1. Descobrindo a criança
É hoje para nós um espanto pensar que, ao longo de séculos e séculos, na chamada “civilização ocidental cristã” a criança simplesmente… não existia. Que até mesmo príncipes e princesas eram in-fantes, isto é, aqueles que não falam. Que só no século 17 (1657) o educador Comenius viria a afirmar que a criança não é um adulto em miniatura. Mas que, no século 18, Pestalozzi (1774), Tiedman (1787) e Froebel (1826) foram ainda vozes isoladas, introduzindo aos estudos que só surgiriam com força do século 19 em diante.
Em compensação se, contraditoriamente, alguém chegou a considerar o século 20 “o século da criança”, foi exatamente pela consciência crescente de ser a infância uma etapa fundamental no desenvolvimento da personalidade. A ponto de ora soar-nos como algo óbvio que essa etapa tem características próprias e específicas, e que seu processo de desenvolvimento passa por transformações e diferenciações profundas, que é indispensável conhecer para se chegar ao conhecimento da personalidade adulta. Que para chegar a ser um adulto é preciso “crescer bem”: a palavra adolescere, que designa o adolescente em crescimento, deriva de alescere = crescer, que por sua vez vem de alere = alimentar; adulto é seu particípio passado e mantém em sua raiz o altum, que é o bem crescido, bem alimentado; assim como alumnus era o escravo nascido e crescido em casa do patrão, e por ele devidamente alimentado. Em todas as palavras a ideia de que o crescimento é “alimentado”.
Como a psicologia e a pedagogia comprovam, para este “crescer bem” e tornar-se um adulto bem ajustado à sociedade, são fundamentais as experiências com a família (o caráter dos pais, as atitudes em relação a eles, as relações com os irmãos, as áreas de conflitos porventura existentes), as experiências infantis (os afetos e sentimentos, como medo, raiva, desejos, as memórias, as experiências traumáticas como acidentes ou doenças graves, as medidas disciplinares usadas pelos pais, as oportunidades ou “provocações” que o meio propicia), a reação à escola (companheirismo, liderança, relações com os colegas e professores).
Ou seja, é a experiência vivida que traz à tona as modificações sofridas no processo de crescimento: cada ser humano tem uma história individual e única, que tem a ver não só com sua herança biológica e psíquica, com sua experiência (pessoal), com as exigências ou oportunidades que seu ambiente lhe proporciona, com os laços ou re-laç-ões a que se vincula, para gerar uma subjetividade que organiza em um todo próprio o conhecimento adquirido, e a capacidade de escolher, na qual exercita ou desenvolve sua vontade e sua liberdade, em uma síntese vital. Síntese que vem a formar esse “microcosmo”, essa criatura infinitamente complexa e rica, que nos surpreende, encanta e assusta, por ser capaz tanto das maiores grandezas quanto das piores mesquinharias, essa criatura que faria Sófocles exclamar, fascinado: “Na natureza há muitas maravilhas, mas a maior de todas é o ser humano”.
Partindo desse fato psicológico da criança – o de que tudo que ela vê, ouve, vive e sente é por ela vivido como uma experiência e é o conjunto dessas experiências que dá as bases de seu enriquecimento potencial ( ex-per-ire, o que se tira (ex) do caminho (por) onde se vai) – cabe, então, examinar as fontes de onde elas extraem material para “organizar e interpretar suas experiências”.
Assim, cada uma das “fases” da vida humana levou a uma classificação ou divisão artificial, estabelecida para facilitar seu estudo e conhecimento, possibilitando ver que cada uma tem características próprias e todo um significado. Subdividindo-se, inclusive, a fase infantil em períodos marcados por significativas mudanças, de que nos damos conta observando a diversificação crescente nos comportamentos, respostas, gestos, expressões, linguagem, reações a estímulos externos e internos, de nossas crianças em sua atividade, em seu brincar. Sem esquecer que descobrir quem sou eu? exige um des-envolvimento em relação ao contexto em que cada um está inserido.
2. A criança se descobrindo – Um sentido com vários significados
Apesar de tudo isso ser hoje de conhecimento geral, poucos adultos ainda se dão conta da seriedade e importância do brincar infantil.
A palavra brincar é curiosa: tanto remete a springan, que é pular, ou a blinkan, gracejar, como a vinculum, laço – que daria o brinco, o enfeite pendurado na orelha que gerou o termo brinquedo. No brincar infantil vamos assim encontrar tanto o prazer e a alegria que a criança nele encontra ou manifesta, quanto os laços ou re-laç-ões, os vínculos que assim vai estabelecendo com seu ambiente.
Porém, é mais que isso: o que vai assim experimentando é sua forma de perceber o entorno e nele se situar. Perceber: o visível, que se percebe com os olhos; o sensível, que se percebe pelos sentidos. Mas perceber não é ver ou sentir um amontoado de impressões que trariam com elas lembranças ou associações capazes de completá-las. É ver surgir, de uma constelação de dados, um sentido. Quando a criança começa a passear seu olhar inquieto e indagador pelo mundo dos objetos em torno, pelas pessoas e coisas que acercam, é sua percepção que vai informar sua experiência de situar-se em meio a esses objetos e ter uma primeira resposta ao quem sou eu? com que busca se identificar. O primeiro momento é, portanto, o do olhar, do ad-mirar (olhar para), com encanto ou com espanto, tudo por des-cobrir, tanto um pequeno tatuí na areia da praia quanto a fila de formigas que passa carregando pedacinhos do folhas. O olhar desvelador provocando apalavra, termo cuja origem, a parábola, fala dessa matizada expressão em que o real e o imaginário se con-fundem.
