Crítica publicada no Site do CEPETIN
Por Maria Helena Kühner – Rio de Janeiro – 23.03.2009
Entre notícias transmitidas via cachorrogramas e estrelas cadentes com pinta de Mazzaropi, Quixotesca e Pançuda! O Roubo dos Anéis de Saturno abre para si mesmo um potencial desafio para o futuro. É tentador imaginar a premissa desenvolvida no texto e na direção de Larissa Câmara de apresentar um “Dom Quixote” de saias, transposta para o plano do teatro adulto. Pelo menos no âmbito dos palcos infantis, para plateias a partir de cinco anos, a autora/encenadora teve resultados dos mais felizes por conta de seu investimento na fabulação no diálogo com a astronomia. É no plano celeste que o Cavaleiro da Triste Figura, no caso a Cavaleira, cuja cabeça cervantina vive entre as constelações do devaneio, travará um combate ferrenho contra o ceticismo, amparada no florete afiado da delicadeza.
Em cena, Quixotesca (Larissa, que transborda charme mesmo de armadura) e Pançuda (Brunella Providente, o cinto de segurança cômico da montagem) investigam o sumiço das joias mais valiosas do sistema solar, os anéis de Saturno, representando por uma
estrutura que mais parece um box de chuveiro. Aliás, essa aparência exótica do anelado planeta é um dos muitos exotismos da cenografia de Fidel Reis e do figurino de Claudio Serra. Como luneta, Quixotesca usa uma concha de feijão. Como Rocinante, ela emprega uma vassoura velha. Um eclipse solar é representada por uma capa preta. Há pouco mais do que isso em um cenário quase todo em puro breu, no qual se fitam poucas estrelinhas presas à parede. Essa “dieta” de elementos cenográficos favorece (e muito) a busca estética do texto de Larissa, que serve de coluna vertebral ao espetáculo: o grande inimigo de olhos quixotescos é a falta de imaginação. Se é assim, qual é o sentido de se confiar a adereços materiais uma caracterização de mundo que é legislada pelo sonhar? Como pouco, Larissa e Brunella fazem muito.
Na trama, de tintas detetivescas, as duas heroínas – Quixotesca impelida pelo idealismo e Pançuda regida pelo estômago – inspecionam o espaço à cata de pistas que as levem ao anéis perdidos do apavonado Saturno, cujo falar grave e impostado denota sabedoria. Entre encontros com tipos inesperados, como uma estrela caipira e uma aparição de São Jorge, que dá uma ajudinha às protagonistas em um recurso de deus ex machina, as “mocinhas” desse jogo de gato e rato fazem desfilar aos olhos do público rudimentos de educação astronômica apresentados com graça e bom humor. Há um investimento excessivo em lugares-comuns que empobrecem os diálogo, com tiradas enferrujadas como “vão-se os anéis, ficam os dedos” e obviedades dessa ordem. Mas sacadas como “A constelação do passarinho me contou…” compensam a aposta no óbvio, que não chega a fragilizar a dramaturgia.
Frente a um contexto cênico de montagens luminosas do texto de Miguel de Cervantes, como o musical escrito por Ruy Guerra encenado por Ernesto Piccolo em 2008, e uma experiência de linguagem do grupo português Chapitô, levada aos palcos cariocas em
2003, a peça de Larissa e Brunella resolvem no terreno da afetividade uma angústia estética que rondava as adaptações do romance desde a década de 1950. Ao mostrar a amizade como a base da relação entre o homem de La Mancha e seu obeso escudeiro, o engenho dramatúrgico de Larissa elimina as sombras da luta de classes que, em leituras marxistas, alimentava a relação entre os dois personagens de Cervantes. Essa leitura dominou as encarnações dos “anti-heróis” no cinema, vide Dom Quixote (“Don Kikhot”, 1957), do russo Grigori Mikhailovich Kozintsev (1905-1973). Para as crianças que passarem pelo Teatro Gláucio Gill aos sábados e domingos, às 17h, até 5 de abril, saem as marxices e fica a gargalhada.