Matéria publicada na Revista Veja
Sem identificação – São Paulo – 23.08.1989
Palco animado
O diretor Tolentino faz sucesso com o Grupo Tapa
Quando avisou a família que iria largar o emprego de repórter de esportes do Jornal do Brasil e se dedicar apenas ao teatro, o carioca Eduardo Tolentino de Araújo não encontrou nenhuma oposição – mas deixou a avó de sobreaviso: cada edital de concurso do Banco do Brasil que era publicado ela recortava e enviava ao neto, na esperança de que ele reconsiderasse sua opção profissional. Passaram-se dez anos, e hoje a dedicada avó não precisa mais se preocupar – o neto Eduardo Tolentino de Araújo é, aos 34 anos, um dos diretores de teatro da nova geração mais respeitados pela crítica e admirados pelo público. À frente do Grupo Tapa, Tolentino transferiu-se para São Paulo há três anos, instalou-se no Teatro Aliança Francesa, arregaçou as mangas e pôs-se a trabalhar. Desde 1986, o Grupo Tapa já apresentou oito espetáculos, dos quais dois estão em cartaz: Senhor de Porqueiral, na Aliança Francesa, e Nossa Cidade, no Teatro Anchieta – onde fica até o próximo dia 27, antes de iniciar uma excursão por 35 cidades do interior do Estado. A galeria de troféus de Tolentino, então, só fez crescer – ele já ganhou os prêmios Mambembe, Molière, APCA e Governador do Estado, entre outros. “Tolentino é um dos jovens diretores mais estudiosos do país”, elogia o crítico Sábato Magaldi. “Ele não se curva aos modismos.”
O trabalho de Tolentino é eclético. “Minha intenção é criar um repertório em que entre um pouco de tudo”, conta ele. Em seus três anos de São Paulo, ele assinou a direção de peças bem variadas – como, por exemplo, Viúva, Porém Honesta, de Nelson Rodrigues, A Mandrágora, de Maquiavel, e O Tempo e os Conways, de J. B. Priestley, o maior sucesso do grupo, com Beatriz Segall à frente do elenco. Nas duas peças que mantém em cartaz atualmente, Tolentino mostra que o Grupo Tapa não quer a vocação de só fazer um determinado tipo de espetáculo. Em Senhor de Porqueiral, o grupo trabalha sobre uma comédia inédita de Molière, um dos maiores autores franceses do século XVII, misturando crítica de costumes a batucadas e acrobacias. O coquetel cai bem e torna ainda mais engraçada a história de um ricaço do interior que vai à capital procurar uma esposa.
Já em Nossa Cidade, o espírito reinante no palco é outro: o cotidiano de uma pequena cidade do interior é apresentado sem pressa e, também, sem cenários – os únicos elementos que decoram o palco são duas escadas e algumas mesas, instaladas sobre rodinhas, que os próprios atores levam e trazem à cena enquanto contam a história de dois jovens, vizinhos, que se apaixonam e se casam. Escrita em 1938, por Thornton Wilder, a peça faz, através de uma trama simples, muitas reflexões sobre a vida e a morte – e sobre o que os homens fazem nesse meio tempo. Por causa da economia no palco, esta peça, aliás, obteve o patrocínio da Caixa Econômica do Estado de São Paulo, dentro do projeto Arte em Cena, que organiza um grande circuito pelo interior. “Como tem poucos elementos de cena e nenhum cenário, esta é uma peça mais fácil de levar de uma cidade para outra”, diz Tolentino. “Mas, é claro, eu não fiz esse trabalho desse jeito pensando nisso – fiz dessa maneira porque era a melhor maneira de contar o enredo.”
Logo que desembarcou em São Paulo, Tolentino montou O Tempo e os Conways. Foi um sucesso – era comum ver a plateia sentar-se até no chão do Teatro Aliança Francesa. Mas esse não foi o primeiro trabalho de Tolentino e sua turma. “Tudo começou por brincadeira em 1974”, conta Tolentino. “Éramos uma turma de alunos da PUC no Rio e quisemos montar uma pecinha no fim do ano.” Ex-aluno de faculdade de Economia, Tolentino gostou da experiência – e quis conhecer melhor o mundo do teatro. Freqüentou um curso ministrado por Sergio Britto, fez mais amigos e, com eles, formou o Tapa. A primeira montagem do grupo foi a peça infantil Apenas um Conto de Fadas, escrita pelo próprio Tolentino. “Ficamos um bom tempo ocupando apenas os horários alternativos”, diz o diretor.