Quem vê a imobilidade fascinada e o olhar atento de uma criança de 2 anos diante da TV, entende que busca ver, observar, perceber cada figura aí mostrada, seus contornos e limites, sua postura, sua posição dentro do contexto. É de sua percepção que cada uma vai surgir como unidade independente, separada, no campo ou contexto em que se insere, e definir se esse contexto vai exercer muita ou pouca influência na sua percepção dentro dele. É visível a alegria com que a criança aponta e nomeia as figuras – “Olha! O Barney!” “É o Doc!” “Ali, a Lola!” Porque perceber não é ver ou sentir um amontoado de impressões que trariam com elas lembranças ou associações capazes de completá-las. O cotidiano com uma criança revela a cada instante esse perceber / descobrir / conhecer / re-conhecer: quem ainda não presenciou, por ex., o contentamento com ela pega um retrato da mãe e nele percebe, e re-conhece: “Olha! É você!”. A palavra expressando a ligação do olhar, que é o de todo animal vivo, com o perceber que é já um ato gerador de consciência. Ou seja, a função essencial dessa percepção é inaugurar ou fundamentar ou modificar um conhecimento: perceber (percipio < capio = captar, capturar, agarrar, apreender), compreender (apreender com o percebido); aqui o sentido primeiro do conhecer (cognoscere – nascer com nascer com o que se conhece, deixar-se trans-forma-r pela diferença). Não é sem razão que os sentidos (ver, ouvir, tocar) têm a mesma raiz de sentido ou significado do que é visto, e também desentido, o rumo ou direção da ação por ele motivada. Também não é por acaso que vão surgindo nas crianças os sentimentos estéticos: sua satisfação em ouvir música, histórias, em desenhar, colorir ou pintar, esculpir com massinhas etc. Aesthesia, cabe lembrar, é sentir o mundo com sentido, em sua possível beleza e harmonia.
Situar-se que é também identificar-se, perceber sua identidade, um responder à pergunta fundamental, quem sou eu? Sem esquecer, como assinalamos acima, que descobrir quem sou eu exige igualmente um des-envolvimento em relação ao contexto em que cada um está inserido.
Porém, fatores de personalidade associados a diferenças individuais de percepção assinalam um dado que é importante para todos os que lidam com a criança: seu desempenho perceptual vai variar marcadamente segundo a natureza das tarefas que são solicitadas a realizar. Para a realização das tarefas de percepção são relevantes:
1. A natureza da relação individual com o ambiente, nele incluindo as outras pessoas. É a mais discriminadora. Atitudes e comportamentos envolvidos, ou desenvolvidos, vão apresentar duas tendências opostas: a passividade, ou incapacidade de agir independentemente do apoio do ambiente, falta de capacidade de iniciativa, facilidade em submeter-se a forças de autoridade; ou a atividade, capacidade de agir com apoio relativamente pequeno do meio ambiente, capacidade de iniciativa e organização, o enfrentamento de obstáculos e desafios, a combatividade em relação a forças sociais ou ambientais dominadoras. O simples e repetitivo ato de pular corda pode ser prazeroso ou gratificante para a criança por ver que, a cada salto, consegue superar o obstáculo que poderia fazê-la cair. Por que são lhe tão atraentes histórias como O Pequeno Polegar, desenhos animados como Tom e Jerry, que repetem infinitamente uma situação básica: a de um ser pequenino e indefeso que consegue iludir e vencer outro muito maior que o persegue ou tenta dominar? Ou de “heróis” que são seres menores e socialmente insignificantes, mas que, em dado momento, serão capazes de vencer “gigantes” e “dragões” – como Davi, com seu brinquedo, a atiradeira, vencendo o gigante Golias?
2. O modo como vão lidar com os próprios impulsos, e as relações com os que a cercam, sobretudo pais e irmãos. Também com duas tendências opostas: os que dependerem de estímulo externo para agir quase sempre tenderão também à falta de consciência da própria vida interior, ao medo de seus impulsos sexuais e agressivos, a pouco controle sobre eles. Junto a isso, a ansiedade e dificuldade de regulá-la. Nos independentes, ao contrário, percepção ativa, levando à consciência da própria vida interior, à tendência a aceitar a existência de impulsos sexuais e agressivos, e à capacidade de descarga, direcionamento e controle dos mesmos.
Um simples pique-e-esconde, por exemplo, exige da criança que se esconde a percepção de locais onde possa ser difícil ser encontrada, a forma de escapar ao olhar e busca do outro, que, por sua vez, terá que ser esperto e astuto para chegar a sua descoberta. O pique-cola já será uma curiosa variante: cada um não pode se deixar tocar pelo perseguidor que, se conseguir tocá-lo, que tem o poder de imobilizá-lo, congelá-lo em uma posição de estátua da qual só poderá sair se “libertado” por um terceiro que engane o perseguidor. Ajuda externa que, no caso do pique-parede, é dada pela parede de apoio, que lhe dará segurança e imunidade contra o toque imobilizador.
Nas histórias ouvidas, a criança vai percebendo que “herói” é aquele que enfrenta, vai adiante, ao encontro de seu destino, auxiliado por figuras benfazejas, que podem ser uma fada (a palavra fada se liga a fatum, o destino), ou um Grilo falante, ou um gênio… E que as bruxas são as que tentam impedi-lo: a palavra bruxa remete ao brush, que é o correr pelo mato, fugir, escapar, e seu “feitiço” ou bruxaria maior consiste exatamente em imobilizar, paralisar, petrificar em estátua, levando a passividade ao auge; ou em fazê-lo regredir à condição do animal, que nasce, cresce e morre subordinado à espécie, sem condições de falar, e de escolher o que quer ser.
3. A concepção que têm de si mesmos, igualmente com duas tendências contrárias: os dependentes do meio terão baixa estima, dificuldade de se aceitar, imagem indiferenciada e um tanto primitiva do próprio corpo, (“Eu sou meu corpo”, lembra Merleau-Ponty), sentir-se-ão “patinhos feios” vivendo com dificuldade seu contato com os outros. Os que têm desempenho independente, e progressivamente analítico ou crítico, terão atividade e independência em relação ao meio, comunicação mais próxima com os outros, melhor controle dos próprios impulsos, autoestima elevada, imagem diferenciada e amadurecida do próprio corpo como ser sexuado, como expressão e fala.
No jogo da amarelinha, por exemplo, a gratificação com a própria capacidade de, aos saltos, de casa em casa, com os dois pés ou equilibrando-se em um só, ultrapassar a casa em que cai uma “pedra” ou obstáculo, e seguir pelo caminho que ora se abre, ora se fecha, até chegar ao “céu”. E de lá voltar, re-animado, agora já capaz de “remover” a pedra caída e retornar ao ponto de partida. Também nas histórias ouvidas a criança verá que anões e duendes podem ser pequenos, mas sabem ser laboriosos ou até mágicos.
Daí a posição ambivalente da criança no brinquedo, que ora suscita sua atividade, levando-a a assumir papéis, inventar estratégias para as situações criadas, enfrentar obstáculos, resolver problemas, correndo todos os riscos, ora a se manter em passividade, brincando de ser ela própria o brinquedo, o joguete do jogo, tal como se sente quando os acontecimentos estão acima ou fora do que se sente capaz. O ensaio e erro atentos, a experimentação de uma criança à frente de um quebra-cabeças de peças soltas e isoladas nas quais sua percepção terá que recompor uma figura, um quadro, uma paisagem; ou a sua concentração perceptiva diante de um vídeo game em cujas imagens moventes deverá perceber o momento em que deverá interferir com o movimento de sua mão para vencer obstáculos ou encontrar caminhos, ilusram bem que a percepção é um captar, capturar, agarrar ou apreender.
