O teatro permite à juventude discutir o mundo, o presente, os desejos de mudança, a história e a linguagem

A Cia. Paidéia acredita que o trabalho com jovens não pode estar isolado da sua pesquisa teatral, uma vez que para dialogar com esse público é necessário conhecê-lo profundamente. O artista da companhia mantém um contato constante com as gerações que se sucedem e que trazem consigo o novo. Para tanto, criou o Núcleo de Vivência Teatral concomitantemente à sua fundação, em 1998. Este projeto com jovens, em paulatina transformação ao longo do tempo, constitui-se hoje num alicerce fundamental do projeto. Em seu trabalho com os jovens do Núcleo de Vivência Teatral, os artistas da Cia. se vêm impelidos a sair de um lugar que poderia ser a princípio confortável, do conhecimento da sua profissão, para assumir funções dos vários campos do teatro, como direção, dramaturgia, preparação de ator, iluminação, música. Durante o processo anual de montagem das peças, a Cia. se reúne semanalmente a fim de discutir todo o processo de montagem e condução dos grupos. Assim, cada artista se coloca como aprendiz, assumindo um ponto de vista que não necessariamente é sua função na companhia e passando a pensar o processo criativo como um grande complexo; de modo que um ator saber sobre dramaturgia, direção, e iluminação, só podem acrescentar ao trabalho artístico e à compreensão do teatro.

Participam de forma gratuita do Núcleo 130 jovens que tem a partir de catorze anos de idade, vindos de todas as classes sociais, a maioria oriunda de bairros da zona sul da cidade de São Paulo.  A cada ano, o grupo se renova – ao menos 50 novas vagas são abertas anualmente – e há um número significativo de jovens que participam do Núcleo há mais de dez anos.

A Vivência Teatral tem como centro das atividades a criação, a montagem e a encenação de espetáculos teatrais. Os encontros são semanais, divididos em vários grupos de trabalho, através de um programa desenvolvido e aplicado pelos profissionais da Cia. Paidéia de Teatro. Com 8 horas de trabalho semanais durante todo o ano, são coordenados por uma equipe composta por nove profissionais. Anualmente acontece no espaço da Paidéia um Festival Internacional, com o qual os jovens se envolvem exercendo diversas funções como: preparação do espaço, organização e funcionamento do café e bilheteria, alimentação dos participantes, técnica dos espetáculos, etc. Desta forma acreditamos estar proporcionando ao jovem um contato íntimo com o fazer teatral, além de conhecerem artistas de outras partes do mundo e tantas diferentes formas de se fazer teatro.

Como viver o presente

O teatro é a matéria comum entre o jovem e o artista; através dele, podem discutir o mundo, os desejos de cada um de mudança, a história, a linguagem. Nesse campo comum chamado teatro, onde tudo é possível, estamos todos ligados ao mundo, somos todos derivados dele uma vez que nascemos numa sociedade que já estava “pronta” e com a qual, não precisamos estar de acordo. Durante algumas horas da sua semana, o jovem é suspenso da sociedade, torna-se inoperante em relação ao mundo da produção, retira-se de seu contexto normal. É o tempo tornado livre. O teatro é uma atividade imediatamente relacionada com a questão existencial de como viver o presente. Através do artista que está também parcialmente situado fora da sociedade, que é alguém que não trabalha no ritmo do mundo produtivo e é responsável por criar o tempo em suspensão, os jovens são chamados ao tempo presente. Eles têm a oportunidade de se relacionarem com o teatro como coisa pública, disponível para uso livre e novo, e assim experimentam a si mesmos como uma nova geração. Quanto ao artista que coordena o grupo, não é aquele que transmite o saber, mas aquele que sustenta a vontade, a vontade de estar ali presente descobrindo a arte e o mundo por meio do teatro. Nessa relação entre o artista e o jovem, a potência criativa e a exposição dos desejos são postos em jogo em via de mão dupla. Ambos estão ali experienciando o que ao mesmo tempo é acessível a todos e sujeito à reapropriação de significado, algo que se tornou público: o direito de vivenciar o teatro.

Ao longo desses 18 anos de trabalho para e com jovens, a Paidéia percebeu a necessidade de envolver o jovem em um processo de formação amplo, que possibilitasse a ele a experiência com os diversos campos do teatro, para além da atuação. Surgiu então o projeto das comissões, em que cada jovem pode optar por fazer parte de um grupo que estuda teórica e praticamente outras diversas áreas que engloba o teatro, como a técnica de luz e som, figurino e cenografia, bilheteria, divulgação. Através da experiência da Vivência Teatral e das comissões, o jovem pode descobrir a si mesmo, capacidades e prazeres que desconhecia, sem que para isso esteja sujeito a determinações diárias em sua vida: a renda da sua família, uma vez que tal atividade não é remunerada e nem o curso é pago; o julgamento da qualidade do trabalho, pois o jovem não está sendo cobrado como profissional; a cobrança produtiva. O único exigido é a disposição para a experiência, para se aventurar na descoberta. O tempo está suspenso, para que possa experimentar, descobrir no teatro tudo que o envolve. É valorizada assim toda e qualquer função, nenhuma ganhando maior ou menor importância que outra, e todas possuindo especificidades e prazeres próprios. Muitos dos jovens que passaram pela Paidéia hoje trabalham em áreas como educação, produção artística, direito, biblioteconomia, saúde, porque tiveram a oportunidade de fazer parte de coletivos que estudavam e exerciam tais funções dentro da Paidéia. Expandiram suas ações para outros coletivos, tornando-se agentes em seus bairros, comunidades, instituições públicas. Grande parte desses jovens ainda se mantém ligados à Paidéia e participam das comissões, passando adiante conhecimentos de suas áreas específicas.