Um dos pontos que mais destacam o grupo em meio ao panorama teatral é sua coragem em convidar grandes nomes do teatro para uma atuação conjunta. Foi assim com Beatriz Segall, em 1986, e também com Paulo Autran, no ano passado, na peça Solness, o Construtor. Para muitos, esse seria um truque para garantir o sucesso de bilheteria, mas Tolentino não pensa assim. “Quando queremos montar um texto que exija um ator de mais idade, optamos por chamar alguém – e por que não chamar os melhores?” É claro que nem sempre a idade é o que conta – às vezes a peça exige um elenco maior que as oito pessoas fixas do grupo. Nesse caso, a solução é contratar mais atores. “Por causa das duas peças em cartaz, estamos com um elenco de quarenta contratados – e nenhum ganha menos que 1000 cruzados novos por mês, o que é uma raridade nesse meio profissional”, afirma Tolentino. Uma das atuais contratadas é a atriz Walderez de Barros, cujos 25 anos de carreira artística não foram empecilho ao trabalho com o diretor da nova geração. “Estou encantada”, diz ela, um dos principais nomes de Nossa Cidade, em que vive dona Júlia, uma dedicada mãe de família. “É difícil encontrar alguém que alie simpatia e educação à competência profissional.” Em pouco tempo de contato direto, Walderez já consegue enxergar detalhes na forma de Tolentino dirigir o grupo. “Ele engana a gente direitinho – não dá ordens nem grita, mas nos induz a fazer exatamente o que ele quer. “
Tolentino está um caminho onde ele próprio sabe que há muito o que trilhar. “Embora ainda não tenha encontrado um estilo final, ele montou grandes textos com muita competência, recuperando a linha de trabalho de outro grande diretor, Flávio Rangel”, diz Jefferson Del Rios, crítico de teatro do jornal O Estado de São Paulo. Del Rios aponta outra característica no trabalho de Tolentino que o agrada bastante – a atuação em grupo. “Conheço apenas duas pessoas que conseguem manter um grupo coeso e em atividade – Tolentino e Cacá Rosset”, afirma. Entre o Tapa e o Ornitorrinco, o grupo de Rosset, há muitas diferenças – enquanto o Tapa opta por textos clássicos e montagens de grande rigor formal o Ornitorrinco trabalha no estilo de espetáculos mais irreverentes, com temperos de elementos circenses. “São dois estilos realizados com muita competência”, diz Jefferson Del Rios. “É bom para São Paulo que os dois estejam aqui.”
A opção por São Paulo não foi tão acidental quanto poderia parecer. “Fomos bem recebidos aqui em nosso primeiro trabalho e decidimos investir na cidade”, conta Tolentino. “Percebemos que o melhor do teatro brasileiro está acontecendo exatamente aqui.” Para ajudar na decisão do grupo, a direção da Aliança Francesa mostrou-se disposta a arrendar sua sala de espetáculos para o grupo, que ganhou, assim, um espaço definitivo para suas apresentações. No contrato, renovável a cada ano, há espaço até para coproduções, como é o caso de Senhor de Porqueiral, cujo texto foi sugerido pela Aliança Francesa – e aceito pelo Tapa. A mudança de cidade acabou por criar novos hábitos em Tolentino: o carro, por exemplo, ficou no Rio. “Acho ótimo caminhar pelas ruas do centro e, se preciso ir mais longe, estendo a mão e chamo um táxi.” Outro hábito que mudou – ir a restaurantes. “Não há como resistir à boa comida de São Paulo”, diz Eduardo Tolentino, que já sente no corpo os sinais do novo hábito. “Estou precisando cortar os doces com urgência”, diz ele, sorrindo. Além dos táxis e dos restaurantes, Tolentino também está sabendo aproveitar todas as peças e filmes que entram em cartaz na cidade. “Sou do tipo que assiste de tudo”, define-se.
Bem entrosado na cidade, respeitado pela crítica e conquistando o público a cada espetáculo, Eduardo Tolentino de Araújo faz, agora, planos para o futuro – entre eles, as montagens de dois textos clássicos Arlequim, Servidor de Dois Amos, de Goldoni, e A Megera Domada, de Shakespeare. “Não sei bem em que ordem esses espetáculos vão ser montados”, diz. “Às vezes, a produção fica muito cara e nós preparamos uma peça que custe menos.” Seja como for, ele garante que não mudará seu jeito de trabalhar – sobretudo, com o tempo para estudar cada texto. “Antes de dirigir Paulo Autran em Solness, o Construtor, no ano passado, fiquei lendo a obra de Freud para entender melhor cada personagem”, diz ele.