Nela já se esboçam essas duas manifestações opostas da atividade humana: a espontaneidade, inquieta, motivadora, ativa, e a docilidade, a obediência, a passividade. Sem a espontaneidade que leva à reação pessoal a criança será incapaz de inventar, de descobrir, de aprender – inclusive a falar, descobrindo a ligação entre o som/ a palavra e as coisas que designam, passando à tendência de agir por si mesma, de imitar já de maneira própria. O ser humano é “o ser da linguagem” exatamente porque o próprio fato de aprender uma língua vem de não se contentar com a repetição mecânica: é um querer dizer, com palavras próprias, por analogia com as palavras que já sabe. Pela docilidade, ele tende a imitar os sons da linguagem, mas esta imitação não é ainda uso da palavra, e sim ecolalia, mera repetição automática das palavras, em que criança simplesmente “ecoa” o que ouve. Passa a ser linguagem quando ou como ex-pressão do que sente ou pensa e quer manifestar. Mesmo quando “não consegue entender ainda/ qual é melhor: se é isto ou aquilo”, porque “ou se tem chuva e não se tem sol/ ou se tem sol e não se tem chuva” e não se pode estar ao mesmo tempo em dois lugares” (Cecília Meirelles)
Os companheiros são instrumentos para essa afirmação da personalidade. O dia de “Alan” pode ser um momento de difícil adaptação à escola, à professora e aos companheiros (Wladimir Capella). Mas, estimulada por seus sentimentos e afetos, a criança busca sempre companheiros e tem prazer em estar com eles – mesmo quando, para afirmar o próprio eu, tente ser o protagonista do jogo. Pela criatividade, que já prenuncia a via intelectual futura, a criança é levada à imitação, mas também à contestação, à oposição ao que outros fazem ou dizem. Para a criança, brincar é uma atividade com fim em si mesma. Mas não é de modo algum uma ação realizada mecanicamente, é uma atividade espontânea, que surge com o nascimento de necessidades ou forças interiores, de exigências vitais instintivas, de suas tendências profundas: as atividades motoras, a curiosidade, a tendência a descobrir, a conhecer, o instinto de imitação, o instinto combativo, a agressividade, ou seja, é uma manifestação de seus instintos, de forças naturais.
Mas, se o ponto de partida é espontâneo, a forma é ambiental: a criança brinca imitando o ambiente humano que a cerca, ou o animal que vê, ou o artista que viu na tv, etc. tomando deles as formas da atividade que imita. Portanto, brincando, a criança se adapta ao mundo físico e psíquico em torno. O que se evidencia, por exemplo, no caso de crianças que vivem em tempos e locais de guerras e conflitos, cujo brincar é marcado pela ameaça com armas e agressões. Ou nos desenhos infantis: os primeiros rabiscos que já tentam configurar uma bola-cabeça humana na qual espetam traços que são o tronco e os membros vão dando lugar a figuras mais elaboradas, de casas, navios, arco-íris (símbolos femininos) inseridos em paisagem-ambiente com árvores, flores, sol e nuvens, e figuras humanas coloridas e enfeitadas. Desenhos que veem exibir, felizes, e que muitas vezes são dados de “presente” a pessoas próximas – pais, avós, irmãos, coleguinhas, professora – com um recado escrito “Eu gosto de você”…
Porém, ao imitar, a criança escolhe espontaneamente o que mais se casa com sua natureza, sexo, idade, temperamento, tendências instintivas. Um olhar atento ao brincar infantil mostraria como esses aspectos vão se mostrar relevantes, como informam sobre a criança, e, sobretudo, como vão formar e informar sua vida futura, seus comportamentos, sua personalidade em todos os níveis: emocional, social, intelectual, locomotor, e estimular ou inibir seus talentos para a percepção, a linguagem, a socialização, a comunicação.
Fazer o jogo ou ser joguete?
Essas características de personalidade vão se tornando ainda mais evidentes no “faz-de-conta”, no jogo infantil. Qual o sentido e significado mais profundo do jogo infantil? O que representa para a criança que o cria?
A primeira de suas características é que são a fabulação de uma relação: a criança suspende a rotina, o princípio da realidade sob o qual a convidam a pautar seus comportamentos no cotidiano, para criar um “faz-de-conta” em que joga, representa, brinca, com a soltura e alegria que faz dos palhaços figuras emblemáticas, abrindo espaço ao irreal, ao imaginário, ao sonho, à troca de papéis, ao jogo de possíveis em que tudo pode acontecer, e expressando, nesse possível, seu poder ou mesmo sua onipotência, seu desejo de, como Aladim, por um golpe da sorte encontrar a lâmpada que lhe trará um gênio capaz de satisfazer todos os seus desejos. E pode ser muito divertido quando a situação lhe dá o inesperado poder de controle do jogo, de ser dono de um “casaco encantado” que vestido no outro fará dele um joguete, obrigado a dar pulos e pulos seguidos, sem poder mais parar… (Lúcia Benedetti)
Mas, por obra da fabulação, podem também vir a ser elaborados em um jogo de contrários, que invertem o sentido habitual das relações: os brinquedos, habitualmente joguetes, rebelando-se com os maus tratos que lhes dá a menina, invertem sua condição e contra ela se revoltam. (Pernambuco de Oliveira). Um diabo pode encontrar-se subitamente no espaço, perdido e desorientado, porque não consegue mais descobrir uma maldade que os homens ainda não tenham inventado e até dele querem fazer um joguete. (Maria Helena Kühner)
A realização de necessidades e desejos seria outra característica importante dos jogos infantis, cujas motivações são regidas pelo princípio do prazer, realização obtida não na satisfação alucinatória, mas sim na lúdica ou ritual. (A palavra jogo tem a mesma raiz de joie ou gioia, a alegria nele experimentada). Esses e outros desejos, como a vontade de ser reconhecido e valorizado, ou um dos desejos humanos mais profundos – o de ser amado, desejado, e não rejeitado, vão formando o pano de fundo das brincadeiras. Por isso se sente tão próxima de Flicts, a cor que busca junto das outras cores um lugar para se espalhar e colorir e tem todo um caminho a percorrer até descobri-lo na Lua, que é toda dessa cor (Ziraldo).
