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Pum! Bum! Paf! Woosh! Zap!...e uma figura arremessada ao espaço com um soco, um explosão, um carro voando pelos ares ou um incêndio tomam todo o telão, ou a telinha, ou o quadrinho, apontando um denominador comum que há muito preocupa os educadores e criadores mais conscientes: a violência. Pesquisa realizada na PUC-RJ comprovou que a violência tem sido temática constante no total dos produtos dirigidos a crianças e adolescentes. Uma violência, que, sob as mais diferentes formas, atinge 60% daquele total e vai a 74,6% nos enlatados importados da TV.

Ora, já tem sido seguidamente assinalado que, em um mundo em que as técnicas de comunicação e persuasão são cuidadosamente estudadas e manipuladas para pressionar os indivíduos e dirigir suas escolhas, da marca do sabonete à escolha de seu partido político, o chamado quarto poder, ou seja, os meios de comunicação tornaram-se instrumentos de grande importância. E os valores por eles transmitidos – reais ou deturpados – tendem a fixar-se para obter a modelagem desejada: “deu na TV” ou “saiu no jornal” são frases que surgem como argumentos no discurso corrente.

Na denúncia citada e nas denúncias ouvidas, enfatiza-se o fato da violência nos programas e obras, isto é, sua presença, suas causas, suas consequências, analisando-se a violência em si.

Porém não se para para analisar o sentido dessa violência, o que está além, ou subjacente, e que nos faz ver que sua constância não é dado ocasional ou simples reflexo de um tempo, mas representa o que há de mais condicionante e deformador em sua utilização: é que a violência está sendo legitimada e institucionalizada. Marcuse, em um de seus muitos achados, chamou a atenção para a frequência com que o sistema atual absorve seus contrários em proveito próprio.

No caso, também a violência, que surgiu com a instabilidade de um mundo em transformação, está sendo racionalizada, justificada, ou até mesmo valorizada por essa institucionalização que a torna instrumento legítimo do poder e de sua ação. As ações dos heróis da ordem – Batman, Capitão América, Super-Homem, Homem-Aranha etc. etc. – são, com frequência, muito mais violentas que as daqueles que as provocaram. Mas eles são apresentados como “heróis”, trazendo já consigo – por obra do acaso ou dom de deuses ignorados – aquilo que faz deles um esperado “salvador” e vencedor, e associado a todas as formas de bem: beleza, verdade, justiça, riqueza, luz, amor… Em momento algum são neles vistas a capacidade de descobrir e inventar, a inteligência em aproveitar os recursos que a realidade pode oferecer, a reflexão informando a liberdade de escolha, o afeto gerando solidariedade e companheirismo, enfim, todo o rico e variado potencial humano. Porém a sua violência, por ser a de elementos ditos “justiceiros, “mantenedores da ordem”, por estar “a serviço do poder”, é vista e mostrada como “legítima” e até desejável.

Com essa mistificação de valores o poder e a força tornam-se a meta final buscada e disputada, e o regime de violência torna-se uma situação “natural”, de fato: daí a colar-se na testa de alguém o título, já devidamente execrado, de “terrorista”, passa a “justificar” até bombardear um país 24 horas por dia ao longo de um mês inteiro, matando crianças, adultos e velhos, assassinando toda uma população, ou invadir qualquer outro país seguindo interesses não declarados e escusos.

Ora, em termos éticos, tolerar a violência ao próximo significa não só tornar-se cego a ela, como seu cúmplice, dela partilhando. A violência é o polo oposto da razão e da liberdade. Só pode ser canalizada, dirigida ou contida pela noção de justiça, totalmente esquecida, ou melhor deturpada, nessas histórias em que os “justiceiros” são apenas os que visam a perpetuar uma aparente “normalidade”, identificada quase sempre ao statu quo reinante.

Mais que o clima de violência, é esta desumanização, esta deturpação de valores (palavra tão esquecida, hoje!) que pode causar o maior dano de todos: a despersonalização de toda uma infância e juventude, a criação de uma mentalidade condicionada e dirigida, a eliminação de seu espírito crítico e seu sadio inconformismo, a anulação ou desqualificação da imaginação, da fantasia, da afetividade, do lirismo, que são sempre exigência de horizonte e caminho.

E o que tem o teatro infantil a ver com tudo isso? – pode alguém perguntar. Se te-atrium = lugar
de VER,
 cabe ao teatro, de e para todas as idades, resgatar o que está sendo deformado ou perdido. Bruno Betelheim, Marie Von Franz, Clarissa Pinkola Estés e outros já mostraram como a criação dirigida à criança pode lidar com conteúdos muito profundos, e construir uma estrutura com princípios, ideias e valores capazes de nos lembrar o que é, ou pode ser, de fato, um ser humano.

Por isso foi com alegria que vimos espetáculos do 6º FENATIB trabalhando com inegável qualidade artística esses valores, como foi, sobretudo o caso de História de Topetudo, À la carte, O canto que veio do oceano, Victor James, Conta comigo, Zé Rapadurinha – ou dando ensejo a produtivos debates, como no caso de A Megera Domada ou I Pagliacci, em que a violência foi o tema mesmo de discussão. Comprovando, assim, que sabemos que cabe a todos nós que fazemos teatro, ou que dele participamos como espectadores, dar-nos conta desse desafio atual e buscar enfrentá-lo com a determinação necessária.

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Maria Helena Kühner
Autora Teatral, Pesquisadora e Ensaísta, com 26 livros publicados. Foi Membro de Direção, Consultoria ou Assessoria de diferentes órgãos de cultura do Rio de Janeiro.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 6º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2003)