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Em recente debate sobre a produção cultural para crianças e adolescentes teatro, tv, cinema, música, literatura, quadrinhos. etc.) vieram mais uma vez à tona seus possíveis e variados efeitos: efeitos afetivos, agindo sobre sua credulidade e encantamento, ou acionando mecanismos de projeção e identificação; efeitos emocionais, de mimese e catarse; efeitos sobre sua percepção, deslocando-a de detalhes ou aspectos isolados para conjuntos maiores e mais distanciados; efeitos intelectuais, de ampliação e diversificação de informações; efeitos morais, sobre sua visão de mundo e escala de valores; efeitos sobre sua socialização, ora colocados em contato direto com os objetos da cultura, desligando-se por tal dos mediadores tradicionais – pais, professores etc.- e religando entre si companheiros da mesma idade que realizam experiências paralelas.

A referência à experiência vivida trouxe à discussão a mudança sofrida nos próprios processos de conhecimento: a realidade que não é mais mediatizada pela “autoridade”, também não o é mais exclusivamente pelo conceito, adquirindo enorme importância o papel da informação visual que caracteriza a “civilização da imagem; na relação-criança mundo atual a cultura e seus meios adquirem papel fundamental ; mas se o espaço da exclusão e da marginalização se amplia cada vez mais crescerá a diferença entre a criança que tem redes de tv, que pode ( isto é, tem condições de ) ir a cinema, teatro, comprar revistas e livros, freqüentar escolas, ter contato com grupos da mesma idade e os que disto se vêem privados, no todo ou em parte – que se verão na condição dos povos do mundo dito “terceiro” em relação aos do “primeiro”… E o debate encerrou-se com uma conclusão que dá o que pensar: o que a criança e o adolescente estão vendo, vivendo e sentindo é por eles vivido como uma experiência e é o conjunto dessas experiências que dá as bases de seu desenvolvimento potencial.

A partir daí uma pergunta me ficou martelando na mente: o que podem nossas crianças e adolescentes fazer com o que lhes está sendo oferecido para “organizar e interpretar suas próprias experiências”?

As histórias em quadrinhos e/ou os desenhos das tvs – que são os mais procurados ou vistos – repetem ao infinito uma situação básica: um ser pequeno e indefeso, consegue iludir ou vencer outro maior que o persegue e tenta dominar. Em termos psicológicos este esquema é obviamente gratificante: os mecanismos de projeção e identificação são aí acionados, explicando facilmente o fascínio com que a criança, sobretudo a de menor idade, se imobiliza diante da tela. Mecanismos que, no entanto, vão passar a acusadores severos quando aplicados à avaliação do que é apresentado aos mais velhos: os “heróis” – Batman, Superman, Homem Aranha, etc.etc – se estruturam sobre figuras que na vida real são seres comuns – acenando com um apelo à identificação. Identificação que a seguir se frustra pela atribuição ao herói de poderes mágicos ou especiais – que não resultam de sua maneira de ser, de seu estudo, seu trabalho, seu esforço ou qualquer outra fórmula possível de ser adotada ou seguida. Não é sua imaginação e inventividade, sua capacidade de descobrir e de criar, sua inteligência em aproveitar os recursos que lhe oferece a realidade em torno, seu poder de reflexão informando uma liberdade de escolha, seu desejo de afeto e união duplicando suas forças na relação com outros, enfim, nada que caracteriza o rico potencial humano que é suscitado, apresentado ou até posto em questão e sim poderes “mágicos” ou excepcionais, gratuitamente obtidos, privilégio do acaso ou dom de deuses ignorados… E só uma escamoteação grosseira ou intencional poderia querer justificar essa “magia” em nome da fantasia, do mito, da ficção que caracterizam a visão infantil do mundo e cujo sentido profundo Freud já demonstrou sobejamente ao analisar o jogo e a representação infantil.

Mas se não nos detemos apenas nos aspectos afetivos ou emocionais e retonamos à noção que de que a percepção é uma forma de conhecimento, veremos que aquela produção dita “cultural” se revela, de fato, uma negação de qualquer progresso cultural e humano. Se os meios de comunicação representam uma abertura para o mundo, os outros, a realidade em torno, que visão de mundo vão ter os que desprendem desde cedo uma auto-confiança e uma auto-valorização só concedidos a privilegiados? Que vêem as atitudes de dominação, agressão ou violência, em tese condenadas, se tornarem válidas, justificáveis ou até louvadas quando usadas pelos “heróis”, a “serviço da ordem”?( ou melhor, desta des-ordem estabelecida, injusta e desigual, que se mistifica em “nova ordem mundial”). Que vêem sempre como inimigos os seres de outras raças, potências ou planetas? Ou mesmo vêem no outro um competidor, quando não um adversário, a ser vencido ou dominado, e no diferente um inimigo em potencial

Essas atitudes e idéias tornam-se ostensivas nos video-games destinados a crianças e adolescentes ( e muitas vezes jogados prazerosamente também por adultos…) Observem: neles a guerra é sempre uma “brincadeira”. Vencedor é quem destrói mais, quem consegue aniquilar o outro. O outro é sempre um adversário, o inimigo a ser destruído ou eliminado. E para esta destruição vale tudo: explodir, derrubar, esmagar, afogar, bombardear, em suma, destruir e matar – verbos que vi crianças e adolescentes repetindo em coro num jogo, assinalando cada jogada feita. O sucesso é conseguir dominar e/ou destruir; o erro é não conseguir destruir ou matar. E quem “erra” é objeto de zombaria, pode ouvir um som irônico, ou até uma voz debochando “errou, errou…” Se a violência é “a norma, é “a regra do jogo”, por que não seria “normal” ou natural alguns jovens metralharem colegas em uma escola dos Estados Unidos? Ou como é que crianças e adolescentes vão saber que não é um jogo quando a OTAN bombardeia a Iugoslávia, ou Milosevic esmaga a população de Kosovo, ou no Timor Leste há um massacre, ou em Rhuanda e Angola comete-se genocídio?