Daí sua seriedade: a criança se instala no lúdico, no irreal, e produz algo que não espelha a realidade externa, mas expressa uma outra realidade, interna, profunda, que é sua maneira de sentir e viver a realidade em que está inserida. Por isso o “faz-de conta”, que nela surge é real para aqueles que o vivem. (Aliás, será este o paradoxo do jogo teatral, que “finge” ou “mente” para fazer ver uma verdade maior, que assume a máscara de personagens para des-velar o eu mais profundo dos próprios seres humanos). A brincadeira é um fingimento, um “faz-de-conta” que se situa no parecer e não no ser, mas ela tem tal carga e força que o brincante entra no jogo e é capaz até de “ver” as figuras imaginárias que estão no jogo…
Se tudo é possível, podem aí se projetar – e se projetam – seus sonhos, esperanças, desejos, expectativas, ansiedades. Criam eles uma situação que exige um conhecimento do mundo externo. Durante um tempo as ações serão apenas repetitivas; mas, em dado momento, uma nova linha de investigação, um argumento novo pode surgir e um novo passo na compreensão será dado por alguma ou todas as crianças que estão tomando parte no jogo. Com ajuda de Gustavo Lápis, seu desenho e de Clave Helena, sua música, e de um artesão que conta histórias, duas crianças podem súbito perceber que todas as coisas têm uma história (Enéas Lour / Fátima Otiz).
O “faz-de-conta” estimula todas as formas do pensamento “como se” – de que o imaginário popular e seus “folguedos” são também um exemplo significativo. Pois tais características serão sua estrutura permanente, pela qual se instala todo o jogo de possíveis do imaginário e se projetam seus desejos – inclusive o desejo da troca de papéis, dando vez e voz, lugar central na cena àqueles que no dia a dia da realidade estão sempre relegados a segundo plano. Um campeonato de pombos, à maneira humana, pode ser um meio de descobrir com carinho os folguedos populares adultos, mas também de ver com um olhar crítico o risível comportamento de outras figuras humanas envolvidas na competição. (Raimundo Alberto). Não é também de admirar, portanto, que tantos contos folclóricos sejam a base de elaboração de outros textos para crianças. O teatro de formas animadas (bonecos) de Aglaé Alencar é um bom exemplo.
Daí também a ambivalência de sua ligação com o real: o real “desrealizado” e ordenado segundo o princípio do prazer permite a expansão do imaginário, e estimula suas formas de pensamento, passando tudo a ser visto nesse “como se”… A partir daí, por exemplo, em vez de uma rígida e detestada professora de piano, o próprio piano pode vir a tornar-se personagem e fazer a criança sentir que a música pode ser um meio de descobrir o mundo e realizar seus sonhos através da imaginação e da criatividade (Tim Rescala).
Daí ainda a ambivalência de seu sentido para o brincante: a brincadeira é uma aprendizagem da realidade, uma maneira possível de organizar ou elaborar suas experiências para situar-se dentro dessa realidade. Situar-se que é também identificar-se, perceber sua identidade, responder à pergunta fundamental quem sou eu? Ou obter uma valorização, um re-conhecimento, ao mostrar quem é. Sem que esquecer que é também um des-envolvimento do contexto em que está inserida. Pois este situar-se é também uma escolha: em vez do Dr. Sabe-Nada, rico e ambicioso, muito mais atraente lhe será o Tio Fábio, que sabe consertar brinquedo quebrado, sonho amassado e ilusão perdida, e que por esses dons ela quer manter junto de si. (Stella Leonardos)
Brincadeira é coisa séria
O que nos leva a considerar relevantes todos os aspectos que nele se configuram: os detalhes do comportamento dos personagens; o setting (ambiente, lugar, tempo, ritmo etc.), altamente significativo; a situação como um todo, que é o que afeta a criança, e não a presença de um estímulo isolado; a fala e as origens emocionais do impulso que a provoca; o contexto, as relações afetivas ou competitivas com os demais; a segurança ou insegurança mostradas, a aprovação ou desaprovação dos adultos, a culpa ou auto-acusação de quem maltrata o outro etc; os objetos materiais, as atividades corporais, que dizem o que estão fazendo ou sentindo; a continuidade – que caracteriza todos os processos do desenvolvimento e é instrumento concreto do conhecimento, pois os processos comportamentais e mentais não vêm prontos, nem emergem de repente, são itens de um desenvolvimento progressivo, de um processo de crescimento; enfim, as fantasias que neles expressam, de forma clara e dramática, situações de sua vida e com riqueza de detalhes: seus desejos, seus impulsos agressivos, seus medos, sua raiva, e outras emoções.
Neles a aprendizagem, o ensaio e erro, a errância sempre possível que faz a sabedoria popular afirmar, ao longo de séculos, que errar é humano (no duplo sentido do termo). Errância que faz muitas vezes o “herói” viajar, vaguear, buscar incerto e “errante” o caminho antes de chegar a seu destino e ao sucesso. Ou um barquinho ter que fazer uma longa viagem cheia de incidentes e descobertas até entrar no mar da vida, em que cada um é o barquinho de sua própria viagem (Sylvia Orthof). Viagem em que pode, no entanto, estar ameaçado de naufrágio se deixar-se levar pela corrente e um marinheiro não vier lhe ensinar a lançar âncora e parar, se necessário, junto aos outros e ao amor (Ilo Krugli). Ou erro, que faz com que a palavra ludere, o lúdico que designa esse brincar infantil, seja também a raiz de in-ludere, iludir, marcando a busca de negar a ilusão que induz ao engano. Em João e Maria, obrigados a buscar sozinhos seu caminho na floresta, a primeira
Tentativa, de conseguir marcar o caminho de volta a casa com miolo de pão, é uma ilusão, pois não contam com os pássaros que vêm comê-los; mas, aprendendo com o erro, iludirão igualmente a bruxa que vem examinar seu dedo para ver se já estão gordinhos, apresentando-lhe um graveto no lugar. A ilusão engana exatamente porque se faz passar por uma percepção autêntica, na qual a significação nasce do sensível: o sentido recobre exatamente o sensível, se articula ou se pronuncia nele.
