de Mártir, texto potente de Marius Von Mayenburg (brilhantemente traduzido por Christine Röhrig), um dos principais nomes do teatro alemão contemporâneo.
Mesmo escrito na Alemanha em 2012, Mártir fala muito sobre o estado de ânimo do Brasil de hoje, e nos acerta na boca do estômago. É teatro que incomoda, faz pensar, irrita, escancara nossa condição de impotência diante de radicalismos altamente periculosos. A sinopse já nos prepara para o que vem no palco:
Benjamim (Taiguara Chagas, ótimo como sempre), um colegial, começa a se interessar por religião e acaba virando um extremista cristão, obcecado pela Bíblia, o que vai influenciar sua relação em casa com a mãe (Ana Andreatta) e na escola com os colegas (sobretudo uma garota – papel de Júlia Novaes – supostamente interessada nele para namorar e um menino ingênuo e deficiente físico, que todos tratam como ‘retardado’ – o expressivo João Paulo Bienemann), além de um casal de professores (Georgina Castro e Tuna Serzedello), que se divide na forma como encarar o menino-problema e acaba envolvendo nisso também o diretor da escola (Carlos Morelli). Até um padre está na história (Edu Guimarães), tão perdido quanto todos os outros. Tudo começa porque Benjamim se recusa a ir à aula de natação do colégio, pois são aulas mistas e isso ofenderia seus princípios religiosos. Tanto ele faz que o diretor decide que as meninas não podem mais frequentar a piscina de biquíni, só com maiôs inteiros. E Benjamim começa a se isolar dos colegas, revoltados com ele.
O texto é ardiloso, explosivo. Vai armando as situações e enredando os personagens em uma série de conotações dúbias, palavras equivocadas e supostas ‘verdades’ absolutas. Quanto mais se fala, mais se confunde. Quanto mais as pessoas se aproximam de Benjamim, mais elas se enredam, sem querer, e se comprometem. O único personagem, ao final, que poderia esclarecer as coisas é justamente o menino que todos consideram bobo e débil. Grande sacada do autor.
A mãe não consegue entender a lógica do filho, faz suposições também erradas, briga com ele em casa, mas na escola age como toda mãe, que não admite que falem mal de seus rebentos. Muito coerente. O diretor da escola tem um discurso autoritário e, ao mesmo tempo, se trai ao assediar constantemente a professora atormentada por não conseguir mais lidar com seu aluno radical, tornando-se ela própria uma radicalista do outro lado da ‘trincheira’.
Enfim, são figuras realmente muito bem construídas pela dramaturgia – e defendidas com bastante talento pelo elenco (Ana Andreatta, Carlos Morelli, Edu Guimarães, Georgina Castro, João Paulo Bienemann, Júlia Novaes, Taiguara Chagas e Tuna Serzedello), um afinado grupo – alguns são atores convidados – que dá conta muito bem das transformações e tormentos por que passam todos os personagens. Ponto para a diretora Soledad Yunge, que tirou o melhor de cada ator e realizou uma encenação limpa, ágil e fluente, que sabiamente valoriza os embates do texto, com seus diálogos cortantes, sem ofuscá-los com truques mirabolantes de encenação. Cenografia, figurinos e iluminação, a cargo do sempre impecável Rafael Souza, contribuem para a objetividade e a funcionalidade, trunfos importantes para o ritmo da montagem.
Altamente recomendável para escolas de ensino médio. Repare nos trechos das aulas de educação sexual (com a professora querendo ensinar os alunos a usar camisinha) e a questão da teoria da evolução de Darwin (a polêmica macacos x religião). São bem escritas e dirigidas, com potencial para debates com os alunos em classe. Mártir merece toda a atenção dos educadores, professores e coordenadores de escola.
Serviço
Local: Oficina Cultural Oswald de Andrade
Endereço: Rua Três Rios, 363 – Bom Retiro, São Paulo
Telefone: (11) 3222-2662
Lotação: 50 lugares
Quando: Às quintas e sextas-feiras, às 20h, e aos sábados, às 18h
Ingressos: Grátis, com distribuição de convites uma hora antes de cada sessão
Duração: 80 minutos
Classificação: 14 anos
Temporada: De 23 de novembro a 16 de dezembro de 2017