Cena de Os Três Mosqueteiros, que estreia hoje no Jardel Filho. Foto: Luiz Carlos Murauskas

Crítica publicada na Folha de São Paulo
Por Mônica Bonvicino – São Paulo – 26.03.1988

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Os Três Mosqueteiros saem dos livros e chegam ao palco

Os Três Mosqueteiros – De Alexandre Dumas. Adaptação: Ney Carrasco. Direção: José Ferro. Com Tadeu Menezes, João Francisco Garcia, José Parisi Jr., Nivaldo Todaro e outros. Teatro Jardel Filho (Av. Brig. Luís Antônio, 884, tel. 35-8433, Bela Vista, zona central). Sábado, às 16h. Domingo, às 11h e 15h30. Ingresso: Cz$ 300,00.

O ato crítico é severo. Sem severidade ele transforma o objeto da crítica em publicidade. Para resgatá-lo da propaganda e ao mesmo tempo alimentar a peça teatral, cabem aqui a respeito de Os Três Mosqueteiros, que estreia hoje no teatro Jardel Filho, algumas observações dialógicas.

A peça corre pelo fio tênue da ambiguidade. Mantém um bom padrão de espetáculo, possui o lado aventureiro e empreendedor, resultado do esforço da direção de José Ferro para um bom desempenho de representação teatral. Pretende ficar um ano em cartaz. Ao longo desse tempo, é previsível que haja mudanças para melhor, produzindo uma apresentação mais fluente. A cena final, por exemplo, faz uma fusão de muitos desenlaces e sua apresentação ficou confusa.

Trama Complexa

Por outro lado, esse espetáculo revela que a ideia de monarquia enquanto forma de governo, embutida no seu tema, está muito presente no espírito humano. A origem da monarquia é divina, emprestando poderes divinos a um homem de sangue azul que vai tutelar e salvar os outros homens. “O Estado sou eu”, dizia um rei de França.

O romance do francês Alexandre Dumas (publicado em 1844) no qual a adaptação da peça é baseada tem uma trama complexa. Nele há a trama principal e muitas outras secundárias que se entrelaçam e formam um verdadeiro emaranhado, para o leitor decifrar. Este clássico “todo mundo” conhece. Com personagens históricos, na sua maioria, o autor construiu enrede ficcional. A rainha da França, que é Ana da Áustria, está apaixonada pelo 1º ministro da Inglaterra, o duque de Buckinghan. É correspondida. O cardeal Richelieu quer diminuir o poder da rainha e ganhar mais influência junto ao rei da França, Luís 13. Para tal, tenta desvendar o amor entre os dois. Milady de Winter é uma dama da corte que o ajuda nessa tarefa. O desfecho com favorecimento da rainha é solucionado com a ajuda de D’artagnan e dos três mosqueteiros. D’artagnan é recompensado pela proeza sendo nomeado mosqueteiro pelo rei.

Foi essa a simplificação didática que fez Ney Carrasco, o adaptador da peça, ao transformar o romance em peça dramática para o espectador infanto-juvenil. É com similar estrutura que a obra de Dumas é adaptada para o livro Os Três Mosqueteiros, de Miécio Táti (Ediouro, 123 páginas), com a diferença de, no livro, as tramas secundárias, como é natural do suporte, serem mais desenvolvidas.

A história da peça é ágil e a síntese dá ênfase a uma interpretação preocupada em representar pela fidelidade à uma época passada. Não elabora pela rebeldia, como por exemplo, pelo distanciamento crítico cunhado por Bertolt Brecht (1898-1956).

D’Artagnan Ingênuo

D’artagnan e os três mosqueteiros fazem parte da polícia especial da realeza. Possuem o único ideal de servir ao rei. Os atores João F. Garcia, José Parisi Jr. E Nivaldo Todaro, que representam os três mosqueteiros, são bons de palco. São mais inteligentes que seus personagens e conseguem torná-los mais destacados do que D’artagnan, representado pelo ator Tadeu Menezes. Em contraposição ao livro, que tipifica D’artagnan como um líder gascão, apesar de ser jovem e inexperiente, a peça mostra um D’artagnan apenas ingênuo, que é geralmente conduzido pelos três mosqueteiros. Talvez a força de atuação daqueles atores tenha influenciado nessa virada em relação à caracterização do D’artagnan original. Pelo caráter de fidelidade que o trabalho apresenta parece que não era isso o pretendido.

Produção Ousada

Os pontos altos do espetáculo são o figurino e os combates no palco.  O figurino, de Cissa Carvalho, indicia a época e supre a ausência desta descrição no cenário, que é negro e nu, com uns poucos móveis que entram e saem de cena com os personagens. Essa é uma ideia criativa. O retrato histórico do figurino está muito bem “costurado” no duplo sentido. Cissa diz ter-se inspirado em pintores do período como Velásquez, o que demonstra escolha de qualidade e cuidado. O vestuário faz uma leitura de síntese da época. São mais simples. Os poucos recursos disponíveis resultaram em criatividade. A produção foi cara e ousada para um país pobre com um teatro paupérrimo. O interessante é que pelo fato do figurino trabalhar com a História, a peça põe em relevo a memória, na acepção do pensador alemão Walter Benjamin.

O espetáculo abre espaço para se pensar a memória. Faz a criança perceber a diferença entre a roupa que veste e o vestuário da peça, o que lhe mostrará um passado sobre o qual ela terá que pensar. E nesse caso o passado se chama História.

Os combates imprimem dinâmica e agilidade à peça. Os atores tomaram aulas específicas de esgrima. Usaram para as lutas o florete francês que embora não seja uma arma de combate (serve para furar, conforme contou Parisi) é mais leve que o sabre e a espada. Foi preferido pela intenção da direção em dar velocidade às lutas, numa tentativa de verossimilhança difícil de acontecer com êxito quando se trata de lutas no palco, principalmente no teatro infantil. Os atores abrem mais os movimentos da esgrima usando todo o espaço cênico, permitindo assim vários focos de visão ao espectador. É uma peça que valoriza o embate entre os homens. Isso existe. Nessa medida a peça é realista.

Segundo o historiador Keith Thomas, não existiria Idade Média sem cavalo ou espada. A esgrima remete o espectador para o mundo de cavaleiros e cavalheiros, um mundo idealizado, de vencedores. É uma arte da nobreza. Esses aspectos são conservadores e revelam uma certa saudade popular da alta realeza, do tutor de sangue azul.

Música Barroca

A pesquisa musical foi feita por Maria de Lourdes Martins. São usadas peças ouvidas pela corte, do 1º barroco francês e do barroco italiano da 1ª metade do século 17.

Os músicos são, entre outros, Albinoni, Hameau, Couperin, que escreveu para cravo, instrumento favorito da época. Usaram discretamente música de outros períodos para compor o clima da peça. Tem riqueza essa música usada, num país tomado pela mediocridade informativa e criativa da maioria da música popular.

Apesar das restrições, a peça não deixa de prender a atenção do espectador adulto e possivelmente do infantil, a quem é dirigida. Assistir esse espetáculo é uma boa oportunidade para a criança ler Alexandre Dumas. As crianças maiores podem até aventurar-se a ler a tradução do original. Há também versões em desenho animado com bichos como personagens nas locadoras de vídeos. Dartacão é a mais recente delas (distribuidora FJ). Esses exercícios comparativos são didáticos.