Matéria publicada no Jornal do Brasil
Por Bárbara Heliodora – Rio de Janeiro – 04.05.1959
A Volta de Maria Clara Machado
O que distingue em realidade o teatro infantil de Maria Clara Machado da grande maioria de obras congêneres é a extrema seriedade com que trata do assunto em questão. Qualquer pessoa que lide um pouco com crianças poderá notar essa maravilhosa capacidade de acreditar realmente em seu mundo do faz-de-conta. O respeito humano faz com que qualquer adulto mantenha sua autocrítica e, consequentemente não chegue a viver, integralmente, uma situação imaginária. Que diriam os vizinhos se vissem um respeitável bancário ou securitário, digamos, alegremente cavalgando um cavalinho imaginário no meio de sua sala de estar? É porque ele se preocupa com os vizinhos, o bancário ou securitário ri de si mesmo quando o filhinho pede que cavalgue o cavalinho imaginário, e deixa de viver integralmente a ação. Pois o que acontece com Maria Clara Machado é que ela conseguiu preservar o encantamento total pelo mundo do faz-de-conta, e reproduzir a linguagem ingênuo-compenetrada das crianças, que não falam errado no estilo tatibitate que lhes atribui aquela horrível “gente grande” à qual tem tanto horror, o Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry.
A Volta do Camaleão Alface é, em teoria, uma continuação de O Rapto das Cebolinhas; na realidade a peça é autônoma, e o texto um dos melhores de Maria Clara Machado só inferior, na realidade, ao primoroso Pluft, o Fantasminha. A história é de aventuras: em busca da fórmula do segredo de bem viver, parte para Mato Grosso, em expedição, a família do Coronel Felício dos Santos, avô de Lúcia e Maneco, cujas cebolinhas para se fazer chá da longa vida haviam sido roubadas pelo falso Detetive Camaleão Alface na primeira peça. Como no Rapto, fazem parte integral da família, Gaspar, o cachorro; Simeão, o burro, e Florípedes, a gatinha. Acontece que o Camaleão Alface também andava atrás da fórmula, e que todos encontram, nas selvas, o cacique, seu filho Peri, que gostava de chocolate, e o Padre Joãozinho, missionário polonês. A mistura é assaz explosiva, e os acontecimentos provocam do público, tanto infantil quanto adulto, as reações mais intensas e variadas. A construção da peça é excelente. A ação tem um crescendo ininterrupto e a reação intensamente audível das crianças é uma consequência normal da própria ação, e não causada por recursos estranhos a ela, como acontecia numa peça que vimos, há tempos, em que as crianças da plateia eram convidadas a jogar bolas no palco para quebrar vidros de uma porta, com interrupção total do desenvolvimento da história.
A Volta do Camaleão Alface não atira mensagens nem moral em cima de ninguém, mas nem por isso deixa de ter ideias e princípios: eles são facilmente deduzíveis da ação e transmitem, acima de tudo, uma concepção positiva e alegre da vida, uma atitude saudável e entusiástica a respeito das boas relações entre os vários membros de uma família e também entre os homens de boa vontade. O espetáculo do Teatro da Praça foi dirigido por Cláudio Corrêa e Castro, tem cenários de Antero de Oliveira e figurinos de Kalma Murtinho. A não ser pelo trabalho desta última, inteiramente satisfatório, o espetáculo não chega a corresponder à alta categoria do conto de Maria Clara Machado, cuja qualidade se impõe apesar das falhas do mise-en-scène. A direção de Cláudio Corrêa e Castro tem momentos excelentes e encontrou certas marcações que realmente colaboram na criação do clima da peça, mas por outro lado há sérias falhas de ritmo, principalmente notadas nas várias cenas curtas em que os grupos formados pela família do Vovô e por Camaleão Alface e os índios aparecem sucessivamente no palco várias vezes. Cada uma dessas cenas contribui com mais um elemento na construção da trama, e não resultaram satisfatórios o ritmo lento e as longas pausas entre um grupo e outro.
