Cena de Brincando com Fogo, do grupo Manhas e Manias

O MPB-4 em Adivinha o que é, musical infantil

A partir da esquerda, Sérgio Fidalgo, Silvia Aderne, Tarcíso, Regina Linhares e Beto Coimbra: o grupo Hombu em Ou Isto ou Aquilo

Cena de As Três Luas de Junho e uma de Julho

Matéria publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 26.12.1981

Barra

Teatro Infantil, Avaliação e Perspectivas

Muitas peças em Cartaz, poucos Autores. E, apesar da comercialização, um avanço

Programa de cultura e lazer restrito, o teatro infantil carioca chega ao final de 1981 com um número impressionante de peças apresentadas, entre as quais foi destaque Brincando com Fogo, do Manhas e Manias.

A maioria deu prejuízo, mas novas peças entram em cartaz. Faltam autores, um dos poucos é Tônio Carvalho, autor de As Três Luas de Junho e uma de Julho, há uma grande tendência para o musical, os grupos meramente comerciais seguem ganhando dinheiro, enquanto grupos mais conscientes e jovens vão começando a tomar conta do mercado de boa qualidade. Mesmo com vocação suicida, o teatro para crianças avança. E hoje se pode afirmar: nem só de Tablado vive o teatro infantil no Rio.

A média, nos últimos meses, foi de 50 peças infantis em cartaz no Rio de Janeiro, a cada fim de semana. É muito difícil fazer um cálculo de quantas peças infantis foram encenadas em 1981 pois, se existem espetáculos que ficam meses e meses em cartaz, há os que realizam uma trajetória-relâmpago, sem o menor cuidado com a divulgação. E há ainda aquelas produções mais velhas que a maioria da plateia infantil: peças que se repetem anos e anos, entram e saem de cartaz com a maior sem-cerimônia, têm uma péssima qualidade e exploram o rico filão de Branca de Neve, Cinderela, Gato de Botas, Pinóquio, Papai Noel, Os Três Porquinhos, O Sítio do Pica-Pau Amarelo, etc., sempre em adaptações que só empobrecem o texto original e em encenações que só envergonham aqueles que têm um mínimo de respeito pelas crianças. É possível, então, que neste ano de 1981 se tenha chegado a um número recorde de peças em cartaz no Rio: algo em torno de 200 espetáculos.

Essa conclusão nos leva a uma consequente frustração: na hora de escrever um artigo sobre o que aconteceu no teatro infantil, o analista não consegue ter em suas mãos o quadro total pois, havendo espetáculos apenas aos sábados e domingos, fica praticamente impossível assistir a tudo. Dessa forma, a análise se baseará nas peças assistidas, em todo caso, a grande maioria.

A primeira observação é sobre as tendências que norteiam o melhor teatro infantil feito hoje. E, inicialmente, há duas vertentes muito claras e até complementares: a pouca renovação no quadro de autores, o que determinou um impressionante número de peças adaptadas, e a presença cada vez maior de grupos cooperativados, com uma média de idade bastante baixa, na faixa dos 20 anos. Trabalhando com textos criados coletivamente, ou buscando adaptações de folclore, literatura infantil ou, ainda, criando espetáculos cuja característica mais forte é o ludismo e não o texto, esses grupos são, hoje em dia, a base do bom teatro infantil carioca. Os autores mais antigos geralmente escrevem sobre personagens-crianças, mas sempre do ponto de vista dos adultos. Muitas e muitas peças foram escritas com o intuito de mostrar às crianças como ser um bom filho, um bom cidadão, um perfeito e feliz ser humano. As peças desses grupos mais jovens pretendem praticamente o mesmo: que as crianças sejam seres humanos ricos. Mas todos os elementos de conflito são vistos sob o ponto de vista das crianças e não dos adultos, o que permite uma maior cumplicidade com o público infantil, com palco e plateia falando praticamente a mesma língua. Alguns grupos já apresentam uma certa continuidade de trabalho e podem ser citados como expressivos: Manhas e Manias, Brincando com Fogo; Hombu, Ou Isto ou Aquilo; Tapa, O Anel e a Rosa; Além da Lua, Vira-Avesso; Lua Me Dá Colo, Um Telefonema para o Japão e O Tablado, Os Cigarras e Os Formigas. A lamentar a ausência, neste ano, do grupo Navegando, que encenou Passa Passa Tempo, em 1980, e conquistou a maioria dos prêmios da temporada.