3. No labirinto, nos ares, ou no fundo do oceano
Mas o jogo ou brinquedo infantil está intimamente ligado à fantasia – que é a evocação espontânea de representações mais ou menos unidas entre si e sem conexão lógica, flutuantes, inventadas. Se a percepção trabalha com contornos e limites, eles se tornam fluidos e indefinidos por obra das fantasias. Não é a partir de situações concretas ou com experiências vividas que os grandes sonhadores – e o termo vale tanto para o artista quanto para o cientista e o inventor – se interrogam, inclusive para indagar “de onde viemos?”. Einstein, o cientista, ao contar “como vê o mundo” diz que o que o provocou foi “o mistério do cosmos”. Cecília Meirelles, a poeta, também pergunta: “A flor com que a menina sonha/ está no sonho/ ou na fronha?” Pois sabe apenas que “quem sobe nos ares não fica no chão /quem fica no chão não sobe nos ares”. É um astro-físico que indica às crianças como ultrapassar o mundo dos homens sem rosto nem corpo, atingidos por um feitiço que deixou sua vida sem destino, e ouvir o canto do oceano que as levará a encontrar, em seu fundo, um tesouro. (Osvaldo Gabrieli) Mas se, como diz Nietzsche, o filósofo, “a estrutura de nossa alma é feita à imagem do labirinto”, para encontrar seu sonhado cavalo alado um pequeno engraxate tem que entrar num labirinto para, só ao fim de muitas batalhas, encontrar o cavalo e a si mesmo (Ilo Krugli).
Dos dicionários, expressando a visão do senso comum, já surge a imediata ligação da fantasia com a “imaginação ou obra sua”; mas também se assinala sua conotação de “capricho, extravagância” (…) , embora – o que é importante – se destaque igualmente suas possibilidades criativas, ao torná-la definição da “composição musical ao arbítrio do artista, ou o quadro em que o pintor deixa de lado as regras para seguir sua imaginação”.
Em uma lógica binária e pobre as fantasias são muitas vezes opostas à “realidade”, aos “fatos”, a uma pretensa e ilusória “objetividade”. Os “adultos” que só fisicamente cresceram não conseguem entender que uma Menina possa montar na cacunda do Vento e sair pelos ares; têm que buscar “explicações” para esse “rapto” falando em polícia, drogas, cartas em código, chefes de bando a serem presos, tudo que sua sensibilidade atrofiada e os valores dogmáticos e convencionais das regras sociais estabelecem. Mas será tudo inútil, pois, como sabemos, não adianta querer prender o Vento… (Maria Clara Machado)
Esse devaneio, esse “sonhar acordado”, essa “ficção” sem regras ou normas a que chamamos de “fantasias” nascem do trabalho de elaboração interna do indivíduo, são o conteúdo primeiro dos processos mentais inconscientes, o equivalente ou expressão mental de um instinto. Na vida íntima da galinha Laura, em meio à rotina diária de seu cotidiano com o galo, as frangas gêmeas e a galinha carijó, tanto pode nascer um novo pintinho quanto ela ser visitada por Xext, um personagem vindo de Júpiter (Clarice Lispector). Ou o cotidiano de meninos de rua pode correr paralelo ao de um amor impossível entre um feioso índio e sua cruel e bela Colom (Wladimir Capella).
O inconsciente não é um consciente recalcado, é uma natureza primeira. Daí sua linguagem livre, solta, sem “censuras”. Todos os processos mentais se originam no inconsciente e só em determinadas condições se tornam depois conscientes. Representam as finalidades instintivas em relação aos objetos em torno, são, em primeira instância, representações psíquicas de desejos e impulsos libidinais ou destrutivos que serão transpostos a formas socialmente aceitáveis, entre as quais sua sublimação na arte. As fantasias de incorporação, de devorar ou engolir objetos amados (o seio materno), odiados ou temidos, pessoas ou parte delas (a vagina dentada de alguns mitos primitivos, o lobo voraz das histórias, que pode também ser visto como “o homem, lobo do homem”), estão entre as mais profundas fantasias inconscientes, como representação psíquica de impulsos orais. Do mesmo modo, expressões sociais desvelam o potencial das fantasias: as atitudes das pessoas em relação a coisas como tempo, dinheiro e posses, quanto a ser atrasado ou pontual, a dar ou receber, a liderar ou a seguir, a querer ser o centro das atenções ou alegrar-se com as realizações dos outros, etc. etc. estão relacionadas a todo um conjunto específico de variadas fantasias. É o que Alice logo descobre assim que se interna pelo “país das maravilhas”…
As fantasias bem cedo se elaboram em defesas, bem como em realização de desejos, que podem ser bons ou maus, despertando ansiedades, e transformando os instintos e impulsos em linguagem, verbal (palavras) e/ou visual (imagens). Podem estar ligadas a elementos nascidos da experiência vivida – um dado sensorial, um objeto, um movimento, uma palavra – ganhando novas dimensões ao serem transpostos para o plano simbólico. De uma imagem isolada pode nascer um universo. Um cavalinho pode ser azul, um mendigo pode ser Deus, e um menino perseverante pode vir a encontrar realmente seu cavalinho azul se conseguir ultrapassar os obstáculos que surgem em seu caminho (Maria Clara Machado). O Lenço Azulzinha pode ser levado pelo vento, e um Papel pode ser queimado; mas atores e outros unindo-se, o Papel será reconstruído e outros lenços a eles se juntarão para derrotar a tirania de um Dragão (Ilo Krugli).
A adaptação à realidade e a capacidade de pensá-la exigirão o concurso de fantasias inconscientes correlatas. Já tem sido bastante enfatizado (a lembrar Bruno Bettelheim, Marie Von Franz, Clarisse Pinkola Estés e outros mais) a importância dos contos de fadas, e assinalado que é “a perplexidade existencial’ da criança que se reflete em sua fabulação: “Para dominar os problemas psicológicos do crescimento – superar decepções narcisistas, dilemas edípicos, rivalidades fraternas, ser capaz de abandonar dependências infantis para obter um sentimento de individualidade e de auto-valorização, e um sentido de obrigação moral – a criança precisa entender o que está se passando dentro do seu eu inconsciente. Ela pode atingir essa compreensão e com isso a habilidade de lidar com essas coisas não através da compreensão racional da natureza e conteúdo de seu inconsciente, mas familiarizando-se com ele através de fantasias e devaneios prolongados, ruminando, reorganizando e fantasiando sobre elementos adequados de uma história que responda a pressões inconscientes. “Com isso a criança adequa o conteúdo inconsciente às fantasias inconscientes, o que a capacita a lidar com esse conteúdo”.