Mas na realidade nos pareceu mais séria do que qualquer outra a questão do desequilíbrio do elenco, em que, a par de algumas atuações muito boas há outras realmente abaixo de qualquer nível aceitável. Os melhores são Fábio Sabag, Emílio de Matos e Roberto Ribeiro. Se Emílio de Matos não mantém a linha originariamente dada por Maria Clara Machado ao Camaleão Alface, não há dúvidas de que sua personalidade se afirma ante o público infantil, e é com a maior segurança que sabe juntar ao seu “vilão” a medida justa de ridículo, de fracasso, que impede que as crianças levem do Camaleão Alface uma lembrança inteiramente má. Fábio Sabag, que tivera uma atuação tão comovente em A Fábula de Brooklyn, aparece agora como o índio Peri, e conquista a todos com seu ar absolutamente aparvalhado e amigo. De máscara, gestos e postura, não há senão elogios a se fazer ao seu trabalho. E Roberto Ribeiro após sua espetacular entrada “à la Tarzan”de cipó, consegue criar um tipo muito bom para o Cacique. Não terá, por certo, igualado Fábio Sabag, mas nem por isso deixa de realizar um trabalho muito bom, e que passa integralmente a grandes e pequenos.
Um pouco abaixo desses três, temos o desempenho de Yan Michalsky no Padre Joãozinho, papel escrito especialmente para ele por Maria Clara Machado, Yan Michalsky é, sem a menor dúvida, um ótimo ator característico, mas pareceu-nos que, confiando nisso, o diretor deixou-o um pouco sem linha definida. Não há nada que caracterize o Padre Joãozinho uma vez que ele tira aquele fantástico chapéu que lhe deu Kalma Murtinho, que nos sugeria, a cada instante, alguma coisa da incongruência de Katherine Hepburn em African Queen. Depois disso há apenas o ator buscando sozinho criar um personagem que não foi moldado em termos de palco. Assim mesmo consegue transmitir bastante da ingenuidade e da bondade que estão contidas no texto de Maria Clara.
É fácil notar, pelos comentários acima, que o desequilíbrio do elenco deixou bem fraco o lado da família do Vovô. De todos estes, o melhor é Roberto de Cleto, que fora o Maneco do Rapto, no O Tablado, e que era a única pessoa que tentava dar alguma vida ao grupo. O avô, Antero de Oliveira, responsável pelos cenários inexpressivos, não tinha nada para viver o papel, nem físico, nem voz, nem idade, e nem a experiência necessária para suprir essas desvantagens. Mas assim mesmo Antero de Oliveira deu a impressão de estar, honestamente, tentando fazer alguma coisa com o papel, o que já não se sentia, por exemplo, com Terezinha Mendes, o elemento mais fraco do espetáculo, que recita suas falas com bastante indiferença e é totalmente ausente da ação enquanto não tem o que dizer. Realmente muito fraca. Os três bichos, que tanta importância tiveram no Rapto das Cebolinhas e que têm tantas oportunidades para aparecer bem em A Volta do Camaleão Alface desaparecem por completo. Elisabete Galoti não conseguiu a sinuosidade e coqueterie de Carmem Sílvia Murgel ou mesmo de Maria Miranda no papel de Florípedes, a gatinha. Junto com Terezinha Mendes foi quem menos se permitiu captar pelo encanto do mundo infantil, e embora seu trabalho fosse algo melhor do que o da intérprete de Lúcia, nunca deixou de existir nela uma certa atitude de distância entre atriz e personagem, distância que, infelizmente, dizia à plateia: não pensem que eu sou gata, eu sou uma atriz fingindo de gata. Faltou-lhe, pura e simplesmente, a alegria de trabalhar seu papel, a satisfação real de desempenhá-lo, fracassando na grande oportunidade mímica do papel.
Quanto a Simeão e Gaspar, esses simplesmente desapareceram na ação. Os animais eram muito importantes no Rapto, importantes principalmente porque eram a expressão de um determinado clima na família do Coronel Felício dos Santos. Surpreende-nos, portanto, que Cláudio Corrêa e Castro, que foi o primeiro coronel e que portanto já viveu aquela família, tenha mostrado tão pouca atenção a Simeão e Gaspar, entregando sua interpretação a atores incipientes que não souberam transmitir o que o cachorro e o burro deviam significar na peça.
Muitos destes defeitos passarão desapercebidos do público infantil, e apesar de todos eles recomendamos A Volta do Camaleão Alface como um espetáculo de boa categoria. Lamentamos apenas que o Teatro da Praça, tendo em mãos um texto infantil da categoria de A Volta do Camaleão Alface não o tenha tratado com o cuidado que merecia, realizando um espetáculo bom, quase que só porque a categoria do texto não permite que ele seja mau.