A terceira tendência é o da música, em que o expoente em 1981 foi o show Adivinhe o Que É, realizado no Canecão pelo MPB4, com direção de Benjamin Santos. Outro grupo também com continuidade de trabalho na área do musical foi o Bloco da Palhoça que, com Canto de Trabalho, atualmente em cartaz no Teatro Quintal, de Niterói, não alcançou a mesma comunicação de seu trabalho do ano anterior, Música para Brincar e Cantar, apesar do bom nível do espetáculo.

Ainda no campo do espetáculo, além dos trabalhos já citados, destacaram-se os seguintes: As Três Luas de Junho e Uma de Julho, estreia do Grupo Teatro Feliz Meu Bem; O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, a adaptação do texto infantil de Jorge Amado realizado com Luísa Lagoas; Parabéns pra Você, criação coletiva; Vamos Brincar de Brincar, uma experiência sem palavras de Luís Sorel; e Sonhe Com os Ratinhos, texto e direção de Ricardo Maurício. Como diretores, além dos já citados, há José Lavigne, Brincando com Fogo; Maria Clara Machado, Os Cigarras e Os Formigas; e Adhelmar de Oliveira, Viagem à Imaginação, um espetáculo criativo em cima de um texto fraco.

Na categoria dos autores, o destaque maior para Tônio Carvalho, que conquistou o Prêmio do Concurso de Dramaturgia do Serviço Nacional Teatro em 1980, com As Três Luas de Junho e Uma de Julho, e que bisou o feito ao vencer o concurso deste ano com Histórias de A-Y-A: A História Feita de um Dia e Seis Lençóis; destaque também para Andre Felipe Mauro,Vira-Avesso e Ricardo Maurício, Sonha com os Ratinhos. Na cenografia, os melhores trabalhos foram de Maurício Sette, Os Cigarras e Os Formigas; e do Grupo Hombu, Ou Isto ou Aquilo. Os melhores figurinistas foram o Grupo Manhas e Manias; Kalma Murtinho, Os Cigarras e Os Formigas; o grupo Além da Lua; Vicente Maiolino, Sonia Piccinin e Jane Kopelman, As Três Luas de Junho e Uma de Julho; Adhelmar de Oliveira, Viagem à Imaginação; Luís Sorel, Vamos Brincar de Brincar; Marco Antônio Palmeira, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá; e Maria Carmem, Adivinhe o Que É. Como aderecista, destaque para Marilda Kobachuk, adereços e bonecos de Adivinha o Que É, e Américo Issa, A Busca do Cometa. Neste ano, foram muitos os que apresentaram bons trabalhos na área da música para teatro: João de Barro, Viveiro de Pássaros; Ubirajara Cabral, Os Cigarras…; Ronaldo Mota, As Três Luas…; Renato Rocha e MPB4, Adivinha o Que É; Beto Coimbra e Caíque Botkay, Ou Isto ou Aquilo; Gustavo Ariani e Carlos Vieira, Cinco Mil Passos; Zé Zuca, A Mágica da Praça; André Felipe Mauro, Cláudio Felipe e Patrícia de Mauro, Vira-Avesso; Ronaldo Ciambroni, Viagem à Imaginação; e Mauro Dellal e Marcos Proença, O Gato Malhado…. Na iluminação, Os Cigarras… nos presenteou um belo trabalho de Cláudio Neves. E, finalmente, na área de interpretação, muitos destaques, sendo que, para não fugir à regra, os bons trabalhos femininos são em maior número: Denise Weinberg e Priscila Rosenbaum, O Anel e a Rosa; Eliane Dutra e Maria Alice Mansur, O Gato Malhado…; Fernanda Caetano e Mitota, Te Amo Amazônia; Bia Nunes, Os Cigarras…; Fátima Malheiros, A Gema do Ovo da Ema; Rosane Gofman, Parabéns pra Você e Carina Cooper, Brincando com Fogo. Entre os atores, destacaram-se Chico Terto, Te Amo Amazônia; Bernardo Jablonski e Toninho Lopes, Os Cigarras…; Chico Diaz, Brincando Com Fogo; Charles Myara, O Anel e a Rosa; e Marco Antônio Palmeira, O Gato Malhado.