Porém a fantasia é criadora, inventora, e por isso vai muito além. O balão do sonho ao cair no mar da vida pode até sentir-se “aprisionado”, pois seu desejo é ir às estrelas (Odylo Costa Filho). Uma Andorinha pode tornar-se narradora e juntar na história de Pé-de-Pilão a Fada Mascarada, o Macaco, o Pato e a Cobra (Mário Quintana). Assim como um menino pode montar em sua pipa e, guiado por uma Canarinha, percorrer o espaço e aí encontrar as mais diferentes figuras de seu imaginário (Sérgio Fonta).
Tal como o sonho, as fantasias têm um caráter de irrealidade, de imprecisão, de flutuação: é por “detrás das nuvens” flutuantes, soltas no espaço, e do que está além do morro que limita seu olhar, que “o menino” (Carlos Augusto Nazareth) imagina poder vir a des-cobrir algo novo. Em comum têm ambos a interioridade da origem. Mas a fantasia em estado de vigília é feita de nossos desejos, nossas aspirações, de tudo que gostaríamos que fosse realidade. Mais que o ambiente em torno, ou a sociedade, na fantasia, pela imaginação, com o devaneio, a alma descobre um mundo, o mundo em que gostaria de viver, onde viver vale a pena, onde a vida é digna de se viver. Por alguns de seu traços, a infância dura a vida inteira, e é ela que anima amplos setores da vida adulta. “A infância é o poço do ser… a água perdida no fundo das eras…“, na bela expressão de Bachelard, em seu fundo se encontra a água perdida nos fundo das terras. O devaneio passa por cima das relações cotidianas, das situações sociais, para ligar a situações cósmicas. Somos, então, convidados a compreender o homem não apenas a partir de sua inclusão no mundo, mas também seguindo seus impulsos de uma idealização que trabalha o próprio mundo. Na criança, tal como no adulto criador em que ela se mantém viva, o devaneio não é impulso de fuga, pelo contrário, é desejo de alçar vôo e/ou de mergulhar nas profundidades. Para ir em busca do Sol, que tem todas as cores juntas, e assim poder escolher sua própria cor, uma Menina tem que atravessar os reinos do ar, do fogo, da terra e das águas com seus diferentes habitantes e suas escolhas de vida. E descobrir que, para ter uma “cor” / identidade e ter contato com essa energia primeira, tem que estar re-ligada à natureza e aos demais seres humanos (Maria Helena Kühner).
Na criança menor, fantasia e realidade se identificam, ela não distingue a fantasia da realidade, não se dá conta de que não correspondem à realidade, porque só vive a própria vida no momento presente, submersa nele, e “realidade” é o que ela está vivendo. Um fragmento da realidade – um pedaço de pau, um papel, um objeto, pode levar a uma construção fantástica, ser um sapato, um cavalo, uma cegonha, ou mesmo um homem, porque a criança ainda não capta relações de semelhança, não sabe comparar – operações que nascem de processo psíquico superior, mais ou menos aos 6 anos. Também na representação fantasiosa as figuras se sucedem em grande velocidade – sendo, pois, importante distinguir que estímulo sensorial as produz. Um psicanalista em recente entrevista conta que, mais que o He-Man, o Superman ou o Batman, quem ele realmente temia era o “Malamen”, ameaçante figura sem rosto que surgia em sua imaginação quando, na missa a que ia com os pais, todos na igreja rezavam o Padre-Nosso, pedindo, em altos brados, “… mas livrai-nos do mal-amén”.
Porém as fantasias estabelecem um elo operacional entre instintos e mecanismos do ego: a variedade de mecanismos do ego pode ser vista como nascida de diferentes tipos de fantasia. A projeção e a identificação são suas bases: Pluft e Mirabel de início projetam um no outro o próprio medo, mas é sua identificação pelo medo que vai torná-los amigos e parceiros contra o pirata mau (Maria Clara Machado). Seduzido pelas aventuras do capitão Tormenta com seu avião, o menino busca também ter um avião, com o qual tanto vai à China e à África quanto à Lua, onde tudo é ao contrário (Érico Veríssimo).
No entanto, não é com o que alguém já chamou de “fábulações fósseis” ou “fósseis de fábulas” que se aviva a imaginação da criança. Menos ainda reduzindo uma história a um fio ou até mesmo a um fiapo condutor que esvazia seu sentido original e mais fundo – como é o caso de espetáculos que nem deveriam ser rotulados de “teatro” dada a ignorância que demonstram do real significado das histórias ou contos de fada que encenam, ou por seu oportunismo em aproveitar filmes em moda e reapresentá-los em versão esfarrapada e descosida, ou por se limitarem a pular, fazer gracinhas e caretas, dar encontrões, esquecendo o jogo de relações que desvelariam ao criar na cena relações ou laços entre os personagens etc.etc. Para indagar da validade do que está sendo oferecido à criança, após e além tudo que foi acima expresso, uma pergunta bastará: o que podem fazer nossas crianças com aquilo que lhes está sendo oferecido?
Para entrar no “era uma vez” que suspende tempo e espaço – e que são tantas e tantas ezes que por isso nossa história nunca pára de contar – é preciso ser sério como uma criança sonhadora. A fantasia das histórias não entretém apenas: encanta. Para redescobrir sua linguagem é preciso manter viva a criança que ad-mira, com seu espanto e encanto, não se deter nos limites da percepção, mas ampliá-la com essa admiração. A vida animada apenas pela função do real é uma vida fragmentada e fragmentadora, em nós e fora de nós: ela nos atira para fora de nós mesmos, para fora de todas as coisas. O olho que sonha não vê, apenas: vê com uma outra visão. Por isso a verdadeira di-versão é também, e necessariamente, uma versão outra.
A observação dos caminhos pelos quais o conhecimento de si e do mundo se desenvolve mostra como as fantasias da criança contribuem para essa aprendizagem. E como podem ser negativas para as crianças atitudes de adultos que, acreditando “protegê-las” ou demonstrar seu “amor” ( ?…), não permitem que elas se tornem capazes de elaborar seu medo, sua raiva, suas ansiedades e suas defesas, de suportar frustrações, de buscar desejos substitutivos. Ou buscam dar-lhe satisfações superficiais e imediatas, despertando nelas um consumismo desenfreado, levando-as à necessidade compulsiva de ter, que elimina sua busca, sua atividade, a ação que as levaria a buscar ser mais; fazendo-as, com isso, perder seus desejos criativos, e mantendo-as ou levando-as a regredir a seus desejos instintivos. Um raio de sol não se compra, a primavera não é uma estátua. Fatores inconscientes exercem uma influência contínua ao longo de toda a vida, tanto em pessoas nomais quanto em nerutporicos, as diferenças residindo no caráter específico das fantasias odinantes, do desejo ou ansiedade associado a eles, e seus inercurso co os outros e a realidade exterior. Sonhar e ir em busca de seus objetos de desejo, renovando-os ou substituindo-os, se necessário, suportando frustrações e perdas, são atitudes que marcam um ser humano adulto e consciente.