Música como expressão fundamental

Na Vivência Teatral também o trabalho musical é percebido como um elemento fundamental na cena, como uma linguagem expressiva. Por conta disso, desde 1998 é oferecida uma formação em canto coral. Em 2015, este trabalho culminou na encenação de um espetáculo musical sobre a vida e obra de João do Vale, uma dramaturgia própria da Cia. Paidéia. Trata-se ainda de um momento em que todos os jovens se encontram e trabalham em um projeto comum, no qual jovens de idades e experiências diferentes dividem a cena e participam de uma vivência comum.

Desde o princípio, o espaço que é sede da Paidéia foi reformado com esforços de toda a comunidade, alunos, pais, amigos. Sempre foi incentivado o uso do espaço por todas as classes sociais, e no Núcleo de Vivência Teatral se dá esse encontro característico do espaço público. Trata-se de um centro cultural onde outros grupos, nacionais e internacionais, são convidados a se apresentar. Com isso os jovens têm a oportunidade de assistir espetáculos de diferentes culturas e linguagens.

Os grupos do Núcleo de Vivência Teatral são compostos por idades, classes e gêneros diferentes, abertos a qualquer um que queira fazer teatro. A partir do trabalho em grupo são relacionados valores comuns a todos os seres humanos, seus direitos e suas responsabilidades ante o próximo. O declínio do espaço público, que há muitas décadas no Brasil tem sofrido com o abandono por parte da sociedade e do governo, e cujas consequências recaem sobre as classes mais pobres, é um dos quadros que a Paidéia vem buscando reverter, oferecendo ao jovem um espaço com possibilidade real de construção coletiva. No fim de 2015, observamos o fenômeno complexo e significativo da ocupação das escolas em São Paulo. Para além das pautas apresentadas – que também evidenciam a ausência do diálogo com as crianças e jovens em nosso país – vimos como uma das facetas mais instigantes, a necessidade dos jovens de constituírem, em cada uma das escolas, um espaço público e democrático de gestão e convivência. Essa premência do coletivo político, essa necessidade de constituir um projeto que lhes pertença, é desenvolvida com os jovens há anos no espaço da Paidéia. Nesse projeto, cada integrante oferece seus conhecimentos e sua ação para uma elaboração comum – seja a obra teatral ao fim do ano, seja a constituição de fóruns de debate, a limpeza e a manutenção do espaço, seja, ao fim e ao cabo, a constituição de um espaço de convivência e discussão a respeito do teatro e da vida na cidade de São Paulo.

Objetivos

Proporcionar aos artistas da Cia. Paidéia que experimentem funções diversas no processo de criação, colaborando com sua pesquisa acerca do fazer teatral;

Oferecer o teatro como linguagem artística para que as novas gerações se apropriem dele e possam com ele se expressar;

Oferecer o teatro como lugar onde o mundo é colocado para observação, para que se possa refletir sobre ele para então transformá-lo

Com o teatro, discutir e exercer os direitos humanos fundamentais;

Que o teatro torne-se espaço da troca de experiências, sem intermediação de elementos como dinheiro, interesse de determinadas classes ou quaisquer outros que não o bem público e a arte;

Proporcionar um espaço que agregue através do teatro todas as classes sociais, gêneros, raças, diferenças de quaisquer ordens;

Por meio do teatro, constituir junto com o jovem, a noção de espaço público, advindo da construção coletiva; possibilitar, com os jovens, a fruição do teatro por toda a comunidade;

Possibilitar ao jovem experimentar diversas funções ligadas ao fazer teatral, valorizando assim todas as áreas que ele engloba;

Possibilitar ao jovem uma iniciação e prática no campo da atuação;

Ampliar, por meio dos jovens, os campos de ação social para além da Paidéia;

Dar continuidade ao projeto da Paidéia em direção a um futuro criado em conjunto com a juventude.

Amauri Falsetti

É ator, diretor e dramaturgo da premiada e atuante Cia. Paideia de Teatro, sediada em Santo Amaro – SP.

Obs.
Este texto foi lido e debatido por ele, como convidado especial, representando o Brasil, no ‘IV Foro Internacional de Investigadores e Críticos de Teatro para Crianças e Jovens’, realizado na última semana de julho de 2016, em Buenos Aires, Argentina. Foi inicialmente publicado no site Pecinha É a Vovozinha.