Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Eliana Yunes – Rio de Janeiro – 07.06.1986

Barra

Quando as personagens ganham vida

O que está anunciado como teatro de bonecos – a peça Fio de Linha, no Teatro Sesc da Tijuca, é mais que isto. Como o título sugere há um fio que tanto pode ser o cordel material, quanto a linha narrativa do espetáculo. Texto premiado com o 2º lugar no III Concurso Nacional de Textos para Teatro de Bonecos (1980) e tendo recebido da RioArte o prêmio Auxílio de Montagem para Teatro de Animação (1985), teve da direção um tratamento original e extremamente criativo. Não que seja nova a rebelião de personagens contra seus autores, ponto de partida do texto, no qual dois atores criam uma outra história, de bonecos, cujas personagens por sua vez desenvolvem a sua fazendo ficção dentro da ficção, como num jogo de caixas chinesas.

A dificuldade de transpor estes planos para o palco é enfrentada com muita imaginação e poucos, mas preciosos recursos. Assim os atores/bonecos distinguem-se dos atores/autores pelo figurino que evidencia suas formas de pano com enchimento. Os bonecos de animação tradicionais correspondem aos espectadores da cena, enquadrados nas janelas do casario da vila operária, no fundo do palco.

O texto, sempre lúdico e, em certos momentos, poético, acompanha a caravana de um circo mambembe que luta para sobreviver diante de seus “autores”, dos preconceitos da população e do “zelo” fiscal. O primado da linguagem teatral com cenários animados , manipulação de objetos, a movimentação e expressivo trabalho corporal do ator em cenas mudas é uma opção feliz da diretora Alice Koenow.

Contudo, neste fio em que uma história puxa outra história, em que a alegria da invenção se mescla com as contradições do real, em que convivem sonhos de bonecos e questões sociais, a comunicação do conjunto fica comprometida, restando à criança a compreensão isolada de partes do espetáculo. A alternância dos planos narrativos se constitui em evidente riqueza para a exploração de recursos cênicos, mas sua contiguidade no palco, sem cortes mais contundentes das cenas (a marcação se apoia no ritmo próprio de cada uma, sendo que a iluminação poderia ajudar mais) exige atenção ininterrupta do espectador mirim para o espaço referência dos acontecimentos.

Ele está cativado desde o início pelo excelente trabalho de animação compreendido nas sutis relações das personagens com seus espaços internos, sentimentos, personalidade; e externo, vizinhança, trabalho, etc. Detalhe do corpo ou do ambiente tornam-se de fato signos que dão acesso à compreensão específica de certas situações.

Tudo foi extremamente cuidado, a música e o som transformados também em elemento de animação; figurinos e adereços extremamente plásticos, assim como certas cenas mudas em que a composição passa o clima do “texto”. A sintaxe elaborada não rompe com a unidade plástica, porém torna mais árdua a decodificação do todo, tanto na cena finalíssima, quando o ator retoma o “fio da história” e vem repassá-lo às crianças da plateia, a hesitação em torná-lo, sendo natural, se intensifica pela leitura pouco clara que alcança realizar de imediato. Mas como no bom teatro a catarse se renova uma vez percebido o sentido, todas elas saem dizendo que gostariam de ter tocado no fio de linha imaginária.