4. Teatro: lugar de VER
Quantos já atentaram para o fato de que a palavra personalidade tem em sua raiz a persona, a máscara usada pelo ator para compor um personagem – e que só por extensão passaria a designar a pessoa do ator que a veste?
Já se disse que a ontogênese repete a filogênese, isto é, que cada ser humano repete em sua história pessoal a longa trajetória de toda a humanidade ( o que o Teatro No japonês vai repetir simbolicamente na lenta entrada e caminhada do ator pela cena). No eu ainda oculto sob um nós geral e um mundo maior e envolvente, o primeiro dado de consciência surge em um jogo ritual: o do sacerdote erguendo sua lança contra o animal desenhado na parede da caverna, em gesto e dança de confronto e desafio, afirmação de sua presença humana e reforço afetivo – mesmo que ainda não seja uma verdadeira tomada de consciência. Mas, à medida que o gesto é repetido e se torna hábito, o sentido primeiro desse rito se atenua e passam a agir as forças internas do ser humano: sua inércia, convidando aos fáceis automatismos do hábito, suas necessidades e impulsos instigando a ir além no sentido da consciência.
Na trajetória humana, como na individual, o primeiro momento é o do ad-mirar, o do espanto ou encanto com que o ser humano contempla o vazio, o aberto, e busca penetrar a natureza em sua entrelaçada tessitura de signos e marcas, de caracteres expressivos, de discursos e formas. Tecido em que os fios, as cores, as luzes e sombras se encontram tão entrelaçados, con-fundidos, que o olhar desvelador pode tomar a sombra pela coisa sólida. O mito e a lenda (legenda – coisas a serem lidas) são a primeira tentativa humana de apreender a realidade e estruturar seu mundo.
Nas festas dionisíacas um novo passo será dado: do coro anônimo e indiferenciado, com máscaras animais, alguém se destaca, arranca a máscara e fala, dele surgindo um rosto e uma fala humana: a máscara (persona) tornada pessoa (Téspis), presente, viva, atuante, num gesto de transgressão que é também um ato de consciência. E a imitação será agora um meio de ver: surge o te-atron, lugar de ver, de buscar ou aprofundar uma verdade antes velada pelas máscaras. O mito era a estrutura e forma de um conhecer, a experiência interrogando a percepção, esta se organizando para englobar o percebido e informar sua faculdade de expressão; do percebido e expresso, agora, a palavra, por obra do poeta, fazedor, criador de uma nova realidade: a obra de arte, que não só imita a natureza em sua produtividade criadora, mas vai além dela, não apenas representa o que as coisas são, mas o que parecem ser (o verossímil) ou o que deveriam ser (o ideal).
No teatro, como em outras formas de arte, há toda a riqueza de significações implícitas: uma forma, uma cor, uma linha, um movimento, um volume, uma composição de forma e cor, de melodia e harmonia. Também na vida social respondemos pronta e intuitivamente à expressão facial das pessoas, seu tom de voz, gestos, posturas, que vemos diretamente, sem palavras. São essas coisas percebidas e imaginadas a matéria de que se forma nossa experiência, são as ações que apontam situações ali trazidas ao vivo, re-present-adas, isto é, tornadas presentes, na cena e no tempo.
As palavras serão um meio de referir-nos a essa experiência, real ou fantasiosa, mas não são idênticas a ela, são signos de uma experiência, não as substituem – como no caso da narrativa. No teatro, as palavras evocam sentimentos e imagens, mas não são por si mesmas sua principal matéria, pois pertencem à mente consciente e não à esfera de emoções e fantasias inconscientes.
Patrice Pavis chama a atenção para o fato de que “a língua francesa (a como a portuguesa ) não possui expressões paralelas a jeu e théatre (…) e uma dimensão importante da representação, seu aspecto lúdico, acha-se assim excluída do imaginário da língua. Só expressões como o jogo do ator, por exemplo, dão idéia da atividade lúdica O recentíssimo termo jogo dramático reencontra, de maneira sintomática, a tradição espontânea e improvisada do jogo” (…) “O teatro terá uma parte ligada ao jogo em seus princípios e regras, se não em suas formas. Huizinga dá a seguinte definição de jogo: “Pelo ângulo da forma pode-se definir o jogo como uma ação livre, sentida como fictícia e situada fora da vida comum, capaz, não obstante, de absorver totalmente o jogador; uma ação despida de qualquer interesse material e de qualquer utilidade; que se realiza num tempo e num espaço circunscritos, desenrola-se ordenadamente de acordo com determinadas regras e provoca, na vida, relações de grupos que se cercam voluntariamente de mistério ou que acentuam pelo disfarce sua estranheza diante do mundo habitual. Esta definição do principio lúdico poderia ser a do jogo teatral: a ela não falta nem a ficção, nem a máscara, nem a cena delimitada, nem as convenções! No entanto, não há representação teatral sem a cumplicidade do público e a peça só tem possibilidade de “dar certo” se o espectador entrar no jogo, aceitar as regras e interpretar o papel daquele que sofre ou daquele que se safa, se estiver assistindo à representação”.