Mas o adolescente é já crítico, pensei. Será que não se dá conta de “há algo de podre no reino desta Dinamarca” que é a planeta Terra atual? E aí me lembrei de quando, a pedido de um grupo de adolescentes, traduzi para eles as letras de algumas músicas do Sepultura, do Rage against the machine, do Motorhead e outros – ouvidos seguidamente por adolescentes e jovens. Seus temas falam das próprias estruturas da sociedade atual: da família, em que muitos podem dizer “nunca vi a cor dos olhos de meu pai”, ou que “vivem num inferno”; da escola em que “o professor se sente um bobo diante de alunos sentados, ouvindo, indiferentes, a merda que ele é obrigado a ensinar”, sem que nada do que é aí dito “vá mais dentro e mais fundo”; de um sistema em que “o deus é o Dinheiro”, em que “o lucro e o roubo decidem nossos destinos” e “nos conduzem à morte”; sistema que se pretende “dono da verdade e das vidas”, mas, “imperador das mentiras”, põe toda uma “rede (tv) em ação para manter as pessoas tranqüilas”… Dá para entender porque, diante desse quadro, afirmam: “Por isso não venham me dizer que isto ou aquilo não deve ser feito”. Traduzindo e comentando com eles, vendo aqueles rostos meninos diante de mim, eu pensava: há uma rejeição, ainda que intuitiva ou sem bússola, há perguntas – mesmo que ainda sem resposta, há uma busca, que é válida e sadia – e se expressa no próprio ato de querer saber o significado daquelas letras.

Uma busca. E foi então que, como pessoa que tem no teatro e na literatura sua forma de expressão, me perguntei: e o teatro, em que e como está contribuindo para esta busca, para esta inquietação, para ser uma experiência capaz de acrescentar e enriquecer? Se te-atrium=lugar de ver, é esta sua própria razão de ser, seu compromisso real e maior! Mas será que o teatro para crianças e adolescentes está sendo capaz de lhes dar algo da variedade de informação e experiência que precisam receber fora da educação formal; de alargar seus poderes de observação e expressão; de aumentar sua “alfabetização visual” a respeito dos objetos e dos fatos; de elevar sua curiosidade pelo que vêem em torno; de abrir-lhes o mundo da realidade ligando-o também ao imaginário e ao metafórico; de estimular a satisfação de necessidades até então não descobertas e a curiosidade por áreas ou assuntos de interesse e importância humana; de melhorar sua condição humana através de suas experiências visuais, ou seja, de fazê-los sentir e pensar, sem trazer modelos de fora para dentro, sobre problemas que adiante terão que enfrentar – e que poderão enfrentar se conseguirem guardar dentro de si mesmos um espaço pessoal, vinculado, no início, ao poder de suas próprias fantasias. Ou será que isto exige uma mudança de atitude: em vez de partir, como em geral se dá, de interesses do produtor, partir do ângulo do espectador, perguntando-se: o que pode este espectador infanto-juvenil fazer com o que lhe é oferecido em nosso palco?

“A imaginação no poder”, escreveram os estudantes nos muros da França em maio de 68. Simples frase? Se o fosse não teria por que ter sido tão repetida e comentada, como expressão de protesto contra um pensamento racional estabelecido como única forma de abordagem da realidade e hoje questionado em nome da demais funções criativas do homem – imaginação, sensação, percepção, intuição. Ora, um dos caminhos que levam à imaginação é o lúdico – que é uma das matrizes da própria linguagem teatral ( mas não tem nada a ver com a incitação a uma gritaria de macacos de auditório!); que já se comprovou ser um aprendizado de uma realidade nova e caminho de uma possível descoberta; que é um exercício para uma vontade de auto-afirmação; que serve à realização de desejos (um dos motores do inconsciente) mesmo que ainda só no plano da fantasia; que tem a ambivalência e a imprevisibilidade que hoje caracterizam nosso real; que se fixa à forma e à aparência – hoje enfatizadas nos códigos que ressaltam a importância do signo visual e da imagem.

E me surgiu uma nova pergunta, que aqui partilho com vocês: por que os jogos (ex: o esporte – jogo também) são hoje tão explorados e exploráveis? Não haveria no “novo homem” que está surgindo traços de identificação com a criança e o adolescente de todos os tempos, com os processos capazes de levar a seu des-envolvimento em ( ou em relação a) um mundo atual em que tudo conduz à reprodução e à alienação? Ou seja, se no momento em que transformações aceleradas sacodem o ser humano atual, tirando-lhe todas as certezas e fazendo-o pôr em questão o sentido de tudo, não estariam o lúdico, o mágico, o mítico tentando o homem a um retorno, a resgatar em si o mundo da infância, em que a imaginação se mistura ao real e lhe dá uma imensa abertura, lembrando-lhe a importância de não desaprender ( ou reaprender) a brincar, a buscar redescobrir-se, redescobrindo sua espontaneidade de criança e fazendo desta re-descoberta o ponto de partida de uma criatividade e invenção que neste mundo cada vez mais repetitivo, reprodutor e massificador, é condição mesma de sua auto-afirmação e liberdade – sem as quais, mesmo que venha a ter tudo que esta mitificada e mistificadora sociedade de consumo puder proporcionar, ele será sempre, interiormente, um ser castrado e infeliz.

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Maria Helena Kuhner
Escritora de peças teatrais para adultos e crianças, ensaios, pesquisas, literatura infanto-juvenil