Crítica publicada no Jornal do Commercio
Por Luiza Barreto Leite – Rio de Janeiro – 02.06.1968
Maria Minhoca, Porta Bandeira da Paz
O herói é Pedro Fon-Fon, que, mal comparando, poderíamos colocar na galeria dos Ciranos, isto é, das personalidades acima do bem e do mal, que tudo fazem pela felicidade alheia praticando os atos mais audaciosos para liricamente instalar a mocinha nos braços do maior amigo, incapaz de vencer sozinho as barreiras da vida. Mas Fon-Fon é um garoto moderno e, como tal, não iria perder-se de amores pela amada de outro, pois se o fizesse não teria o mau gosto de entregá-la a ninguém. Nada disto, ele é o herói despreocupado, que detesta a violência e pratica o heroísmo sem fanfarronices, pelo simples prazer de distribuir felicidade, pelo esporte sadio de combater a opressão.
Maria Minhoca é a menina romântica que, sob o jugo de Mr. João Buldog, seu pai, é obrigada a aceitar a corte do terrível Capitão Quartel, deixando Chiquinho Colibri completamente desesperado. Que seria deles sem Pedro Fon-Fon? Nosso herói, além de Cirano é também Arlequim, sendo sobretudo o bom, o esperto, o gaiatado garoto brasileiro, capaz de qualquer valentia com ar de quem está brincando de pique. Chiquinho Colibri é o pierrô da estória, tímido e apaixonado, mas seu amigo o salva, pois de malandro só tem a “pinta” e de Arlequim a fantasiosa imaginação, como Maria Minhoca tem, da Colombina, as características Commedia Del’Arte, que Maria Clara Machado imprimiu a toda a montagem. Mas Capitão Quartel é o Ferrabraz de todas as tradições, o falso herói e enganador, eterno como o mundo, perigoso como a ambição. A ambição é caracterizada pelo pai Buldog, admirador da força, praticante da prepotência.
E destes cinco personagens Maria Clara Machado tirou a mais completa de suas peças. Lírica e plena de suspense, como O Cavalinho Azul, minha preferida, ou como Pluft, a preferida de quase todos, possuindo como as outras dessa galeria que é privilégio de Maria Clara, um poder de sedução todo especial, Maria Minhoca, está impregnada de uma consciência maior na luta pelo direito à liberdade. E como tal passará à história como porta-bandeira da paz. Desta paz que a juventude terá quando não mais precisar impor seu direito de amar, seu direito de escolher o próprio amor, chave do direito de viver. Maria Minhoca é um poema de amor entoado em tom de brincadeira infantil. É a peça mais adulta de Maria Clara. É a peça mais adulta deste momento em que tanta gente se digladia para tornar nosso teatro adulto.
Com Maria Minhoca, Maria Clara saltou a barreira do teatro infantil, assentando definitivamente as bases desse teatro adolescente que há muito vem sendo sua especialidade. Um teatro para gente de todas as idades, capaz de equilibrar a pureza de espírito das crianças com o raciocínio dos adultos. Embora o espetáculo mantenha o tom Commedia Del’Arte , o texto da peça atingiu um estilo satírico digno de Feydeau, ainda não atingido por nossos melhores comediógrafos. É esse estilo que, com uma simples frase, um gesto ou uma expressão jogada ao acaso, com jeito de quem não quer nada, define melhor as situações indefiníveis, do que mil pomposos protestos. É esse estilo que faz uma risada espontânea penetrar mais no espírito do público do que uma demonstração de angustia ou de ódio. É esse o estilo que está faltando ao nosso teatro adulto, quer dizer, fichado como adulto. Sergio Porto, se escrevesse comédias, faria um teatro de gênero semelhante, mas o que impressiona no de Maria Clara é a aparente despreocupação em dizer coisas sérias. Essa despreocupação ela poderia levar para peças adultas, levando também a contundente sátira escondida, bem mal escondida, em Maria Minhoca. Sempre pensei que o destino da moça que tão bem entende as crianças, seria continuar escrevendo só para elas, mas agora penso haver chegado o momento de abrir as barreiras que ainda a separam do mundo angustiante dos adultos. Esse mundo começou a ser-lhe revelado em As Interferências, mas eu gostaria de vê-lo satirizado por Pedro Fon-Fon.
Por falar em Pedro, esse personagem tão múltiplo, revelou um dos melhores atores da novíssima geração, senão o melhor, Marcus Anibal, sobrinho de Maria Clara, o grande estreante do ano. Mas, também, com ar de quem está brincando. O Tablado acaba de apresentar um de seus mais homogêneos elencos, em um dos mais tecnicamente perfeito de seus espetáculos. E também isto nos faz voltar ao tempo da criação de Pluft, quando o grupo fundador desse teatro-escola apresentava alguns dos melhores intérpretes do nosso teatro. Esperemos que Maria Lupicínia, Maria Minhoca; René Reis, Mr. João Buldog; Robert Filizolla, Capitão Quartel; Jack Philosophe, Chiquinho Colibri e, evidentemente, Marcus Anibal, Pedro Fon-Fon, continuem no teatro, fazendo a carreira que deles se espera.
Não é milagre que os cenários sejam aquela beleza, pois são de Ana Letícia, uma das maiores conquistas de O Tablado. E por falar nisto, será Maria Clara já foi ver as Ripas e os Bambús, de Ione Saldanha? Não? Então deve correr à Galeria Bonino e encontrará sua próxima floresta encantada.
A coreografia é de Nelly Laport, também sinônimo de perfeição e bom gosto. Excelente a música de Egberto Amim e também a escolha dos trechos musicais aproveitados. Uma novidade das maiores e melhores: o programa cartaz de João Coimbra, que traz o selo de bom gosto da Impressão Lage. Enfim, um espetáculo que ficará até o Natal.