O espectador – e isso é ainda mais básico no caso da criança – não procura em si e em suas experiências o sentido dos gestos de que é testemunha. Para compreendê-los não precisa lembrar se ou quando sentiu os mesmos gestos: lê a raiva no gesto e ele não a faz pensar na raiva, ele é a raiva. Muitas vezes um espectador externo revela à criança o sentido de seus próprios impulsos propondo-lhe uma finalidade. Mas o exemplo passará despercebido se não se encontrar com as possibilidades internas da criança. O sentido dos gestos (e a própria palavra é um gesto que rompe o silêncio primordial) não é dado e sim compreendido, ou seja, retomado por um ato do espectador. Toda a dificuldade está em conceber bem esse ato e não confundi-lo com uma operação de conhecimento intelectual. A compreensão (com-apreender) dos gestos se obtém pela reciprocidade de minhas intenções e dos gestos do outro, de meus gestos e das intenções que leio na conduta do outro. Como se a intenção do outro habitasse meu corpo e minhas intenções habitassem o dele. A comunicação é completa quando minha conduta encontra nesse caminho seu próprio caminho. Não compreendo os gestos do outro por um ato de interpretação intelectual (como parecem supor os que se empenham em inserir “mensagens” explícitas, tiradas didatizantes e que tais). A “comunicação das consciências” não é fundamental no sentido comum de suas experiências, mas ela o fundamenta bem: é irredutível o movimento pelo qual me abro ao espectador, uno-me a ele em uma espécie de re-conhecimento que precede a definição e a elaboração intelectual do sentido. Gerações após gerações “compreendem”, por ex., um gesto de carinho sem que alguém defina sua significação intelectual. É por meu corpo que compreendo o outro, como é por meu corpo que percebo as “coisas”: “Eu sou meu corpo”, lembra Merleau-Ponty. O sentido do gesto assim compreendido não está “por trás” dele, confunde-se com a estrutura do mundo que o gesto designa, se abre no próprio gesto.
Quando o que vê nada lhe diz, não tem influência sobre ela, a história não cor-responde ao que sente no íntimo, ela não é “verdadeira” para a criança, e no teatro ela se assemelha ao espectador mal colocado, que vê os outros rirem, ou ouve uma melodia, mas não há nada por trás das palavras ouvidas, nada acontece para ela. Se observarmos os espectadores infantis de uma peça perceberemos que a linguagem teatral (ou outra qualquer) só tem sentido para a criança quando cria uma situação para ela. Caso contrário, fica como a criança pequena que apanha um livro e os óculos da avó para nele buscar as histórias que ela conta. Decepção: onde a história? Ela só vê um amontoado de pequenos signos em preto e branco. Para ela a história ou o que ela expressa, não são “ideias” ou “significados” e a palavra ou a leitura não são uma operação intelecual: a história é um mundo que deve aparecer magicamente. A função da linguagem teatral é fazer existir o que expressa, erguer magicamente novas dimensões, novas paisagens. O sentido excede a linguagem e se exibe durante o encantamento linguístico, tal como a história quando contada pela avó. Um pensamento apenas falado, colocado em palavras, não atinge sua finalidade: falar não é evocar imagens verbais, o sentido de uma palavra eu o apreendo como o uso de um instrumento, ou vendo-o empregado no contexto de cada situação, é o aspecto que ele assume em uma experiência humana. Não tem sentido, portanto, em vez de dirigir a criança para seu próprio desenvolvimento, buscar dizer-lhe o que “deve ser”, não permitindo à criança tirar suas próprias conclusões. Esse processo é o oposto de um verdadeiro amadurecimento: como já assinalou o filósofo e psicanalista Bruno Bettelheim, “ele apenas substitui a servidão de sua própria imaturidade pelo cativeiro da servidão aos ditames dos adultos”.
Para que uma história e um espetáculo teatral despertem e mantenham a atenção da criança têm, portanto, que entretê-la e aguçar sua curiosidade, e não ser apenas figuras em movimento oferecidas a sua percepção: além de atuar sobre sua percepção, podem e devem também ajudá-la a sintonizar com suas necessidades e desejos, estimular sua imaginação, provocá-la, em todos os sentidos. Sobretudo nos contraditórios dias de hoje: estamos vivendo um momento em que tudo parece despertar nossa imaginação, com uma enorme variedade e riqueza de imagens que em toda parte invadem os ares, vão de um mundo a outro, chamam olhos e ouvidos para sonhos engrandecidos, abrem nosso olhar para o espaço do cosmos, questionam o real com o “virtual”. Mas exatamente por serem tantas e tão várias, em meio a esse seguido bombardeio de coisas sobre todos nós estamos perdendo o senso profundo do VER.
De tudo que foi exposto, depreende-se o valor e importância possíveis do teatro. Teatro: lugar de VER. De ver claro, de ver longe, de ver fundo. De ver o ser humano em ação na cena do mundo. De ver o ser humano por inteiro: corpo e espírito integados, a abstração de idéia e pensamentos traduzidos na concretude de corpos vivos, de materiais cênicos, de formas e estruturas. De ver o ser humano como alguém que é capaz de desenvolver sua capacidade de inventar, de criar, de imaginar. Como um ser vivo que, à diferença do animal, que nasce, cresce e morre igual, e subordinado à espécie, é um pro- jeto, ou seja alguém que se lança adiante, que se constrói passo a passo, que vai ser aquilo que escolher ser, dentro de circunstâncias que estabelecem limites, mas aberto também ao infinito horizonte dos possíveis. Se criança vem de criar, se jovem de Juvene, Jovis ( Júpiter ), que é o raio, a luz divina, o Criador, não é nunca demais lembrar a importância dessa dimensão que nos re-liga à humanidade e ao universo.
Grande parte dos exemplos foram retirados de autores e obras teatrais que ilustram, em sua criação, os diferentes aspectos apontados no desenvolvimento infantil. Comprovando, assim, sua significação enquanto obra de arte. São eles, em ordem alfabética:
Aglaé F. Alencar – Peças baseadas no folclore de SE
Carlos Augusto Nazareth – O menino Detrás das Nuvens
Cecília Meirelles – Ou Isto ou Aquilo
Clarice Lispector – A Vida Íntima de Laura
Enéas Lour e Fátima Ortiz – Era uma vez Outra Vez
Ilo Krugli – História de Lenços e Ventos, A Viagem de um Barquinho, O Labirinto de Januário
Erico Veríssimo – Aventuras do Aviãozinho Vermelho
Lucia Benedetti – O Casaco Encantado
Maria Clara Machado – Pluft, o Fantasminha, O Cavalinho Azul, A Menina e o Vento
Maria Helena Kühner – Aventuras de um Diabo Malandro, A Menina que Buscava o Sol
Mario Quintana – Pé-de-Pilão
Odylo Costa Filho – O Balão que caiu no Mar
Oscar Von Pfuhl – A Árvore que Andava
Osvaldo Gabrieli – O Canto que vem do Oceano
Pernambuco de Oliveira – A Revolta dos Brinquedos
Raimundo Alberto – O Campeonato dos Pombos
Sergio Fonta – Beto Papagaio nos Reinos do Entro-e-Saio
Stella Leonardos – O Consertador de Brinquedos
Tim Rescala – Pianíssimo
Ziraldo – Flicts
Maria Helena Kühner
Escritora de peças teatrais para adultos e crianças, ensaios, pesquisas, literatura infanto-juvenil