Crítica publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 22.08.1981
O amor do pobre
– “É a riqueza do rico contra o amor do pobre”.
Essa foi a definição que uma das poucas crianças presentes deu à peça Bão, vinda de Portugal, e que o Serviço Nacional de Teatro trouxe ao Rio aproveitando a carona do Festival Internacional de Teatro. E, nesta definição infantil, está a essência da realização, em que o mundo é dividido esquematicamente, de modos didáticos, maniqueístas e, consequentemente, falho, o rico tem dinheiro, o pobre tem amor; o rico é insensível e quebra os vasos de barro; o pobre ama a natureza e cultiva as plantas; o rico é sempre ranzinza, mau humorado, narigudo, barrigudo (bruxa), enquanto o pobre é alegre, carrega uma criança dentro de si, brinca com balões de encher e com patins, adora cantar e dançar, e seu corpo é visualmente mais harmônico (fada). Na verdade, através de um opressor e de um oprimido, através de uma vítima e um carrasco, conta-se uma história de fadas e bruxas, de mocinhos e bandidos, tendo como final, evidentemente, a vitória do bem (o mocinho-fada-pobre) sobre o mal (o bandido-bruxa-rico). O Grupo Comuna, de Portugal, afirma que Bão não é um espetáculo infantil: é uma encenação para todas as idades. Entretanto, realizar um espetáculo com um nível de interesse para todas as faixas etárias é uma proposta difícil de ser realizada. O tema (uma metáfora da revolução portuguesa) é mais para adultos; a linguagem de “clown”, de um modo geral, agrada as crianças. Mas a busca de equilíbrio entre esses dois aspectos acaba esvaziando a eficácia de ambos. As crianças curtem lances como os da água, dos balões de encher, dos patins; e, nos demais momentos, permanecem um tanto distantes e frias. Por outro lado, para os adultos, a abordagem política é insatisfatória, superficial, tem gosto de coisa já vista e revista. A observação mais importante me parece, é a de que Bão, no palco do Teatro Glauce Rocha, é uma peça fora de seu contexto. Ela foi criada logo após a revolução portuguesa para mostrar a queda do opressor pela ação do oprimido; ela foi criada para ser levada ao povo nas praças; por isso, não tem palavras, ação tem que falar por sai só. Imagino o grau de euforia que deve se apossar da plateia portuguesa quando o opressor é derrubado e cai. Entretanto, aqui, no Rio, esse é um momento apenas frio. A ponte emocional que existe entre a peça e os portugueses não existe aqui, já que a peça fala de um tema universal (opressor versus oprimido), mas de um modo tão pobre, que retira sua força apenas dos aspectos circunstanciais da política de Portugal. A peça alcançaria muito mais seus objetivos e muito mais as faixas etárias pretendidas se fosse realizada na Cinelândia, na Praça Tiradentes, na Praça Quinze, na Central; outros ambientes, outra relação com o espectador, outros espectadores. A destacar, a linguagem de símbolos da encenação e o trabalho de João Mota; domínio técnico, humor, força de comunicação, Bão fica em cartaz apenas este final de semana.