As perspectivas para 1982 são de continuarmos com um teatro infantil sem adequada infra estrutura: continuará recebendo as sobras de espaço, cenários e iluminação deixados pelo espetáculo para adultos que se apresenta no mesmo teatro; continuará com a promessa de ser tentado o teatro infantil diário, num convênio em que entrariam os grupos, o Serviço Nacional de Teatro e as Secretarias de Educação, estadual e municipal, para crianças da rede escolar irem ao teatro durante a semana; e, por não ser diário e ter apenas duas bilheterias semanais, o teatro infantil continuará deficitário; mas, certamente em 1982, acentuando sua vocação de kamikaze, apesar de deficitários, serão estreados centenas de espetáculos, talvez cheguemos a marca dos 300, “a maioria com as cadeiras”; as terríveis adaptações de Branca de Neve e companhia ajudarão bastante a manter este bolo cada vez mais fermentado.

E, para a felicidade das crianças e dos pais que as acompanham e, muitas vezes, sofrem com o baixo nível dos espetáculos, certamente 1982 nos trará novos trabalhos do Manhas e Manias, do Tablado, do Hombu, do Navegando, do Bloco da Palhoça, do Além da Lua, do Lua Me Dá Colo, do Tapa. E essa perspectiva revela que o teatro infantil carioca, apesar de tudo, vive um grande momento. Antigamente, na previsão para o ano seguinte, a única esperança de um bom trabalho estava no Tablado.

Mexer com a Emoção, Um Ato Revolucionário

Com três peças escritas e todas premiadas, As Três Luas de Junho e Uma de Julho, prêmio SNT-1980; História de Um Dia e Seis Lençóis, prêmio SNT-1981; e Mistério do Boi Surubim, Prêmio Fundação Rio, Tônio Carvalho se destaca como um dos raros autores, na atual temporada de teatro infantil. Ele não acredita, porém, que essa carência de autores seja um privilégio do teatro dedicado às crianças.

– Existe uma carência mais geral, que é a de produtores de cultura. É verdade que são poucos os autores, mas são também poucos os bons desenhistas, os músicos de qualidade e os artistas em geral que têm aparecido ultimamente – diz Tônio.

E uma das causas que ele aponta para isso é a falta de interesse das universidades em formarem esses profissionais. Problema que vivenciou de perto quando, taxadas de “supérfluas”, foram suspensas as aulas de Teatro na Educação que dava na PUC.

Tônio vê com desconfiança o grande aumento do número de peças em cartaz, muitas das quais levadas ao mesmo tempo por uma só companhia e mais parecendo, como ele diz, “festinhas escolares de fim de ano”.

– Acho que o maior investimento que se vem fazendo no público infantil é cheio de segundas intenções. Não é a qualidade que importa, e sim preparar a criança de hoje para ser o consumidor de amanhã. A criança é muito maltratada, no mundo atual.

Trabalhando há muito tempo na área infantil, com uma experiência, pelo interior do Rio e de São Paulo, de teatro em escolas, parques e praças, foi “a maneira equivocada” de tratar as crianças uma das principais motivações que o levaram a escrever.

– A criança, ao contrário do que muitos pensam, não é uma miniatura do adulto. Ela pensa, sente, tem a sua imaginação e uma reflexão própria do mundo em que vive e das relações interpessoais. No teatro, todo esse potencial é aguçado pelo contato vivo com os acontecimentos em cena. É uma coisa dinâmica, com a criança participando.

Embora admitindo a especificidade de se escrever e fazer teatro para os menores – um teatro feito somente aos fins de semana, nas condições mais precárias, destaca – Tônio Carvalho não vê razão para a rígida diferenciação dos rótulos “infantil” e “adulto”.

