Olhar não é ver
“Galileu” Brecht
A aliança do teatro com o rádio (medias tão diferenciados) conformou registros de uma linguagem singular: o radioteatro e/ou a peça radiofônica. Uma linguagem que logrou uma vantagem que a qualificou (que a qualifica), frente a outros modernos meios de expressão, pelas facilidades de acesso às suas mensagens e por uma capacidade sem igual de atingir públicos (ouvintes) específicos em situações as mais diversas.
Por essa e outras razões acredito, com base no levantamento e atualização de questões estéticas, teóricas e práticas, e no estudo de novos procedimentos tecnológicos de registro e difusão de repertórios selecionados, que o resgate dessa linguagem pode contribuir eficazmente para o enriquecimento do nosso processo cultural/educacional.
As relações entre o rádio e o teatro se originaram com o teatro. Foi o teatro se originaram com o teatro. Foi o teatro que antecedeu e configurou tais relações, e a linguagem nascida desse envolvimento acabou tendo como pressuposto uma maneira de pensar própria do teatro. Assim, os “meios” utilizados terminaram como uma forma de sanar a falta dos elementos óticos que definem a arte dramática. Como expressão auxiliar, a música tornou-se a grande aliada nesse processo: clima dos prólogos, substituta dos entreatos, moldura de cenas variadas, de relatos, pensamentos, etc.
As adaptações teatrais para o rádio resultaram em um modelo que terminou diferenciado da chamada peça radiofônica. Sperber, estudioso da questão, considerou que a peça radiofônica não se resume a essas adaptações. Esse procedimento seria próprio do radio teatro: linguagem que, emprestada dos cubanos e mexicanos, alcançou imensa popularidade nos anos 40,50 e parte dos anos 60, por intermédio dos melodramas que, entre nós, fizeram o sucesso das chamadas novelas de rádio. Essas, inspiradas nos folhetins dos jornais, foram as mentiras das telenovelas.
Parte substantiva do ideário popular da cultura de massas, o radioteatro não postulou certas questões suscitadas pela peça radiofônica. Para George Sperber, foi o avanço tecnológico das duas décadas anteriores a 1980 – ano da publicação, pela EPU, São Paulo, do seu livro “Introdução à Peça Radiofônica” – que abriu possibilidades técnicas para criações originas e que conferiu à peça radiofônica um caráter artístico. Ao reunir os elementos do audível, para além do material musical, e ao ser concebida sem qualquer sinal ótico, a peça radiofônica buscou se diferenciar de outras linguagens como o teatro, o cinema e a literatura.
Em relação à música, Sperber observou que a peça radiofônica marcou sua participações sensoriais, correlações conceituais e impressões acionadas por sinais acústicos. A descrição física desses sinais informando um escalonamento que se dá por procedimentos técnicos, envolve o armazenamento de material acústico e misturas de componentes pré-fabricados que mediante operações específicas (montagem, corte, colagem), podem ser reproduzidos e/ou modificados, de acordo com as intenções dramatúrgicas ou de composição da peça radiofônica (e, porque não, igualmente, do radioteatro).
Com efeito, se no início dos anos 80, Sperber podia glorificar as possibilidades advindas do uso da fita magnética e dos processos de armazenamento e montagem dos trechos eleitos, em uma mesa de mixagem, o que não dizer do uso dos computadores na criação de uma obra radiofônica. No entanto, sem descartar experimentalismos que no limite chegaram a delegar à maquina a tarefa de realizar as operações combinatórias entre som e significado – e o avanço tecnológico, meu interesse está voltado, fundamentalmente, para o tradicional “jogo de personagens” (de “papéis”) próprio da arte dramática. Entendo que as conquistas sonoras advindas dos sintetizadores e computadores são impotentes para a (re)produção de qualquer espécie de voz ou texto humanos: a competência da fala e dos sentidos, envolvendo a elaboração e expressão de um texto dramático cabem, por princípio, a nós mesmos. De resto, não me parece menos artístico adaptar textos teatrais para o áudio. Sem o recorrente emprego de narradores, para a fácil solução de questões como cenário, gestos etc, de textos concebidos para serem vistos (ou lidos), as adaptações podem lograr belos e bons resultados quando privilegiam o jogo das/de vozes.
Parece estimulante, nessa direção, a eleição de ciclos de peças na composição de repertórios para públicos ouvintes variados: adultos, crianças, jovens, estudantes de teatro, cegos, etc. Repertórios que podem ser veiculados por rádios universitárias, comunitárias, e mesmo em salas de aula. O ensino formal do Brasil nunca se notabilizou por fazer valer a importância da dramaturgia. Mesmo quando se atribuiu (se atribui) alguma importância à literatura, em geral surge sempre o refrão de que “ler teatro é chato”. Assim, se de um lado os dramaturgos brasileiros pouco as vezes são convidados para uma visita aos nossos bancos escolares, do outro, as rádios, mesmo as educativas ou comunitárias, curvadas ao imperativo da cultura de massas, raras vezes abandonam o padrão das notícias&músicas&serviços (quando não estão “em cena” os comerciais) .
Sem preterir qualquer forma de expressão penso que “o teatro em ondas sonoras” pode contribuir com eficiência na reinvenção de uma tradição oral silenciada por um modelo que, ao privilegiar a imagem, acabou, seguidas vezes, sufocando a palavra e, por extensão, empobrecendo, por mais contraditório que possa parecer, a nossa imaginação. É parte do que venho refletindo, venho “falando” e buscando realizar.
Eduardo Montagnari
Diretor de teatro e professor de Sociologia na Universidade Estadual de Maringá/PR. Desenvolve atualmente, em nível de pós-doutorado, na Faculdade de Educação/ Unicamp, o projeto “O teatro em ondas sonoras e frequência modulada”. Apresentou e debateu, no 4º Fenatib, seu “experimento” O drama de Alzira e Ernesto, uma adaptação radiofonizada do original Alzira Power, de Antônio Bivar.
Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 4º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2000)