Matéria publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 21.06.2013
Tatiana em cartaz, hoje e sempre
Dois espetáculos nos palcos de São Paulo até o dia 30 são baseados na obra da grande autora que nos deixou no sábado passado
Lá se foi, voando lépida pelo céu, no sábado passado, aos 94 anos, uma das autoras mais respeitadas do teatro para crianças no Brasil, Tatiana Belinky. Eu não poderia deixar de escrever sobre ela na minha coluna desta semana. Tenho certeza de que muito ainda veremos de sua obra nos palcos do Brasil e, por isso, não há despedida que seja possível para alguém que se eternizou da forma mais linda: amando as crianças.
Quem já quiser homenageá-la no teatro tem duas chances de prestigiar trabalhos inspirados em sua obra, em cartaz em São Paulo: a peça Crônicas de Cavaleiros e Dragões – O Tesouro dos Nibelungos, no Sesi, e o show Tic Tic Tati, da cantora Fortuna, no Sesc Santo Amaro, ambos até o dia 30 de junho. No ano passado, um grande amigo da escritora, o ator e diretor Rony Guilherme realizou um espetáculo biográfico, lindo e poético2, chamado Um Punhado de Letras para Enfeitar os Cabelos de Tati. Tomara que volte à cena. Tatiana foi à estreia e se emocionou muito.
“Quando eu era menina, na Rússia, eu sempre dizia que queria ser uma bruxa. Uma bruxa?, me perguntavam os adultos, com surpresa. E eu respondia: É, uma bruxa. Bruxa é bonita e tem poderes… Fadas são umas chatinhas, sempre muuuuito certinhas… Aí, quando eu cheguei ao Brasil e conheci a Emília do Monteiro Lobato, eu pensei assim: Não, não quero mais ser bruxa, eu quero ser a Emília.”
Tatiana Belinky, menina russa de São Petersburgo, veio para o Brasil com 10 anos de idade e nunca mais parou de ser Emília. Naquele momento, pode até ter abdicado de ser bruxa, mas jamais deixou de ter poderes. Poder de nos enredar com suas histórias muito bem contadas. Poder de fantasiar sem limites e, dentro deste mundo de fantasia, ensinar os mais nobres conceitos de cidadania. Poder de fazer rir, de fazer chorar. Poder até de amedrontar, por que não? Poder de fazer poesia, de fazer teatro, de escrever livros infantis. Poder de traduzir contos russos para os leitores do Brasil. Poder de instaurar o brilho nos olhos de uma criança. Poder de devolver o brilho aos olhos de um adulto e fazê-lo voltar a ser criança.
Ao lado do médico e educador Júlio Gouveia, com quem se casou e teve dois filhos, Tatiana escreveu para a televisão a primeira adaptação do Sítio do Pica-pau Amarelo. O casal trabalhou dentro de casa… E foi um sucesso retumbante, que abriu a mente engessada dos adultos, dirigentes de emissoras, para a importância de se usar a televisão como veículo de arte e educação para as crianças. Tatiana não só se tornou Emília, por paixão e identificação pela boneca de pano mais falante e intrometida do mundo, como proporcionou que muitas e muitas outras gerações de meninas também tivessem vontade de ser a Emília do Lobato.
A obra infanto-juvenil de Tatiana Belinky, para teatro, para literatura, para televisão, foi reconhecida também pelos acadêmicos mais ferrenhos, a ponto de a autora ter conquistado, em abril de 2010, com louvor, a cadeira de número 25 da Academia Paulista de Letras, agora mais uma vez vaga.
Ela nunca teve pressa de terminar uma história, e mantinha o ritmo certo de uma narrativa sem se importar com a agilidade de internet das crianças de hoje. Tatiana estava mais preocupada em preservar o encantamento. Deixava o sonho e a fantasia pairando suspensos sobre nós, seus leitores desde a mais tenra idade, sem ponto final possível, mas com muitas exclamações, interrogações, reticências… Se os pais se aproximavam de Tatiana e lhe tascavam sua lamúria preferida: “Eu mando meu filho ler e ele não lê. O que é que faço?”, Tatiana respondia, com gosto: “Comece por não mandar. Livro não é castigo, não é tarefa, não é chateação.”
Em tudo o que Tatiana fazia, ficava patente: ela tinha um bom humor sem limites e considerava criança uma delícia. Ela dizia: “Criança é um público maravilhoso, interessado. Nunca se deve subestimar a inteligência de uma criança. Fazem perguntas que precisamos estar prontos para responder ou ser honestos o suficiente para dizer ‘não sei’”. Repito. Em tudo o que Tatiana fazia, ficava patente: Tatiana é que era uma delícia. Já com o corpo bastante fragilizado de uma senhorinha distinta de 94 anos, ela manteve até o fim, como sempre quis, a cuca fresca e a língua destravada de sua querida boneca Emília. No Brasil, ela virou também a rainha dos límeriques, aquelas trovinhas curtas, de origem irlandesa, que brincam com as palavras e formam versos rimados. Lançou vários livros com divertidas traduções dos limeriques da Irlanda.
Mas sua frase preferida, conforme ela me contou certa vez, era mesmo escrita em português, a língua do poeta Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena.” Também adorava contar para todo mundo a história daquele bilhete que ela escreveu para um amigo havia mais de 50 anos e que, muito recentemente, alguém devolvera a ela, com o mesmo texto, sem saber que era a própria Tatiana a autora da frase. “Mas fui eu quem escreveu isso, há mais de 50 anos!”, exclamou ao ler o cartão. “Voltou pra mim, voltou pra mim!!!”, comemorava a menina sapeca que ela sempre foi, com muito orgulho. Era coisa do tempo, querendo também brincar com a irrequieta Tatiana. Afinal, só ela é que podia zombar dele, atrasando as horas com todos os seus deliciosos ‘Era Uma Vez’?
E o que estava escrito no tal bilhete de Tatiana? Uma trova, claro, comum à época, bem singela, sobre o valor da amizade. “Ouça amigo esta verdade, lembre-se dela aonde for, nem sempre amor é amizade, mas toda amizade é amor.” Nosso eterno agradecimento a você, querida Tatiana, amiga das crianças, amada das crianças. E como lindamente lembraram no domingo passado, durante a cerimônia de seu sepultamento, nem ousemos nunca mencionar o ponto final. Não há ponto final nas histórias de Tatiana Belinky. Sua passagem por aqui vai continuar rendendo frutos para sempre sempre sempre sempre sempre sempre sempre sempre sempre sempre
Serviço
Crônicas de Cavaleiros e Dragões – O Tesouro dos Nibelungos
Teatro do Sesi
Av. Paulista, 1.313
Tel. 3146-7406
Quartas às 21h, sábados e domingos às 16h
Grátis
Até 30/06
Tic Tic Tati. Com Fortuna
Sesc Santo Amaro
Rua Amador Bueno, 505
Tel. 5541-4000
Sábados e domingos, às 16h
Ingresso de R$ 2 a R$ 8
Até 30/06