– Eu escrevo para crianças, sim, mas para a minha criança, a tua criança, a criança de todas as idades. Escrevo para as crianças da Terra, que somos todos nós.

E por isso que toca igualmente adultos e crianças. Não são poucos os pais que, emocionados, vêm falar-lhe no camarim, após a apresentação de As Três Luas de Junho e uma de Julho, ópera caipira em que é também ator. Quebrando uma longa tradição do teatro infantil, ele não se preocupa com didáticas mensagens ou com a famosa ”moral da história”.

– A minha matéria prima é a emoção, uma das coisas mais destruídas nesse mundo de hoje. Por trás disso, portanto, existe toda uma mensagem política, econômica etc. Quer coisa mais revolucionária, hoje em dia, do que mexer com a emoção das pessoas?

Ganho Máximo, Um Salário Mínimo

Um trouxe a experiência de capoeirista, outro de mágico, dois já haviam cursado a Escola de Circo de São Paulo e outros feito o curso da Maria Clara Machado no Tablado. Foi assim que, no início do ano passado, após uma noite festiva e unidos pela paixão circense, surgiu o Manhas e Manias, grupo formado por nove jovens, entre 18 e 24 anos: André Beltrão, Carina Cooper, Chico Diaz, Cláudio Baltar, Mário Dias Costa, Márcio Trigo, Zé Lavigne, Deborah Bloch e Pedro Moreira, que apresentou, este ano, um dos mais criativos espetáculos infantis, Brincando com Fogo, pelo qual ganhou sete indicações para o Mambembinho.

A primeira peça, portanto, tomou a forma de um show de variedades, a maneira de reunir todos os potenciais e ideias.

Chamando-se inicialmente Diante do Infinito, era destinada aos adultos. Só depois, já com o nome Manhas e Manias foi adaptada para o público infantil, quando conseguiu projeção e o prêmio SNT de melhor espetáculo de 1980. O grupo, porém, não pretende especializar-se em teatro infantil. O que o identifica, além da forte ligação com o circo, é a crença na importância da criação coletiva.

– A gente preza muito isso de ter várias cabeças funcionando, em vez de uma só – diz Zé Lavigne, – Nós não trabalhamos com um texto pronto de antemão, mas o escrevemos juntos, em cena. Texto em teatro não é só palavra, mas é também fraseado do corpo. Buscando sempre a troca, a ideia coletiva, a gente faz escrevendo e escreve fazendo.

Quando por sugestão de Isis Baião, do Parque Lage, adaptaram para crianças a peça Diante do Infinito, não foram buscar em livros o entendimento da psicologia infantil, mas na própria infância de cada um e no que ainda hoje trazem de criança. E levaram tão a sério a tarefa que, nessa época, como conta Chico Diaz, entraram “num clima de bobeira que só vendo…”.

– Não procuramos uma coisa de fora para dentro. Todo mundo tem um lado criança. Mesmo um alto financista tem um hobby, como brincar de trem elétrico ou outro qualquer. Aprofundamos, então, esse lado, e não queremos abandoná-lo.

E conseguiram o que queriam pois, além dos elogios da crítica, ganharam o reconhecimento das crianças que, compenetradas e emocionadas, assistem, na abertura de Brincando com Fogo, a um solo mudo de dez minutos, sem que a atenção se desvie.

Ganharam também um manejo de palco que o público infantil – “a plateia mais sincera que há” – ajuda a dar.

Mas, se as coisas vão bem em termos de reconhecimento, o mesmo não ocorre quanto às finanças do grupo.

Fazer teatro infantil, como contam, ainda é um desafio. E nem se fale em sobrevivência.

– Mesmo prestigiado pela crítica, nem sempre o teatro está cheio.

Assim, nos melhores meses, quando o negócio está bom mesmo, a gente ganha, no máximo, um salário mínimo para cada um.

Vivendo de biscates e apresentações em festinhas de aniversário, o Manhas e Manias pretende agora achar um teatro na Zona Norte, para mostrar o Brincando com Fogo, em cartaz até o fim do mês no Teatro Ipanema.

Enquanto procuram “outros públicos”, iniciam também a preparação do próximo espetáculo que, desta vez, não deverá ser dirigido ao público infantil.